O subconsciente no palco do teatro

Celso Frateschi em cena de "Sonho de Um Homem Comum". Foto:
Celso Frateschi em cena de “O Sonho de Um Homem Comum”. Foto: Águeda Amaral/ Divulgação

Escritos pelo autor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) em diferentes momentos de sua vida, O Sonho de um Homem Ridículo, Memórias do Subsolo e O Grande Inquisidor (trecho de Os Irmãos Karamázov) são textos sem nenhuma relação direta um com o outro, ao menos no que se refere às histórias narradas e aos personagens apresentados. Para o ator Celso Frateschi, do Ágora Teatro, no entanto, as três obras trazem um forte diálogo entre si ao tratar com contundência de questões profundas do subconsciente e da condição humana. Tanto é que elas se tornam, na montagem da companhia, parte de uma mesma sequência, a Trilogia do Subterrâneo, apresentada em monólogos interpretados por Frateschi, 64 anos, sob a direção de Roberto Lage, 69.

Bastante fiel aos textos de Dostoiévski, a trilogia adaptada por Frateschi traz, porém, uma grande diferença em relação aos originais: o protagonista das peças é o mesmo, reforçando o laço entre as histórias. “Aquele personagem que vive o sonho, vive ainda o pesadelo da Inquisição e depois o buraco do subsolo onde ele se mete”, explica o ator. Em fluxos de consciência, como se estivesse em diferentes momentos da vida, o personagem adentra seus piores medos, questiona sua própria existência e coloca à prova suas crenças. “Dostoiévski é extremamente verdadeiro no que escreve, sem nenhuma concessão. Às vezes a gente até pensa: ele podia pegar mais leve! Mas não, são fluxos em que ele não põe breque”, diz Frateschi.

A primeira peça em cartaz, Sonho de um Homem Ridículo, retrata um homem que, ao constatar o quão ridícula é sua existência, decide colocar fim à própria vida. Ao adormecer com um revólver carregado nas mãos, no entanto, o personagem tem um sonho fantástico que, ao lhe revelar o melhor e o pior do ser humano e do mundo, o faz repensar sua vida. Com a estreia da segunda montagem, O Grande Inquisidor, em maio, a primeira peça segue em cartaz, e o mesmo acontecerá quando entrar o espetáculo seguinte, em julho. Ao final, os três monólogos estarão em cartaz ao mesmo tempo, possibilitando ao público assistir às obras em dias seguidos. O Grande Inquisidor, uma espécie de conto dentro do clássico Os Irmãos Karamázov, relata uma nova vinda de Cristo ao mundo, agora no século XVI, quando ele é novamente preso e julgado. Acusado de ter apresentado a liberdade aos humanos, o Messias é condenado à fogueira pelo cardeal do Santo Ofício.

Por fim, a terceira montagem, Memórias do Subsolo, apresenta um protagonista que, segundo Frateschi, “após passar pelo sonho e pelo desespero, está emburacado e tenta buscar alguma justificativa para a sua existência”. O anti-herói, obcecado com a sua impotência em lidar com a realidade, parece se afundar em uma visão negativa de mundo. Ainda assim, para Frateschi, a trilogia não revela um Dostoiévski pessimista. “Ele realmente questiona de uma maneira radical o ser humano, mas talvez aí esteja também a sua grande crença na humanidade. Se desacreditasse, não tratava assim com tanta paixão nem gastava tanta vela. Ele não é um escritor que mostra a impossibilidade do gênero humano: mostra os buracos em que entra, mas também as alturas que atinge. O que ele apresenta é visceral, é o avesso do avesso, mas ao mesmo tempo o onírico do onírico, o lindo do lindo.”

Celso Frateschi em cena de "Sonho de Um Homem Comum". Foto:
Celso Frateschi em cena de “Sonho de Um Homem Comum”. Foto: Águeda Amaral/ Divulgação

Interiorização vital
A montagem das peças, que tem figurino e cenografia assinados por Sylvia Moreira, sócia do Ágora, reforça uma mirada contundente para o mundo psíquico do protagonista. Em uma pequena sala, em clima intimista no espaço da companhia sediada no tradicional bairro do Bixiga, em São Paulo, Frateschi interage com algumas projeções, um baú, uma mesinha e um sofá, iluminados por uma vela pendurada em um pequeno castiçal. Ao adentrar as contradições e complexidades da mente humana, Dostoiévski foi um dos romancistas que mais influenciaram o surgimento da psicanálise. O próprio Sigmund Freud (1856-1939) chegou a citar Os Irmãos Karamázov como o maior romance já escrito. Frateschi ressalta que, nos dias de hoje, em que temos pouca capacidade de olhar criticamente para nós mesmos, as obras do escritor russo seguem fundamentais: “Os textos de Dostoiévski provocam um exercício de interiorização vital, que nos provoca e nos liberta e ao qual estamos pouco acostumados”.

Decorre desse e de outros aspectos da obra a extrema atualidade do autor russo. “Todo clássico que montamos é no sentido de conversar com a época em que a gente está vivendo, não com a época em que ele foi escrito. Falamos para o nosso tempo”, diz Frateschi. Isso não exige, segundo ele, nenhum tipo de adaptação que “modernize” a obra ou a desloque no tempo, mas a compreensão daquilo que ela revela ou provoca na contemporaneidade.
A Trilogia do Subterrâneo acaba ganhando novos ares, inclusive, em tempos de crise, nos quais a manipulação de informações no jogo político se torna uma constante. “Dostoiévski é verdadeiro no que coloca, sem nenhuma concessão. E isso me parece uma bela reflexão neste momento, em que não é mais a verdade dos fatos que interessa, mas aquilo que se acha que é. A gente percebe hoje uma mistificação total da própria verdade.”

Ao tratar do que é verdadeiro e genuíno, Frateschi acaba por falar do trabalho do Ágora Teatro – que não busca patrocínios ou leis de incentivos justamente para ter liberdade criativa e não precisar fazer concessões artísticas – e da relação entre os seus integrantes. Especialmente de sua relação com o diretor Roberto Lage, que fundou ao seu lado a companhia, em 2000. Mas a parceria é mais antiga: “Brinco que ele me impediu de começar a fazer teatro antes, porque eu era ainda adolescente e tentava entrar no grupo que ele dirigia, na Lapa, e ele falava: ‘Você é muito moleque!’. Trabalhar com ele é um prazer, principalmente porque, acho que talvez pela idade, nós já não temos uma necessidade de autoafirmação. Então é tudo muito solto, muito verdadeiro, sem frescuras, uma entrega o tempo inteiro”. Tudo muito verdadeiro, diz o ator, assim como são os textos da Trilogia do Subterrâneo. “Não daria para ser diferente.”

Trilogia do Subterrâneo
Ágora Teatro – Rua Rui Barbosa, 664, Bela Vista, São Paulo.
Memórias do Subsolo: estreia 29 de julho
Até 18 de setembro
Apresentações às sextas (21h30), sábados (21h) e domingos (19h)


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