Brasileiros com um mínimo de consciência política e senso de respeito ao livre arbítrio, dedicaram a última terça-feira para, exatos 50 anos depois, reverenciar a memória das vítimas do golpe civil-militar de 1964 e repudiar o legado sombrio dos 21 anos de ditadura. Pesquisa anunciada hoje pelo R-18, maior banco de dados sociais da América Latina, revelou: 46 milhões de usuários trataram do assunto nas redes sociais, entre 31 de março e 1 de abril. Nada mais justo. Oxalá esse número cresça, ano após ano! Afinal, a ditadura deflagrada em 1964 foi o capítulo mais sombrio da história recente do País. Sob a égide de cinco marechais e generais, não só os opositores políticos ao regime sofreram tortura, foram mortos, exilados ou submetidos à clandestinidade, mas também os protagonistas das diversas expressões culturais, do País, que procuravam manifestar, em suas obras, resistência e repúdio ao regime.
É indigno minimizar o impacto nefasto da ditadura na vida dos brasileiros, um dia sequer nesses 21 anos, mas houve em 1968 – ano em que boa parte da juventude do mundo se insurgiu contra a opressão de valores comportamentais e políticos – um ponto divisor, que elevaria as arbitrariedades dos militares, nos próximos anos, ao ápice da barbárie. Com o decreto do Ato Institucional n° 5, em 13 de dezembro, os militares fecharam o Congresso, caçaram mandatos, suspenderam direitos políticos e recrudesceram a censura vigente e a prática da tortura, instaurando um crescente ambiente de terror. Foi nesse contexto nefasto que, às vésperas do Natal daquele ano, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos em Salvador. Encarcerados por dois meses, os compositores, que havia pouco tinham enterrado simbolicamente o Tropicalismo no programa Divino, Maravilhoso justamente pela consciência de estar flertando com o perigo, foram obrigados a sair do País e partir para um exílio em Londres aonde viveram por dois anos (leia entrevista de 2009 em que Gil relembra a experiência).
Mas não foram só eles que partiram. Entre milhares de brasileiros comuns, outras estrelas da nascente MPB também tiveram que botar o pé na estrada. Pouco depois, entre outros, Chico Buarque foi para a Itália, Nara Leão para a França e Edu Lobo para os Estados Unidos. Quem por aqui ficou teve de se reinventar para poder lidar com a censura sem correr o risco de ser o próximo exilado ou cobaia de toda sorte de torturas. Especulações do período defendiam que Geraldo Vandré, por exemplo, sofreu lavagem cerebral e foi emasculado (teve os testículos retirados), mas ele próprio nega até hoje as suposições e a hipótese de que tenha sido torturado. Verdade ou não, depois de sua prisão e exílio em 1968, inquestionável mesmo é a total reclusão do compositor do hino de protesto Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores.
Nesse contexto de guerra declarada, em que todos tinham um inimigo comum, a ditadura, então, dotada dos superpoderes do AI-5, houve também quem contasse com a notória estupidez dos censores. Chico, por exemplo, que escreveu letras contundentes como Apesar de Você e Vai Passar, chegou ao cúmulo de criar um personagem, Julinho da Adelaide, e com esse pseudônimo registrar a pérola Jorge Maravilha (veja vídeo de 1974), cujo refrão mandava um recado dos mais insolentes para o general Ernesto Geisel: “Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta”. Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós compuseram Pesadelo, gravada pelo MPB-4 (ouça), no álbum de 1972 do sugestivo título Cicatrizes, que continha, entre outras afrontas, frases como: “Você corta um verso / Eu escrevo outro / Você me prende vivo / Eu escapo morto”.
Mas houve também quem criasse e defendesse obras de extremo lirismo a partir de mensagens cifradas, especialmente jovens compositores e letristas que começavam a defender seus repertórios, como Luiz Melodia e os parceiros Jards Macalé e Waly Salomão, poeta baiano ligado à trupe tropicalista. Nesse período sombrio em que dar continuidade a trajetória artística demandava abrir verdadeiras trincheiras, Waly (então, sob o codinome Waly Sailormoon) dirigiu um dos espetáculos de maior simbolismo para dimensionarmos, hoje, o terror da Era Médici. Em novembro de 1971, sob a batuta do conterrâneo, Gal Costa subiu ao palco do Teatro Teresa Raquel para dar início ao espetáculo Fa-Tal: Gal a Todo Vapor. Composto de 19 canções, o show foi dividido em duas partes, uma acústica com Gal e o violão em primeiro plano; outra bem mais energética, conduzida pelo Lanny Trio, uma usina de som formada por Lanny Gordin, guitar-hero da Tropicália (ele já havia feito diversos trabalhos com a cantora, ouça o clássico álbum de 1969), o baterista Jorginho Gomes, irmão de Pepeu, e Novelli no contrabaixo – há também participações de Baixinho, dos Novos Baianos, que tocou tuba.
O título de uma reportagem de Teresa Gomes, publicada na revista InTerValo logo após a estreia do show, sintetiza a experiência “Gal Dá Um Show a Todo Vapor”. Mas o conteúdo do texto é visivelmente comprometido para evitar a mordaça da censura. O que era um grito urgente contra o ambiente de terror instaurado no País foi tratado por Teresa como o lamento pelo fim da contracultura – que até definhava, mas, como veremos, o alvo de Gal era outro. “Gal Costa está no Teatro Teresa Raquel, no Rio, num espetáculo onde ela canta, meio amarga, que o sonho hippie acabou, que a cultura underground faliu”, dizia o olho da reportagem que logo após traçava um perfil do público: “Grande massa da plateia era formada pelos jovens louquíssimos, com suas roupas exóticas, cabelos enormes, colares, anéis…”.
No camarim de Gal, Teresa tentou aprofundar a pauta “declínio da era udigrudi”, mas não teve sucesso: “Não sou cantora underground. Sou uma cantora, e nada mais. O que eu sou é aquilo que se absorve da vida. Não sou nem do underground nem do establishment!”, defendeu Gal que, depois, deu à repórter da InTerValo uma pista profética “A orientação desse show é a renovação do repertório”. Fa-tal reunia pérolas da velha guarda – Falsa Baiana, de Geraldo Pereira, Antonico, de Ismael Silva, e Fruta Gogóia, tradicional canção do folclore baiano, entre elas –, clássicos imediatos de amigos de Gal – como Dê Um Rolê, de Moraes Moreira e Luiz Galvão, dos Novos Baianos, Como 2 e 2, de Caetano, e Charles Anjo 45, de Jorge Ben. Mas o espetáculo também carrega o mérito de ter sido determinante para consolidar os nomes de Luiz Melodia, ao revelar a primorosa Pérola Negra, Jards Macalé, Duda Machado e Waly Salomão, que escreveram a quatro mãos dois retratos pungentes daquele início de década, Hotel das Estrelas (letra de Duda) e Vapor Barato (letra de Waly). Os versos reproduzidos abaixo evidenciam: o alvo de Gal não era, exatamente, o ocaso da contracultura.
“Sobre um pátio abandonado / Profetas nos corredores / Mortos embaixo da Escada / No fundo do peito esse fruto apodrecendo a cada dentada”
excerto de Hotel das Estrelas
“Oh sim, eu estou tão cansado / Mas não pra dizer que eu estou indo embora / Talvez eu volte, um dia eu volto / Mas eu quero esquecê-la, eu preciso / Oh, minha grande, ah minha pequena, oh minha grande obsessão”
excerto de Vapor Barato
Veja a íntegra do documentário Pan-Cinema Permanente sobre obra e vida de Waly Salomão
Com um lirismo tão combativo, que transformava a dor do exílio e entrega à pátria-mãe num rompimento temporário de uma relação amorosa, pouco depois, não por acaso, Waly, foi preso por portar um cigarro de maconha e amargou meses de cárcere no extinto complexo penitenciário do Carandirú, em São Paulo. Experiência que só tornou sua poética ainda mais incisiva e madura. Em sua cela, ele escreveu, ainda sob a corruptela Sailormoon, o clássico Me Segura Qu’eu Vou Dar um Troço, publicado em 1972 pela José Álvaro Editor.
Em maio de 1972, meses após encerrar a temporada de Fa-Tal, Gal concedeu extensa entrevista a revista O Bondinho, em um bate-papo informal com o repórter Myltinho Severiano. O plá, para usar aqui uma gíria da época, tratava da infância na Bahia, da enorme vontade de ser mãe (desejo jamais concretizado por ela), do reencontro com seu guru João Gilberto e do significado de sua permanência no Brasil, quando podia se dar ao luxo de viver dias bem mais amenos em outro país ou continente. A argumentação vem como um quebra-cabeça cronológico, a partir de um episódio-chave para a Tropicália, ocorrido em 13 de novembro de 1968, exatamente um mês antes de ser decretado o AI-5.
“Cantei Divino Maravilhoso no Festival da Record. Anunciaram Caetano Veloso e Gilberto Gil e começaram as vaias. Entrei eu e a vaia dobrou. Vi a raiva e consegui entender. Quando passei pra frente do palco as pessoas que estavam vaiando acabaram aplaudindo. Lembro que tinha uma menina me vaiando e eu fiquei com tanta raiva que olhei para ela e fiz: ‘É, é, é, é preciso estar atento e forte!’. Fui direto no olho dela, com uma violência tão grande que a menina parou e sentou na cadeira. Era um acontecimento muito forte para mim. Uma coisa verdadeira. Depois, aconteceu a prisão de Caetano e Gil (seis meses depois, o exílio) e eu fazia o meu show pensando neles. Eu não podia fazer nada. O que eu podia fazer era gritar e cantar. Então, eu cantava por eles. Cantava pensando neles, cantava de uma maneira muito violenta. Era como se eu estivesse lutando por eles. Eu estava lá, junto com eles. Era o que eu podia fazer: cantar, cantar, cantar.”
Em decorrência do sucesso de Fatal: Gal a Todo Vapor, em 1972, a Philips decidiu transformar os registros do show em um álbum duplo. Com projeto gráfico ousado, de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos a partir de fotos de Edison Santos e do cineasta Ivan Cardoso, claro, os dois LP’s tem precariedades, problema característico de uma época em que a indústria fonográfica do País ainda não dispunha de experiência e tecnologia para realizar gravações ao vivo com alta fidelidade. Mas esse demérito não faz a menor diferença. Quarenta e dois anos depois, as duas bolachas ainda fazem o coração bater forte, a voz embargar e as lágrimas caírem. É como um improvável túnel do tempo que nos reporta, por meio dos músicos e da voz de Gal, a um passado, de profundo torpor, que adoraríamos poder reescrever.
Como disse a mãe de Gal à Teresa, a repórter que foi abordar a cantora em seu camarim, na estreia de Fa-Tal: “Gracinha dá vida às músicas que canta! Não é minha filha?!”. Verdade sem mentira, certo muito verdadeiro, diria o amigo Jorge Ben, Dona Mariá.
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