Para falar de Manoel de Barros não sei bem o que se faz necessário, sei que é preciso ter um olhar desformador, como ele já havia dito em poema, suplantar a saudade e agarrar-se aos rastros de passarinhos − ainda mais quando se quer falar de didática da invenção. Mas que didática é essa que faz o poeta para dizer o verso? Talvez cheirar e caçar palavras, e jogar com elas o jogo da desmontagem do olho.
Mas para tal intento, convidei outro escritor escondido, que deixa o estilo de poeta transparecer em suas obras de filosofia e outras áreas: meu colega e amigo Elton Luiz Leite de Souza, que escreveu um estudo raro sobre nosso saudoso inventor: Manuel de Barros: a Poética do Deslimite (7letras/FAPERJ, 2010). Assim principia Elton:
“Em anos recentes, já com mais de 80 anos, uma ideia foi apresentada a Manoel de Barros: poeticamente, escrever uma memória. Afinal, muito o poeta já havia vivido e escrito. Sua fértil longevidade pedia mais do que uma memória, seriam três memórias: da infância, da vida adulta e da velhice. O projeto consistia em três memórias. Elas seriam escritas uma a uma, com intervalos regulares de tempo, e seguiriam uma ordem cronológica com começo, meio e fim, tal como supomos ser a lógica da vida. A primeira memória, a da infância, veio ao mundo. Ela surgiu expressa em um ‘inauguramento de falas’ (Gramática Expositiva do Chão, Civilização Brasileira). Essa memória nasceu singular e múltipla, pois o poeta fala não apenas de uma, mas de três infâncias. Sim, o poeta em seus deslimites poético-existenciais teve não uma, mas três infâncias. E cada uma mereceu um livro: a primeira infância, a segunda infância e a terceira infância. Porém, engana-se quem se fia em cronologias. A primeira infância não é mais infância do que a segunda e a terceira. Há apenas uma infância, e esta é múltipla, heterogênea, inumerável. O poeta, diz Manoel de Barros, é aquele que ‘vai até a infância e volta’. E aquele que vai não é o mesmo que retorna (Encontros: Manuel de Barros, Azougue).
Enfim, vieram ao mundo as três infâncias. Como as memórias da vida adulta e da velhice não nasciam, o poeta foi indagado a respeito, no que respondeu: ‘só tive infância’. Ele diz que em seu lápis, na ponta do seu lápis, ‘há apenas nascimento’, ‘só narro meus nascimentos’. A ‘velhez não tem embrião’. A velhez não é propriamente uma idade, mas a impossibilidade de se perceber como ‘forma em rascunho’, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez, uma vez que para o jornal de amanhã, para a
vida de amanhã, ela já será cadáver: ‘A palavra até hoje me encontra na infância’.
No poema ‘Invenção’ (Memórias Inventadas, Planeta), o poeta dialoga com um menino que nasceu do seu lápis: ‘Inventei um menino levado da breca para me ser’, diz o poeta, ‘passarinhos botavam primaveras em suas palavras’, ‘(…) ao fim me falou que ele não fora inventado por esse cara poeta/ porque fui eu que inventei ele’. O ‘eu’ deste último verso não é um eu lírico, ele é um sujeito coletivo como lugar da invenção. Ele é o ‘eu’ do menino que o poeta inventou para (re)inventá-lo, empoemá-lo (O Guardador de Águas, Art Editora), enfim, para terapeutá-lo (Livro sobre Nada, Record).
O menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa. Esse menino, diz o poeta, é ‘a criança que me escreve’. O menino inventa o poeta para que este (re)invente não apenas nossas palavras, mas igualmente nossas maneiras de ver e sentir o mundo: ‘A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças’, como exercício de ser criança.
Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que possui visão fontana (Concerto a Céu Aberto para Solos de Aves, Record), uma visão que é fonte do que vê. É uma ‘visão comungante’. A visão assim compreendida é ‘um ato poético do olhar’(Menino do Mato, LeYa), pois ‘o que dá dimensão às coisas é primeiro a alma, o olho da alma’. Não
é uma visão que constata o referente ou objeto; diferente- mente, ela é uma visão que vê, antes, o sentido – que é a alma das coisas: ‘beleza e glória das coisas o olho é que põe’, uma vez que ‘é pelo olho que o homem floresce’(Livro de Pré-Coisas, Record). As águas que brotam da fonte do poeta têm só um nome: amor. ‘Se a gente não der o amor ele apo- drece em nós’. E o poeta é aquele que diz ‘eu-te-amo para todas as coisas.’ É esse elemento que está em tudo, e que é a Vida de tudo em processo, é este elemento o que o poeta vê e sente, primeiro nele, como metamorfose e encantamento.
No poema ‘Escova’, Manoel de Barros diz ter visto, quando criança, dois homens ‘escovando osso’. Isso o afetou singularmente. Tempos depois, ele soube o nome do que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam ‘arqueologia’, eles eram ‘arqueólogos’: ‘No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor’. Desse aprendizado ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante, só que com as palavras. Ele aprendeu a ‘escovar’ as palavras. Escovar as palavras é também escovar nossas mentes e maneiras de perceber, para assim limpar delas os clichês. Escovar palavras e mentes é ‘empoemar-se’. Por isso, ler Manoel de Barros é empoemar-se. E isso não se faz sem alegria.
A primeira vez que ouvi falar de Manoel de Barros foi em uma aula de filosofia ministrada por um professor pelo qual eu tinha uma imensa admiração, o filósofo Claudio Ulpiano. Este citou um verso do poeta para ilustrar uma ideia da filosofia. Eu tinha pouco mais de 20 anos. Uma outra pessoa ‘desabriu em mim’. Nunca mais parei de comungar com seus versos, seus pensamentos, suas visões comungantes. Ele me terapeutou. Parte dessa ‘terapia’ foi me curar de uma propensão acadêmica de pouco olhar para o Brasil. Ficamos com os olhos teóricos na França, na Alemanha… e não vemos o nosso quintal. O poeta me ensinou a ‘desaprender os saberes que vêm em tomos’. Dessa terapia verbal, ousei escrever um livro sobre o poeta. O próprio poeta foi meu primeiro leitor, pois enviei os rascunhos, as ‘formas em rascunhos’, para ele. Eu pedia sua autorização para publicação. Obtive o endereço do poeta com sua filha, a Martha Barros, em 2008. Ela me orientou a não telefonar para ele e muito menos escrever-lhe e-mails. Eu deveria escrever para o poeta à mão, pois assim ele veria, além da letra, o espírito. Fiz o recomendado.
Enquanto não vinha a resposta do poeta, fiquei com o coração na mão. Um dia, recebi uma carta com letrinha miudinha, parecendo caminho de formiga. Com generosidade e atenção, ele autorizou a publicação do livro. ‘Voei fora da asa’ de tanta alegria. No livro, foram com essas simples palavras que terminei a apresentação que fiz do querido e inestimável poeta: ‘Mais do que um poeta, Manoel de Barros é um pensador, um pensador brasileiro. Empregamos aqui ‘brasileiro’ no sentido mais genuíno e rico que esta palavra pode ter, pois ser brasileiro é ser, em essência, ‘mestiço’.
Não nos referimos, claro, a uma mestiçagem baseada em cores de pele, mas na mistura singular de almas heterogêneas que fazem nascer em uma única alma a capa- cidade de falar e sentir por muitas. Só a mestiçagem de almas pode dar nasci- mento a um estilo ao mesmo tempo singular e plural, poético e filosófico, autóctone e estrangeiro’(Manoel de Barros: a Poética do Deslimite).”
Taí, o Elton que fala e “poema” ao escandir conceitualmente a poesia do Manoel. Outra colega também escreveu sobre o poeta − Marinei Almeida, professora pesquisadora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat): “É assim que ele, Manoel de Barros, nos autoriza pensar: o dia envelheceu e o grande poeta das coisas inventadas, das infâncias, do voo fora da asa, das crianças e dos bichos curvou-se para dentro de seu recolhi- mento, para dentro de sua casca de caramujo, pois, um grande poeta nunca morre. Manoel de Barros continua vivo por meio de seus mais de 27 livros publicados e festejados em uma carreira cuja duração de mais de sete anos assinala a construção de mundos por meio da linguagem poética”.
No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do quintal: Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro. (“A Arte de Infantilizar Formigas”, em Livro sobre Nada)
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