Apesar de somente agora lançar seu primeiro longa-metragem, o drama Ponto Zero*, o diretor gaúcho José Pedro Goulart atua no cinema do País desde os anos 1980. Ele, que é um dos 11 fundadores da Casa de Cinema de Porto Alegre, a cooperativa que, naquela década, revigorou o cinema local, assina, ao lado de Jorge Furtado, títulos emblemáticos, como os curtas-metragens O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda (1986), como co-autor, e Ilha das Flores (1989), como produtor.
Ênio (Sandro Aliprandini), o protagonista de Ponto Zero, é um adolescente de 15 anos, melancólico e monossilábico, filho de uma dona de casa (Patrícia Selonk) que vive refém da rotina de servir ao menino, sua irmã (Giulia Perillo) e o patriarca (Eucir de Souza), um radialista, mau caráter, que invariavelmente está ausente do cotidiano familiar e atravessa as madrugadas trabalhando.
Na primeira cena de Ponto Zero, quando volta para casa depois de comprar pães para sua mãe, Ênio toma uma sova de um colega de escola e simplesmente não reage às agressões. A partir daí, Goulart revela que o garoto, como Antoine Doinel, o jovem protagonista do clássico Os Incompreendidos, de François Truffaut, constrói para si um mundo paralelo para, em meio ao silêncio agônico do ambiente familiar e a incapacidade de se relacionar com estranhos, amortizar o torpor de uma existência ordinária.
Essa realidade paralela é construída por Goulart em cenas de forte impacto visual. Embora irregular – sobretudo, por pequenas deficiências no roteiro, escrito pelo próprio diretor – Ponto Zero tem grandes momentos, como a cena em que, como válvula de escape, Ênio sai de casa para dar uma volta de bicicleta pelas ruas de Porto Alegre e invade espaços marcados pela incomunicabilidade presente em seu dia a dia, como o pátio e a sala de aula da escola onde ele estuda, sua própria casa e o estúdio da rádio em que o pai apresenta um programa sensacionalista.
No universo particular do menino há também a citação recorrente de poemas de Cecília Meirelles. Cinéfilos mais atentos perceberão também artifícios de metalinguagem em Ponto Zero. Caso da cena em que, na calada da noite, pela segunda vez, Ênio “rouba” a pick-up do pai, e assombrado pela suspeição de que, em meio a uma tempestade, teria atropelado alguém, abandona o carro e tenta fugir da cena do suposto crime no interior de um ônibus. Aparentemente um bom refúgio, o coletivo é conduzido por um motorista hostil (Heinz Limaverde), que inicia uma discussão estúpida com o adolescente e clama a Deus para que a chuva ostensiva permaneça por dias e limpe toda a sujeira acumulada no dia a dia da capital gaúcha.
O diálogo, certamente, faz alusão a Taxi Driver, uma das obras-primas de Martin Scorsese, escrita por Paul Schrader. De família católica, Schrader é conhecido por suas parábolas de redenção. Como Travis Bickle (Robert De Niro), protagonista de Taxi Driver, o garoto Ênio, fruto de uma família tradicional, no entanto imperfeita, perde o compasso da realidade e, num processo ascendente de desespero, explicita o quanto é frágil a suposta normalidade das convenções que regem nossa sociedade.
* Nesta quinta-feira (26), o filme entra em cartaz em São Paulo, Brasília e, no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Caxias do Sul e Passo Fundo.
Veja o trailer de Ponto Zero
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