Na primeira cena de Girls, Hannah Horvath come um prato de macarrão com entusiasmo, uma comida simples, de paladar quase infantil. O contraponto: está em um restaurante sofisticado, jantando com os pais. Do outro lado da mesa, a mãe lhe repreende pela avidez com que engole a comida, ao que responde: “Estou em fase de crescimento”. Hannah tem 23 anos e a piada poderia ser autodepreciativa, referindo-se ao sobrepeso que traz à tona durante a série de maneira recorrente. Mas podemos tomar essa afirmação de maneira um pouco mais simbólica. Afinal, quando nos tornamos adultos? A ambivalência da expressão “em fase de crescimento”, posta desde o início, nos conta que há uma negação implícita que atravessa a personagem, assim como boa parte de sua geração.
Se em Peter Pan todas as crianças querem crescer, exceto uma, em Girls todas personagens idealizam a vida adulta, mas, como bom ideal platônico, jamais se aproximam dela. Tudo o que têm é a busca.
Considerando Girls como produto cultural, é fácil compreender o entusiasmo com que foi recebido: criada por Lena Dunham, que interpreta Hannah, a série foi lançada pela HBO em 2012 trazendo algo que já vimos antes, inclusive nesse mesmo canal: quatro garotas, brancas e narcisistas, vivendo em Nova York. Girls surgiu como uma nova Sex and the City, com estética própria e alguns deslocamentos: em vez da vida refinada de Manhattan, o cenário hipster do Brooklyn; no lugar do corpo perfeito de Carrie, o corpo imperfeito de Hannah. Ambas são mulheres jovens tentando viver da escrita, ambas têm relações complicadas com homens misteriosos: Mr. Big, o milionário sem nome que partiu o coração de Carrie tantas vezes; Adam, o excêntrico sem camisa que partiu o coração de Hannah outras tantas.
Com atores talentosos, boa direção e trilha sonora, a série dificilmente não emplacaria. O tema ajuda: acompanhar as agruras de jovens perdidos que tentam se tornar adultos em uma cidade grande também esteve em Friends e em tantas outras produções da televisão e do cinema, como nos filmes de Noah Baumbach. Há ainda um elemento central: uma abordagem feminista mais alinhada com o mundo contemporâneo — Sex and the City, nesse sentido, já se tornou caduco.
Girls angariou fãs no mundo todo, transformou-se em referência pop. Para Lena Dunham, muitas portas se abriram, incluindo a publicação de um livro de ensaios autobiográficos, o Não Sou Uma Dessas, publicado no Brasil pela editora Intrínseca.
No entanto, o narcisismo de Hannah muitas vezes parecia se confundir com o narcisismo de Dunham. A personagem parecia colada demais à criadora. Poucas vezes a série me capturou de verdade e só fui capaz de acompanhar as seis temporadas com alguma assiduidade por conta de algo que não saberia nomear. Sendo bastante honesta, uma das razões pelas quais eu ainda insistia era Adam, personagem interpretado pelo brilhante Adam Driver, que tem tantas camadas e tanto frescor que seria difícil sequer começar a descrever aqui. Embora nem sempre compreendesse Adam, eu me importava genuinamente com ele.
Gostar ou não gostar de um personagem não é um obstáculo — eu não gostava de Hannah, mas sabia que minha resistência ia além dessa querela. Eu não conseguia sequer me interessar por ela o bastante para odiá-la.
Mas, no terceiro episódio da última temporada, American Bitch, vemos o título do livro de Dunham cair por água abaixo: Hannah é uma dessas, uma garota que teve acesso a uma boa educação, que escreve sobre feminismo na internet, que pensa em si mesma como uma feminista, mas que se vê em uma arapuca ao ser confrontada por um escritor, que admira muitíssimo, acusado de misoginia. Ao ser chamada para uma conversa, aceita encontrá-lo porque se supõe em um lugar elevado, mas acaba caindo exatamente na mesma armadilha que todas as outras — no caso de Hannah, uma armadilha narcísica. Ter se julgado especial é o que a tornou especialmente vulnerável. O final do episódio, com Hannah saindo do prédio onde o escritor vive e cruzando com dezenas de outras mulheres anônimas, como vultos (em uma provável referência a Anticristo, de Lars von Trier), me fez parar e pensar: espera, tem algo acontecendo que me escapou, Girls pode ser muito mais interessante do que eu havia imaginado.
E foi. Enquanto Sex and the City termina com as protagonistas bem sucedidas e bem resolvidas, Girls aposta em algo que a autora italiana Elena Ferrante resumiu perfeitamente em um de seus livros: ao contrário da ficção, a vida real caminha para a obscuridade, não para o esclarecimento. Nenhum dos pares românticos anunciados durante a série de fato ficam juntos (Jessa e Adam talvez, mas eles já são o ponto fora da curva — Adam era o par de Hannah, afinal).
Em Girls, as pontas continuam soltas: Shoshanna vai se casar com um homem estranho não apenas para Hannah — nós também acabamos de conhecê-lo. É quase um não-personagem, uma função a ser cumprida em sua narrativa romântica, não um amor capaz de encantar. Marnie está flertando, via celular, com um personal trainer que também não vimos antes. É apenas uma moça com libido, que continua tentando, no escuro, encontrar maneiras de viver experiências e de construir laços. Jessa sequer está no último capítulo, é mencionada apenas uma vez.
Já Hannah tenta se entender com seu filho, o único homem a quem não pode renunciar. A ideia da maternidade como saída para a vida adulta poderia incomodar se o que ocorresse em Girls fosse a troca de uma idealização por outra: o egoísmo de antes, a abnegação de agora. Mas não foi o caso: a maternidade para Hannah é tão desajeitada quanto foi a sua juventude, quanto parece ter sido sua infância. É apenas mais uma experiência confusa e errante em sua vida confusa e errante. Mas também, por que não, bonita e genuína justamente por isso.
A gravidez não foi planejada, Hannah não tem alguém para compartilhar tarefas e sonhos (o mais próximo disso é Marnie), não consegue amamentar o bebê — é preciso bombear o leite para fora de seu corpo para que o filho o aceite. Ela brinca, porque sempre se defende através do humor, da ironia: “Você pensa que é o primeiro a rejeitar esses peitos?”. Mas a dor é real e percorre todo o episódio, que culmina com uma briga de Hannah com a mãe que, a pedido de Marnie, vem a seu socorro, e é muito mal recebida. Ela está exausta e perdida, mas resiste em receber ajuda. Afinal, portar-se como adulta não deveria significar ser capaz de sair de seus enroscos sozinha?
Talvez não, talvez adultos também precisem de ajuda, também precisem de outros adultos, e Hannah poderia aceitar uma pequena assistência sem ser capturada novamente por seu narcisismo. Gosto muito quando a mãe vem fechar o seu sutiã e ela resmunga: “eu fecho meu sutiã sozinha todos os dias”. O subtexto é óbvio: “consigo me virar sem você, sou capaz de dar conta da minha vida”. Mas, em seguida, diz quase como um vômito: “mas se você puder fechar apenas hoje…”.
No auge desse embate doloroso, Hannah pergunta à mãe por que está gritando com ela em um momento de tanta dor: “Você não vê que eu estou sofrendo?”. A mãe lhe dá apenas a melhor resposta do mundo: “Sabe quem mais está sofrendo. Hannah? Fucking everyone” (“A porra do mundo todo!”).
Hannah acusa a mãe por seus infortúnios, por se sentir tão carente de amor, por achar que sua ferida é maior que a dos demais: se ao menos a mãe tivesse escolhido um marido que não fosse gay, um marido que a amasse, ela também saberia o que é ser amada, e aquela casa seria um lar, e não um conjunto de cômodos. Então sai andando pela cidade, sem rumo, e nessa caminhada enfim acontece: ela entende que os 20 se foram, que já não é capaz de ser a mesma de antes. Encontra uma moça muito jovem chorando e gritando pelas ruas escuras e presume que esteja fugindo de uma tentativa de abuso. Dá seu tênis e sua calça para a garota, tenta acolhê-la. A moça a chama de “senhora”, o que Hannah recebe com estranheza, mas continua se portando como a adulta da situação. Quando descobre que não se tratava de uma atentado sexual, mas apenas de uma adolescente tendo crises de adolescência, fugindo de casa depois de uma briga tola com a mãe, fica enfurecida. Pela primeira vez, Hannah está no outro lado.
Volta para casa sem calça e sem sapatos, escoltada por um policial gentil que, vendo a cena, se aproxima e pergunta se está tudo bem. Ela diz que sim e ele lhe pergunta: “então por que a senhora saiu de casa sem calça e sem sapato”? Ela diz: “acabei de ter um bebê”. O policial a compreende e acolhe: “faz sentido”.
Ao chegar, encontra Marnie e a mãe sentadas na varanda. Ela pergunta do bebê, Marnie conta que ele está dormindo, que deram fórmula e ele adorou. Hannah sorri, um pouco constrangida, um pouco agradecida, e finalmente diz: obrigada.
Então o bebê chora e Marnie se levanta para acudi-lo, mas Hannah toma a vez. Coloca o bebê no colo e, para sua surpresa, o filho começa a mamar. No peito. A expressão no rosto de Hannah diz tudo. Muito acertada a decisão da diretora do episódio, Jenni Konner, em focar apenas em seu rosto para nos contar a cena. A tela fica escura e Girls chega ao fim depois de seis anos, enquanto ouvimos o bebê sendo amamentado e Hannah cantando Fast Car, a mesma canção que, pouco antes, Marnie tentou cantarolar no carro e foi repreendida com agressividade. O momento havia ficado suspenso, mas é retomado com delicadeza junto aos créditos finais.
Girls tem coragem de nos mostrar tudo que perdemos e que deixamos de realizar, mas também dá uma pequena amostra do que somos capazes de experimentar. Suportar essa precariedade, esse desamparo, talvez seja o mais próximo que possamos chegar daquilo que chamam, com ares de promessa, de vida adulta. Enquanto isso, seguimos tentando entender, pagar boletos, fechar o sutiã.
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