A semente das palavras

Começo esta resenha por uma nota pessoal. O meu primeiro contato com a poesia de Manoel de Barros foi profissional. Em 1990, eu escrevia resenhas quase todas as semanas para o extinto caderno Letras do jornal Folha de S. Paulo. Era uma época em que ainda havia espaço para que a crítica literária fosse exercida com profissionalismo, pois não estava ainda reduzida a notas ínfimas, encolhidas para caber nos espaços exíguos que ainda sobraram na imprensa para a discussão literária. O jogo de comadres e interesses escusos já existia, mas não era ainda dominante. Assim, recebia do editor do caderno livros de escritores que desconhecia, lia-os, pesquisava sobre eles e escrevia a resenha. Posicionava-me frente às obras com independência e emitia livremente minhas opiniões, procurando sempre justificar quaisquer julgamentos de valor a partir do próprio texto resenhado. Não deveria ser sempre assim?

Conhecia muito pouco da poesia de Manoel de Barros quando recebi a edição da “poesia quase toda” do poeta, o volume Gramática Expositiva do Chão, para resenhar. Lembro-me de que havia lido, no ano anterior, 1989, na revista Bric-a-Brac no 3, um excelente artigo de Luís Turiba e João Borges que trazia uma entrevista e vários poemas de Manoel de Barros. Nele, afirmavam: “Há uma dívida para com esse país: a edição das suas obras completas (ou semicompletas, pois continua a criar). Os livros originalmente editados não estão disponíveis no mercado. Nem o próprio autor possui a coleção completa”.

Foi a publicação da “poesia quase toda” de Manoel de Barros que veio resgatar aquela dívida, possibilitando aos leitores, como eu, uma visão global da sua produção, que na época se compunha de nove livros, publicados entre 1937 e 1989. Era, então, uma obra muito pouco conhecida, que eu procurei apresentar aos leitores com as seguintes palavras:

Que o leitor ‘verde’ não se iluda: Manoel de Barros, que já foi chamado de ‘o poeta do Pantanal’, é, antes de mais nada, poeta. Um poeta denso e capaz de elaborar versos dos mais sofisticados e ‘estranhos’ e, ao mesmo tempo, claros e precisos. Está longe de ser um ecologista ingênuo. De fato, mora há mais de 40 anos no Pantanal e boa parte de sua obra é construída sobre o conhecimento profundo que acumulou das ‘coisas’ e dos seres da região. Mas a sua poesia não se reduz ao pitoresco, ao referente. Articulando de forma insólita e tensa os elementos fornecidos pela natureza a uma pesquisa linguística intensa, a uma busca de formulações novas e engenhosas, Manoel de Barros vem construindo, desde 1937, na maior parte do tempo afastado dos grandes centros culturais do país, uma obra poética recheada de estranhamentos, mistérios e descobertas que, aos poucos, vem recebendo o reconhecimento que merece: não só por vir do Pantanal, mas principalmente por ser, na sua maior parte, muito boa poesia.

Passados vinte anos, pouco teria a acrescentar. Sua obra tem hoje amplo reconhecimento na sociedade brasileira. É considerado um dos maiores poetas vivos do país. Só lamento que muitos ainda a admirem apenas pela lente do exotismo, e não como se deveria, por ser linguagem elaborada, por ser excelente poesia. E nada inocente.

A publicação de sua Poesia Completa pelo grande grupo editorial português Leya, que desde o ano passado se instalou em São Paulo e passou a publicar diversos títulos no Brasil, reúne, além dos nove livros já presentes na reunião de 1990, mais oito publicados desde então e ainda quatro infantis que apareceram desde 1999. A produção de Manoel de Barros evidentemente se intensificou e acelerou desde que o Brasil passou a notar sua poesia límpida e obsessiva. E nada inocente.

O volume apresenta um livro inédito, ao mesmo tempo publicado em separado pela Leya, Menino do Mato, que podemos usar para demonstrar o método compositivo reiterativo e rigoroso do poeta do Pantanal. E nada inocente.

A inocência de Manoel de Barros é aparente e construída com rigor. Seu resgate da visão e principalmente da linguagem infantil é meticuloso e evita o artificialismo, até porque não é um exercício mimético, de pura imitação da linguagem da criança, mas de resgate da surpresa pueril perante as descobertas mínimas do mundo.

O livro se divide em duas partes. A primeira, Menino do Mato, abre-se com uma epígrafe de Kierkegaard: “O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre”. O leitor é levado de imediato a pensar no poema 3 de maio, de Oswald de Andrade, cuja epígrafe abre a segunda parte da obra: “Aprendi com meu filho de dez anos/Que a poesia é a descoberta/Das coisas que eu nunca vi”, até porque o livro desenvolve esse tema desde a primeira página: “Ali, a gente brincava de brincar com palavras/tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!”. Note-se que o eu lírico vê a construção poética como brincadeira com as palavras e também como observação dos aspectos mais curiosos da natureza. Isso é reforçado no trecho a seguir: “O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias/para a gente bem entender a voz das águas e/dos caracóis./A gente gostava das palavras quando elas perturbavam/o sentido normal da ideias./Porque a gente também sabia que só os absurdos/enriquecem a poesia”. Nesta passagem está a essência da poesia de Manoel de Barros. Ao elogio da inocência e do império dos sentidos, tal qual o heterônimo “sensacionista” de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Manoel de Barros acrescenta uma preocupação com a simplicidade da linguagem em que se ouvem claros ecos de Oswald de Andrade, um certo deslocamento sintático e a criação sutil de termos novos que insistem em surpreender ou “perturbar o sentido normal das ideias”, bem a gosto de Guimarães Rosa: “O Pai achava que a gente queria desver o mundo/para encontrar nas palavras novas coisas de ver”. Outro aspecto evidente no trecho em questão é o rompimento de Manoel de Barros com os padrões usuais da metrificação poética. Não só se utiliza do verso livre, mas também quebra as expectativas do leitor quanto à colocação das palavras nos versos. Note-se em “para a gente bem entender a voz das águas e/dos caracóis”. Como é intencional a quebra do verso precisamente no conectivo “e”, algo pouco usual que implica clara quebra do ritmo normalmente esperado e intensifica a surpresa semântica de se associar a voz das águas aos caracóis.

A linguagem de Manoel de Barros é direta e simples, mas não deixa de recorrer, sistematicamente a termos um pouco fora da língua corrente popular. A utilização recorrente de termos como “arrebol” e “ocaso”, assim como referências a Todorov e Herbert Read, mostra um eu lírico requintado que se disciplina para escrever de maneira objetiva. Outro aspecto fundamental da poética de Manoel de Barros é sua capacidade infindável de criar imagens fortes e surpreendentes, como “tinha no olhar um silêncio de chão” ou “o sonho do silêncio era ser pedra”. Recorre, para formá-las, precisamente à “infância da palavra” que insiste em buscar, por isso mesmo revelando um pendor constante para a sinestesia.

Em outras palavras, a poesia de Manoel de Barros é um consciente exercício de busca da essência da linguagem e da poesia, composta com método, precisão e sem qualquer inocência: “Eu queria pegar na semente da palavra”. Pegou.


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