O violão soberano de Rosinha de Valença

091-rosinhadevalenc3a7a-apresentandorosinhadevalenc3a7a (1)Bem, amigos, chegamos hoje ao 30° álbum destacado em Quintessência. Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, cabe aqui a mea culpa deste humilde escriba: só agora me dou conta de que este espaço tornou-se espécie de “Clube do Bolinha” da música brasileira, pois, até o momento, nenhum álbum havia sido dedicado a compositoras ou intérpretes femininas. Não pensem vocês, amigas leitoras, que este pobre colunista vem sendo acometido por notória misoginia. Pelo contrário. Distinção de gêneros, com exceção catalogar dos musicais, é algo que não existe em minha discoteca e em minhas pesquisas. Então vamos aos possíveis álibis desse machista culposo: no período tratado nesta coluna – entre 1960 e 1980 –, a produção masculina em nossa música popular é volumétrica e predominante. Exceto às grandes cantoras dos anos 1960 – Claudette, Doris, Alaíde, entre outras – trabalhos autorais assinados por mulheres, infelizmente, só começaram a ser mais valorizados, no Brasil, a partir dos anos 1970 – década marcada pela afirmação de superintérpretes como Gal Costa e Maria Bethânia. Outro porém, contemporâneo: os álbuns aqui dissecados dependem do pré-requisito de ter disponíveis os arquivos virtuais para que nossos leitores possam ouvir a íntegra e, assim, entender, de fato, do que estamos falando. Você mesmo poderá constatar: em uma busca rápida na internet, associando nomes femininos de artistas brasileiros com “álbum completo” ou “full álbum” os resultados, infelizmente, são pífios.

Mas, enfim, deixemos as milongas de lado e vamos ao que realmente interessa: o violão magistral de uma moça nascida em 30 de julho de 1941, no interior fluminense, na mesma cidade de Valença que nos deu Clementina de Jesus, chamada Maria Rosa Canellas.

Além do irmão Roberto, músico de um regional atuante em Valença, Maria Rosa era também sobrinha do violonista Fio da Mulata, músico dos mais requisitados na Época de Ouro do Rádio, que atuou ao lado de Araci de Almeida, Ademilde Fonseca e Lúcio Alves, entre outros. Fio também dirigiu programas de calouros na Rádio Clube. Por influência de Roberto e do tio, seu primeiro professor, Rosinha começou a estudar violão na infância. Já aos 12 anos, a menina impressionava o público local apresentando-se em bailes e em participações de regionais. Em 1960, aos 19 anos, abandonou de vez os estudos, ao concluir que o caminho para a música era irreversível.

Três anos mais tarde, no início de 1963, driblando a enorme timidez, Rosinha mudou-se para a capital fluminense em busca de maior projeção para sua carreira. Na Cidade Maravilhosa, teve a sorte de cruzar o caminho do cronista Sergio Porto – o saudoso e genial Stanislaw Ponte Preta. E foi ele quem levou a moçoila para apresentá-la a Aloysio de Oliveira, o patrão da Elenco (leia post sobre o produtor) e a outro ás das seis cordas, Baden Powell – que há pouco também havia arrebatado o público carioca, ao chegar da pacata Varre-Sai com um violão do tamanho do mundo.

Mergulhando no universo boêmio e masculino do Beco das Garrafas, Rosinha deu início a uma temporada, de oito meses, no mítico Bottles (leia post que trata da recente reabertura do bar), de enorme sucesso e consolidação de seu nome no circuito instrumental. Teve também carta branca de Aloyiso para produzir, pela Elenco, seu álbum de estreia.

Lançado em 1964, Apresentando Rosinha de Valença é um dos clássicos do selo. A bela capa foi produzida com a excelência da dupla Cesar Villela (arte gráfica) e Francisco Pereira (foto). Em meio a uma belíssima arte não creditada, mas, ao que tudo indica, do ilustrador Fortuna (foto abaixo) a contracapa traz texto de Sergio Porto, no qual o cronista esclarece o porquê do nome artístico dado por ele à violonista: “Elogiar Rosinha eu não posso. Sou padrinho da moça. Quando ela chegou ao Rio, vinda de Valença, fui eu quem a levou, pela primeira vez, para se apresentar em público. O sucesso foi enorme. Escolhi nesse dia o seu nome de Rosinha de Valença porque achei que ela toca por uma cidade inteira”.

Contracapa do LP "Apresentando Rosinha de Valença" (Elenco, 1964)
Contracapa do LP “Apresentando Rosinha de Valença” (Elenco, 1964)

Para acompanhar a moça, às vésperas de arrebatar cidades de todo o mundo, Aloysio – como de praxe, produtor do biscoito fino –, convocou um time de primeiríssima: o baterista Dom Um Romão (do Copa Trio), o baixista Sergio Barroso (que, depois, integraria o Rio 65 Trio, ao lado de Dom Salvador – leia post sobre Som, Sangue e Raça – e Edison Machado – leia post sobre Edison Machado é Samba Novo), o flautista Jorginho e o violonista e pianista Oscar Castro Neves (gentilmente cedido pela gravadora RGE). Autor do tema Até Londres (no qual faz scats vocais com Rosinha), Castro Neves é também o arranjador do LP. O repertório inclui clássicos da nascente Bossa carioca (Ela é Carioca, de Tom e Vinícius, Minha Saudade, de  Donato e João Gilberto), da Bossa Paulista (Tema do Boneco de Palha, de Vera Brasil e Sivan Castelo Neto) e um afro-samba que já nasceu clássico (Consolação, de Baden e Vinicius). Além desses, completam o LP: Tristeza em Mim, de Mauro Tavares e José Guimarães; Praça 11, de Herivelto Martins e Grande Otelo; Atirei o Pau no Gato (sim, o tema infantil, de domínio público); e o clássico samba de Noel Rosa, Com Que Roupa, interpretado na voz miúda e acanhada de Rosinha – a propósito, a timidez da moça com trejeitos de caipira, inspirou Jorge Ben a compor a deliciosa Bicho do Mato (ouça a releitura de Elis Regina), um dos destaques de Ben é Samba Bom, terceiro álbum do Babulina (ouça a íntegra do LP).

Ainda em 1964 Rosinha integrou, no Teatro Paramount, do lendário Walter “Pica-Pau” Silva, o show O Fino da Bossa, megassucesso da TV Record, apresentado por Elis e Jair Rodrigues. Colaborou também para artistas como Nara Leão, as baianas do Quarteto em Cy e Eliana Pittman (veja apresentação da cantora na Itália, em 1971, no especial intitulado Voice of Brazil).   

Mas as fronteiras literalmente ficariam invisíveis para Rosinha a partir de 1965. Ocasião em que ela partiu em turnê para Estados Unidos integrando o Brasil 65’, do pianista niteroiense Sergio Mendes (leia post sobre seu Sexteto Bossa Rio), ao lado de Jorge Ben, Chico Batera, o baixista do Bossa Três, Tião Neto e a cantora Wanda Sá. No início da turnê americana, Jorge abandonaria o grupo, após sofrer preconceito em uma barbearia de Los Angeles, ao ser ignorado pelo par de profissionais do salão, que ociosamente lia jornal quando ele chegou ao estabelecimento. O episódio lamentável é narrado por Ruy Castro em Chega de Saudade. “Jorge sentou-se despreocupadamente numa das cadeiras vazias, disse ‘barba e cabelo’ e ficou esperando. Só se tocou quando um dos barbeiros lhe disse, usando apenas um canto da boca ‘estamos ocupados’. Ben saiu dali e foi direto à Varig comprar a passagem de volta.” A incursão americana de Rosinha ainda rendeu participação em outro belo álbum Bud Shank & His Brazilian Friends, disco do saxofonista e flautista americano, com participação do mestre João Donato (leia post sobre Muito à Vontade), lançado pelo selo Pacific Jazz (ouça Um Abraço no Bonfá e veja a capa da reedição brasileira feita pela Elenco).  

Assista (abaixo) a um raro vídeo de Rosinha, Rubens Bassini (percussão), Sergio Barroso (contrabaixo), Chico Batera e J.T. Meirelles (flauta) apresentando o tema Consolação, na Alemanha, em 1966:



Mesmo sem a presença de Jorge Ben, impulsionado com a releitura de duas canções de sua autoria, Mas Que Nada e Chove Chuva, Sergio e sua trupe conquistariam os EUA. Com o nome Brasil 65’, o grupo lançou dois álbuns com o violão de Rosinha reinando soberano, e a cantora Wanda Sá como intérprete: Brasil’65 Wanda de Sah featuring Sergio Mendes Trio (Capitol – ouça a releitura de Reza, de Edu Lobo) e In Person at El Matador!: Sergio Mendes & Brasil’65 (Atlantic – ouça Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius).  

De volta ao Brasil, em 1967, Rosinha integrou o grupo de Maria Bethânia no espetáculo Comigo me Desavim. No ano seguinte, a convite do Itamaraty, fez uma turnê por países da Europa e da África e teve a oportunidade de tocar com estrelas como Stan Getz, Sarah Vaughan e Henri Mancini. Nos anos 1970, Rosinha tornar-se-ia fiel escudeira do sambista Martinho da Vila.

Em 1980, encerrando uma discografia de 11 grandes títulos, Rosinha fez par com outro gigante do violão brasileiro, o maestro Waltel Branco. O encontro histórico ficou registrado no LP da Som Livre Violões em Dois Estilos: Rosinha de Valença e Waltel Branco.

Mas, dessas grandes injustiças da vida, a trajetória triunfal da maior violonista do País teve fim, de forma lenta e trágica. Em 1992, após sofrer uma parada cardíaca, Rosinha teve uma paralisia cerebral que a colocou em estado vegetativo por 12 anos. Em 1994, liderados por Maria Bethânia, com o objetivo de arrecadar fundos para às despesas do tratamento de Rosinha, uma série de artistas prestaram homenagens à ela, no Canecão.

A menina que tocava por uma cidade inteira e encantou o mundo partiu há exatos 10 anos, em 10 de junho de 2004. Ponto final para uma grande mulher e uma embaixadora das belezas indizíveis da nossa música ao redor do mundo. Naquele mesmo ano, foi lançado pela Biscoito Fino, em CD, o tributo Namorando a Rosa. A compilação reúne artistas como Bethânia, Miúcha, Caetano, Chico, Hermeto e Alcione, entre outros.

Ouça o lado A de Apresentando Rosinha de Valença

Ouça o lado B de Apresentando Rosinha de Valença

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Em tempo: em posts anteriores, Quintessência reverenciou outros dois mestres do violão popular brasileiro. Confira 

Jacarandá (1973), de Luiz Bonfá

Vince Guaraldi, Bola Sete and Friends (1963), de Vince Guaraldi e Bola Sete 


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