O hora e a vez de Astrud Gilberto

astrud gilbertoAbriremos hoje uma nova exceção às regras de Quintessência, que sempre trata de obras cantadas em português, para falar de um álbum que, embora seja de uma artista genuinamente brasileira, foi lançado nos Estados Unidos, com repertório majoritariamente interpretado em inglês. Trata-se do icônico The Astrud Gilberto Album, a estreia solo em território norte-americano da baiana mais carioca do Brasil. Lançado em 1965 pelo selo Verve Records, celeiro de algumas das maiores estrelas do jazz, o LP tornou-se campeão de vendagens e transformou Astrud Gilberto na voz feminina brasileira de maior sucesso mundial – claro, depois da “Pequena Notável”, Carmem Miranda.  

História que tem início de forma inusitada e casual, como em um conto de fadas, The Astrud Gilberto Album foi gravado entre os dias 27 e 28 de janeiro de 1965 e se impôs como a explosão de um processo lento e revelador. Pouco menos de dois anos antes, nos dias 18 e 19 de março de 1963, João Gilberto, então marido de Astrud, fez o mesmo trajeto Rio de Janeiro/Nova York para registrar, pela mesma Verve e em parceria com o saxofonista tenor americano Stan Getz, o álbum Getz/Gilberto. Produzido por Creed Taylor, o chefão da Verve, depois do relativo sucesso de um experimento anterior, o LP Jazz Samba Encore!, que reuniu Getz e o violonista Luiz Bonfá, Getz/Gilberto foi arranjado por Tom Jobim e contou também com as presenças do baterista Milton Banana (leia post sobre o músico) e do baixista Tião Neto (egresso do Bossa Três e do Sexteto Bossa Rio, leia post). Lançado no início de 1964, com o inesperado sucesso de Garota de Ipanema (Girl From Ipanema) e Corcovado (Quiet Nights of Quiet Stars) – ambas interpretadas com a voz sublime de Astrud e vertidas para o inglês, respectivamente, pelo letrista Norman Gimbell e o editor da revista Downbeat, Gene Lees – Getz/Gilberto vendeu muito e transformou a Bossa Nova em fenômeno mundial.

Nascida Astrud Weinert em Salvador, filha de um imigrante alemão, professor de idiomas e de literatura, e de uma dona de casa baiana, Astrud partiu com a família, aos 8 anos, para morar na zona Sul do Rio de Janeiro, na Avenida Atlântica, em Copacabana. Caçula de três irmãs, ela cresceu observando os procedimentos cultos do pai e se deixando influenciar pela paixão da mãe (que cantava e tocava bandolim) pela música. Tímida, Astrud passou anos a reprimir seu interesse pelo canto. Situação confrontada, na adolescência, pela melhor amiga, a aspirante a cantora Nara Leão, que aos poucos foi incentivando a amiga baiana a soltar a voz até que, apresentado por Nara, João Gilberto cruzou o caminho da conterrânea e, no papel de namorado dedicado, passou a ser seu grande incentivador. João e Astrud se casaram em 1959. Em menos de um ano, ela esperava o primogênito Marcelo.

Em maio de 1960, Astrud experimentou, pela primeira vez, a sensação de subir em um palco e soltar a voz, no histórico show Noite do Amor, do Sorriso e da Flor. Realizado no anfiteatro da Faculdade de Arquitetura da UFRJ, o concerto foi organizado para celebrar o recém-lançado segundo LP de João Gilberto, O Amor, o Sorriso, a Flor (Odeon, 1960), e reuniu o próprio baiano, Nara Leão, Dori Caymmi, Chico Feitosa, Johnny Alf, Trio Irakitã, Elza Soares, Sérgio Ricardo, Sylvia Telles, Pedrinho Mattar, Norma Bengell, Nana Caymmi, Normando Santos, Caetano Zama e o grupo vocal Os Cariocas. Produzido e apresentado por Ronaldo Bôscoli, o show foi conduzido por um combo instrumental dos mais insuspeitos, composto por Roberto Menescal (guitarra), Luiz Paulo (contrabaixo) e dois craques do Tamba Trio, o baterista Hélcio Milito e o baixista Bebeto Castilho, que em vez do instrumento de quatro cordas, tocou sax tenor e flauta transversal (leia reportagem com Bebeto, sobre os 50 anos do primeiro álbum do Tamba).

Assista vídeo raro da TV americana, com Astrud interpretando Água de Beber

Municiada de um par de belas canções de Tom e Vinícius – Lamento e Brigas Nunca Mais – Astrud também cantou naquela noite mágica, mas, à revelia do público, deixou o palco frustrada, com a certeza de que acabava ali sua experiência como cantora. Seu canto miúdo, herdado da interpretação intimista de João, não chegou a ser vaiado, mas foi recebido com total indiferença pelos quase dois mil jovens que compuseram a plateia da Noite do Amor, do Sorriso e da Flor. Com as contingencias difíceis da maternidade, as pretensões artísticas de Astrud se tornaram ainda mais secundárias. Tanto que ela só aceitou acompanhar João na empreitada de registro de Getz/Gilberto para fazer as vezes de intérprete do marido, que não falava uma sílaba de inglês. No entanto, ao ouvir uma conversa de bastidores e sugerir a João que a recomendasse para fazer um teste de interpretação de Garota de Ipanema, visto que Getz e Taylor haviam cogitado a possibilidade da canção ganhar voz feminina, Astrud estava prestes a dar uma guinada radical na própria vida: sairia do total anonimato e conquistaria o mundo no ano seguinte.

O hiato entre o registro e o lançamento de Getz/Gilberto foi justificado por uma previsão para lá de equivocada do experiente Creed Taylor, que já havia feito história com seu mítico selo Impulse!, de estrelas como John Coltrane, Max Roach, Charles Mingus, Duke Ellington e um sem número de cronópios do jazz. Taylor optou por adiar a chegada do LP às lojas, pois acreditava que o álbum não teria grande apelo comercial. Ele apostava em um esgotamento do interesse do público americano pelo jazz latino e julgava que o poder de sedução da Bossa Nova não passava de um exotismo que logo seria capitulado. Quando enfim decidiu lançar o compacto simples que continha as releituras de Garota de Ipanema e Corcovado, em abril de 1964, constatou que estava redondamente enganado. Como se fosse dotada de hipnose, a voz singela de Astrud invadiu as rádios, conquistou a América e Taylor correu para colocar o LP nas lojas. Em tempo recorde, o álbum se tornou um dos mais vendidos da história da Verve. Em 1965, o biscoito fino conquistou cinco Grammys, dois deles dedicados ao displicente João, que os abandonou dentro de um armário em uma de suas recorrentes mudanças de endereço.

O sucesso meteórico de Getz/Gilberto deu ponto final a dias difíceis para o saxofonista. Considerado um dos mais importantes nomes do instrumento em seu país, Getz vivia período nebuloso, de baixas vendagens, bancarrota financeira e consumo pernicioso de drogas e álcool. Reza a lenda, com o sucesso do LP, ele chegou a comprar uma mansão em Los Angeles, com mais de 20 quartos. Astrud, Tião Neto e Milton Banana tiveram sorte menor. Pelas duas diárias de gravações receberam os parcos US$ 168 recomendados pela tabela da Ordem dos Músicos de Nova York. Getz ainda cometeu a grosseria de não creditar o contrabaixo a Tião na ficha-técnica do LP, atribuindo o registro a Tommy Williams, músico de sua banda. Não bastasse, o saxofonista ainda passou a vender para a imprensa americana a ideia fantasiosa de que Astrud era uma dona de casa qualquer, de talento incomum, casualmente descoberta por… ELE!

Meses depois das gravações de Getz/Gilberto, João se separou de Astrud e passou a viver com a cantora Miúcha. Frágil, com o agravante de ter de cuidar do filho Marcelo, que havia acabado de completar 4 anos, a emergente cantora não foi capaz de interpretar como oportunismo os gestos suspeitos de Stan Getz e passou a acompanhá-lo, no segundo semestre de 1964, em uma série de shows nos Estados Unidos e na Europa. Experiência que renderia mais um registro com o saxofonista pela Verve, o álbum Getz Au Go Go, gravado ao vivo, em 19 de agosto de 1964, no Café Au Go Go, no boêmio bairro Greenwich Village, em Nova York.

Com o sucesso de mais um título impulsionado pela voz de Astrud como ingrediente extra, Creed Taylor abriu o ano de 1965 dando carta-branca à moça para enfim lançar seu primeiro álbum solo. E ele não poupou requinte para o registro da estreia de Astrud. Reservou o estúdio da RCA em Hollywood, na Califórnia, e reuniu músicos do primeiro time – entre eles, o saxofonista e flautista Bud Shank, o contrabaixista Joe Mondragon, o trombonista Milt Bernhart, o trompetista Stu Williamsom e os brasileiros João Donato, piano, e Tom Jobim, violão.

Concluídos os trabalhos de gravação, Taylor acrescentou arranjos de cordas executados pelo Guildhall String Ensemble e deixou a masterização do LP a cargo do lendário Rudy Van Gelder, engenheiro de som responsável pelo registro e “acabamento” de mais de 2 mil álbuns para, entre outros, três dos maiores selos da história do jazz, a Verve, a Impulse! e a Blue Note. Com Tom Jobim entre os músicos, lógico, Taylor também o convidou para escrever os arranjos, criados a quatro mãos, com outro craque, o maestro Marty Paich.

Astrud, Tom Jobim e o maestro Marty Paich, durante as gravações de "The Astrud Gilberto Album" (foto: Instituto Antonio Carlos Jobim)
O maestro Marty Paich, Astrud e Tom Jobim, em janeiro de 1965, durante as gravações de The Astrud Gilberto Album (foto: Instituto Antonio Carlos Jobim)

Do repertório de 11 modernas composições, todas signatárias dos estatutos da Bossa Nova, apenas quatro foram interpretadas na língua-mãe, uma de Tom, Fotografia (curiosamente grafada como Photograph, apesar da letra original), duas de Tom e Vinicius – Água de Beber, com participação vocal de Tom, e O Morro Não Tem Vez – e uma de Tom com Aloysio de Oliveira (leia post sobre ele), Só Tinha de Ser Com Você. Vertidas para o inglês por Normal Gimbell: Meditation (Meditação, de Tom e Newton Mendonça), How Insensitive (Insensatez, de Tom e Vinicius). A cargo do letrista Ray Gilbert ficaram as releituras de Dindi (de Tom e Aloysio), Once I Loved (O Amor em Paz, de Tom e Vinicius), And Roses, And Roses (Das Rosas, de Dorival Caymmi) e All That’s Left to Say Goodbye (É Preciso Dizer Adeus, de Tom e Vinicius). Completando as 11 faixas, Gene Lees verteu Vivo Sonhando, o clássico de Tom, para Dreamer.

Com todos esses predicados, lógico, o álbum fez sucesso arrebatador e transformou a ascendente Astrud em estrela internacional. Requisitada pelas rádios, onipresente na tevê e na imprensa, ela passou a ser norte estético de anônimas e famosas dos quatro cantos do mundo, influenciando mulheres comuns a estrelas nascentes da música brasileira e internacional, como a alemã Nico, a francesa Jane Birkin, Gal Costa e Flora Purim. Até mesmo Maysa, afeita a histrionismos vocais, depois de Astrud, curiosamente passou a cantar mais comedida.   

Cantando Bossa, MPB, standards do jazz e hits americanos e europeus, em inglês, francês, italiano e alemão, Astrud deixou sua voz elegante em 18 álbuns solo, de 1965 à 2002 – o mais recente deles, Jungle, traz 12 canções, dez delas assinadas pela cantora.

Aos 74 anos, Astrud mora na Philadelphia, nos Estados Unidos, em companhia dos filhos Marcelo Gilberto e Greg Lasorsa, de seu segundo casamento. Desde 1982, ela não fala com a imprensa. Em 2002, por ocasião do lançamento de Jungle, abriu uma exceção e conversou com um grupo de fãs. Na coletiva informal, justificou o silêncio de duas décadas afirmando que, enquanto esteve no auge, houve cobertura maciça de seu trabalho na imprensa e que, portanto, não havia mais nada a ser dito sobre ela.

No final de 1965, quando o mundo todo se rendia à sedução de seu canto, Astrud apresentou-se em São Paulo e foi vaiada por um grupo de jovens que, em detrimento da canção de protesto, desdenhava os maneirismos estéticos e harmônicos da Bossa Nova. Desde então, ela jamais voltou a se apresentar no Brasil. Semanas antes, em um clube de jazz de San Francisco, no qual acompanhava Stan Getz, na condição de fã, Astrud foi sozinha conferir um show de seu ídolo Chet Baker. Ao constatar sua presença, o trompetista ficou excitado e logo após encerrar o tema em andamento foi ao microfone e disparou “Mrs. Gilberto, nos daria a honra de acompanhar o próximo número?”.

Há quem defenda que Astrud foi intransigente ao desdenhar de sua carreira em terras brasileiras. Verdade ou não, dela ninguém pode tirar o mérito de ter atuado como uma espécie de embaixadora da música brasileira. Ao desbravar os grandes mercados e evidenciar aos olhos pasmados do mundo um Brasil informado, inventivo e vanguardista, Astrud, Tom, Donato, Tião, Banana e João fizeram mais pela música popular do País, no sentido de torná-la universal, do que talvez o próprio tenha feito por eles.

Ouça a íntegra de The Astrud Gilberto Album

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Em tempo:

Leia perfil da cantora Bebel Gilberto, no qual ela relembra histórias que envolvem João e Astrud

Na ocasião dos 50 anos da Bossa Nova, Ruy Castro publicou, na Brasileiros, uma reportagem exclusiva contando os bastidores da gravação de Getz/Gilberto. Confira. 


Comentários

2 respostas para “O hora e a vez de Astrud Gilberto”

  1. NADIE PODE DECIR NADA MALO, ELLA LLEVO LA BOSSA NOVA POR TODO EL MUNDO. BELLA Y TALENTOSA

  2. AMO ASTRUD GILBERTO!!! MARAVILLOSA!!!

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