Estrela brasileiríssima entre os maiores trombonistas do mundo Raul de Souza há quatro décadas é figurinha fácil nas listas anuais de melhores instrumentistas, promovidas por revistas como Rolling Stone, New York Jazz Magazine e Downbeat – a mais importante publicação sobre jazz.
Pouco reverenciado em seu próprio País, Raul fez longo percurso até atingir esse status de unanimidade. Radicado nos Estados Unidos nos anos 1970, ele gravou seu primeiro álbum solo estrangeiro, Colors (1975), pelo selo Milestone. Com ele, e outros títulos daquela década, fez história. Mas nem tudo foi fácil. Logo que aterrissou em Los Angeles, incerto sobre seu futuro e vivendo dias de instabilidade, Raul decidiu partir para Massachusetts, em Boston, para aprimorar seus conhecimentos sobre música na Berklee College of Music. Saiu rápido da condição de aluno para tornar-se músico dos mais requisitados e desenvolver carreira solo de grande valor – hoje, Colors é, inclusive, objeto de estudo na Berklee, a mais renomada universidade de música dos Estados Unidos.
Em entrevista concedida à Brasileiros em 2011, feita pelo amigo Ronaldo Evangelista (leia a íntegra), Raul esmiuçou o passado para falar do período que precedeu sua ida ao México e, depois, aos Estados Unidos. Nascido João José Pereira de Souza, em 1934, no suburbano bairro de Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, filho de um pastor evangélico da Assembleia de Deus e de uma dona-de-casa, Raul revelou na entrevista à Brasileiros que frequentava os cultos do pai por mero interesse na música que era executada pelos fieis. “Eu ia à igreja desde os quatro anos de idade e ficava vendo os caras tocarem. Me interessava mais pelos instrumentos graves: tuba, trombone e bombardino. Com o passar dos anos, fui tocando flauta e trompete. Mas, com 14 anos, resolvi sair.”
A ruptura com a igreja fez com que João José, enquanto sonhava em ser artista, assumisse outras responsabilidades. Aos 16 anos, foi trabalhar como tecelão, mas encontrou generosa válvula-de-escape para o árduo ofício: ingressou no grupo musical formado por funcionários da Fábrica de Tecidos Bangú, seu primeiro emprego formal. Foi então que, literalmente, passou a botar a boca no trombone de válvula (nos EUA, ele passaria a tocar também trombone de vara, sax tenor, e criaria um novo instrumento, o souzabone, um trombone com quatro válvulas – os convencionais têm três).
João José constatou que tinha mesmo jeito para a coisa e passou a integrar grupos de gafieira e regionais de choro. Numa roda de improviso de um boteco, teve a felicidade de conhecer o gênio Pixinguinha. A procura dele, na semana seguinte, topou com outra figura luminar de nossa música, Nelson Cavaquinho. Mesmo sem fazer ideia de quem era Nelson, o adolescente João José ganhou dele a recomendação de que fosse à Rádio Nacional e colocasse seu trombone à prova no show de calouros do mestre Ary Barroso. Saiu de lá com uma boa quantia em dinheiro, ao dividir o primeiro lugar com outro candidato. Experimentado nos meandros do showbizz, de quebra, Ary recomendou a ele que trocasse o nome artístico e sugeriu Raulito. João acatou, mas logo depois trocou o pseudônimo para Raulzinho.
E foi com esse novo codinome que o trombonista integrou em 1957 um álbum histórico para a música brasileira, Turma da Gafieira (ouça Samba do Morro e Rio Antigo), do grupo de mesmo nome, liderado pelo flautista Altamiro Carrilho. O LP é um marco, por tratar-se da primeira obra de música instrumental brasileira na qual é patente a liberdade que os músicos tiveram para improvisar e criar seus próprios solos. Mas o ambiente de liberdade experimentado por Raulzinho no disco de Altamiro era para lá de rarefeito naqueles dias de regras ortodoxas. Fato este que fez com que, temporariamente, o trombonista fosse para Curitiba, em 1958, apostar em uma carreira de militar na Aeronáutica – muito embora viajasse com frequência ao Rio, aos finais de semana, para tocar com os amigos: “Era proibido improvisar! A gafieira era comercial, feita para dançar. Tem o ‘papará’, se você faz ‘pupuru’ não pode, sabe como é que é? Qualquer frase que não fosse da melodia era proibida. Não no papel, mas pelo semblante das pessoas, dos maestros, dos contratantes. E eu sempre fui rebelde nesse ponto. Como não pode improvisar? Se você tem facilidade, improvisa. Mas eu era condenado”, relembrou ele, na entrevista concedida à Evangelista para a Brasileiros.
A passagem pela Aeronáutica garantiu a Raulzinho a patente de sargento e também o papel de líder da banda marcial. Mas um convite irrecusável abriu de vez os caminhos musicais para consolidar sua carreira musical. Recomendado pelo amigo Edmundo Maciel (ou melhor, Ed Maciel, grande trombonista e irmão de outro ás do instrumento, Edson Maciel, o “Maciel Maluco”) Raulzinho voltou ao Rio para integrar, com o amigo e outros feras, o Sexteto Bossa Rio, do pianista Sérgio Mendes. Com o grupo participaria, entre o final de 1963 e o início de 1964, de outra gravação histórica: o primeiro e único álbum do combo Você Ainda Não Ouviu Nada! (leia post de Quintesseência sobre a obra).
Mas 1964 seria mesmo marcado por outro encontro dos mais celebrados. Com passe livre da gravadora RCA-Victor, Raulzinho entrou em estúdio com o Sambalanço Trio, de César Camargo Mariano, Humberto Clayber e Airto Moreira (leia post de Quintessência que conta a história do primeiro álbum do combo), para gravar seu primeiro disco solo. À época, o paulistano Sambalanço fazia longa temporada carioca (tão extenuante, que levou à ruptura do grupo e à criação do Som 3, em 1965) acompanhando o bailarino Lennie Dale, que nos anos 1970 fundaria a trupe anárquica do Dzi Croquetes (ouça Samba de Mudar). Mas o primeiro encontro entre Raulzinho e o trio deu-se na Terra da Garoa, no mítico Juão Sebastião Bar, quando o trombonista descobriu o Sambalanço no diminuto palco e ficou impressionado com a afinidade e o vigor dos músicos.
Entre os 11 temas de À Vontade Mesmo a faixa-título, que abre o LP, é arrebatadora. De autoria de Raulzinho, a composição faz reverencia à Muito à Vontade, clássico de João Donato (ouça a original) que também está no álbum. Mas À vontade Mesmo reserva muito mais: de Vinicius e Carlinhos Lyra: Primavera e Você e Eu; de Tom Jobim, Samba do Avião; de Tom e Aloysio de Oliveira, visionário fundador da gravadora Elenco, o clássico Inútil Paisagem ganhou releitura de grande personalidade. Há também no LP temas de autores menos conhecidos do grande público, mas não menos importantes para a consolidação da primorosa música brasileira pós-bossa nova: Olhou Pra Mim (de Sylvio César e Ed Lincoln, dois craques dos bailes de sambalanço); e Estamos Aí (da grande dupla Durval Ferreira e Maurício Einhorn, respectivamente, violonista e gaitista, que integraram o combo Os Gatos – liderado por Durval – e assinaram outro clássico da bossa nova, Batida Diferente). Dois temas estrangeiros fecham esse biscoito fino embalado com a arte do grande artista gráfico Tide Hellmeister: Jor-Du, do pianista americano Duke Jordan; e o standard Fly Me To The Moon, de Bart Howard. Prova inconteste de que Raulzinho e o Samabalanço estavam “à vontade mesmo” no estúdio, o álbum teve os arranjos escritos a partir de sugestões do quarteto, feitos durante o processo de gravação.
Em 1968, liderando outro supergrupo, o octeto Impacto 8, Raulzinho lançou o álbum International Hot, sua “despedida fonográfica” do Brasil (ouça Tesouro de São Miguel). Em 1970, ele partiu para o México, onde tocou em diversos bares, com diversos músicos, e por lá permaneceu até o início de 1973, quando foi para os Estados Unidos e iniciou seus estudos na Berklee College of Music. Produzido pelo amigo Airto Moreira, estabelecido havia cinco anos nos EUA, Colors, o primeiro disco Made in USA de Raulzinho – que, enfim, assumiu o nome Raul de Souza – teve arranjos de J.J. Johnson, um dos maiores trombonistas americanos. Gravado na Califórnia, nos estúdios da gravadora Fantasy, o álbum (ouça a versão de Nanã) teve participações mais que especiais: entre outros, o baixista Richard Davis, os saxofonistas Cannonball Adderley e Sahib Shihab, e o baterista Jack DeJohnette.
Mas este foi apenas o primeiro capítulo de uma carreira internacional que consagraria Raul de Souza como uma lenda-viva de seu instrumento. Na sequência, em parceria com o super-produtor George Duke, que assinaria as duas obras, Raul lançou os álbuns Sweet Lucy (ouça a versão de Bananeira) e Don’t Ask My Neighbours (ouça Daisy Mae, de Duke).
No início de agosto último, dias após a morte de George Duke, aos 67 anos, entrevistei Raul, que hoje vive em contínua ponte aérea Brasil-França (ele mora em Paris), para repercutir a perda de seu grande amigo e um dos grandes músicos do jazz americano. Leia a íntegra. O programa Mosaico, da TV Cultura, dedicou a Raul um belo documentário (confira: parte 1, parte 2, parte 3, parte 4, parte 5 e final).
Dito tudo isso, caro leitor, confira a íntegra de À Vontade Mesmo na Rádio UOL e conclua que Raulzinho – chamado pelo produtor do disco, Roberto Jorge, de “Rei do Embalo” –, apesar do diminutivo do primeiro nome artístico, estava mesmo fadado a ser um gigante da música mundial.
Boas audições e até a próxima Quintessência!
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