O mote desta coluna “discos obscuros e fundamentais da música brasileira de 1960 a 1980”, eventualmente é quebrado pela causa nobre de prestar reverência a grandes compositores e intérpretes da música brasileira que, nessas três décadas do século passado, experimentaram momentos de grande êxito comercial, mas que, hoje, no entanto, não foram devidamente redescobertos pelas novas gerações de ouvintes. Caso do grande Hyldon de Souza Silva, soteropolitano de berço que fez estrondoso sucesso nacional a partir da primeira metade dos anos 1970, simplesmente como Hyldon. História que teve início em 1958, quando ele partiu com sua mãe, Hildonete, de Salvador para Niterói. Em 1967, com o retorno da mãe para a capital baiana, Hyldon foi morar com o primo Pedrinho da Luz, guitarrista do The Fevers. Como o garoto já estava obcecado por música e tocava violão e guitarra com excelente desenvoltura em sua primeira banda, Os Abelhas, pouco depois Pedrinho o convidou para integrar uma gravação com os Fevers, no lugar do guitarrista Almir. O convívio com o efervescente cenário musical carioca e o sucesso de sua primeira composição, Eu Me Enganei (cujo compacto com interpretação do cantor argentino Robert Livi vendeu mais de 100 mil cópias), em pouco tempo, levou o jovem baiano a colaborar com artistas do calibre de Wilson Simonal e Toni Tornado, e trilhar um caminho ascendente, como veremos a seguir.
Hyldon completa 63 anos nesta quinta-feira. Portanto, é dia de celebrar seu importante legado para nossa música popular. O álbum tema deste trigésimo sexto post de Quintessência é uma das obras-primas do soul miscigenado com samba e ritmos nordestinos, a estreia solo de Hyldon, Na Chuva na Rua na Fazenda… biscoito finíssimo, produzido à toque de caixa em 1975, pela Polydor, imediatamente após o lançamento de dois compactos simples liderados por um par de composições que, a partir da primeira execução na rádio Mundial, pelo saudoso DJ Big Boy (artífice, ao lado de Ademir Lemos, dos lendários Bailes da Pesada), fizeram estrondoso sucesso nas rádios AM e FM, e se tornaram clássicos instantâneos: a faixa título do primeiro LP e As Dores do Mundo. Duas composições sublimes, marcadas pela dor-de-cotovelo do autor, acometido pela ausência de uma bela mineira, chamada Gioconda, que partiu o coração de Hyldon nos primeiros anos da década de 1970.
Eles se conheceram no verão de 1968, no pequeno município baiano de Madre de Deus, uma ilha paradisíaca. Gioconda era de Juiz de Fora, cidade mineira três horas distante do Rio de Janeiro. Depois de voltarem para seus destinos de origem, apaixonado, Hyldon se empenhou em descobrir o telefone do hotel do pai de Gioconda, em Juiz de Fora, para tentar prosseguir com ela a intensa paixão de veraneio. Em 1969, ele já fazia algum dinheiro com a venda de suas composições e passou a colaborar com o grupo Os Diagonais, com os amigos Camarão e seu irmão Cassiano (o genial compositor de Primavera e Coleção que, ao lado de Tim Maia e Hyldon, formaria a “Santísisma Trindade do Soul Brasileiro”). Hyldon juntou dinheiro suficiente para comprar um carro e, enfim, conseguiu retomar a relação com Gioconda, caindo na estrada, sempre que possível, para matar as saudades da moça, em Juiz de Fora.
No verão da virada de 1970 para 71 veio o golpe no coração do compositor: Gioconda, que havia ido passar a folia de carnaval com os pais em Itaipava, trocou Hyldon por um rapaz carioca. Nosso soulman, que à época viva em Ipanema, soube da péssima novidade e o impasse acabou por colocar fim à relação dos dois. Hyldon estava, então, em uma fazenda, sob chuva torrencial, com um grupo de amigos. Procurando abrigo e isolamento em um coreto entornado por sapês, ficou ali, por horas, buscando consolo nas seis cordas de seu violão. Experiência tão marcante para ele que, dois anos depois, o vazio da ausência de Gioconda e as lembranças daquele triste carnaval fizeram com que a composição sublime – com todos os elementos: a chuva, a fazenda e a casinha de sapê (na verdade o coreto) – surgisse, assim, de uma tacada só.
Pouco depois, com a mesma fluência telegráfica, Hyldon compôs As Dores do Mundo. Quando os compactos com as duas pérolas abriram caminho para que ele concretizasse o sonho de ter seu primeiro LP lançado pela Polydor, em 1975, Gioconda estava casada, com filhos, em Brasília. A nova estrela ascendente da MPB era destaque nos lugares mais remotos do País e havia sido entrevistada em um jornal diário do Distrito Federal. Ao reconhecê-lo, Gioconda ligou para o repórter que havia encontrado Hyldon, a fim de obter com ele o número do telefone do cantor para tentar uma reaproximação. Quando soube da novidade, Hyldon estava em Teresópolis, casado com outra mulher, e não autorizou que seus dados fossem repassados. Apesar do gesto evasivo, o compositor passou a ter sonhos e pesadelos recorrentes com Gioconda, a maioria deles tendo como “locação” Juiz de Fora. Meses depois, Gioconda conseguiu, enfim, falar com ele por telefone. Lógico, ambos consentiram que, cada um vivendo sua vida, não havia o menor sentido em alimentar expectativas. Cada um seguiu seu rumo. Ou melhor, Hyldon seguiu seu rumo, pois Gioconda, pouco depois, teve o casamento rompido – o marido perdeu as estribeiras, de tanto ciúmes do compositor.
Deixemos, pois, a sessão fofoca de lado para falar do que realmente importa: o talento singular desse artista fundamental. Dom explicitado neste álbum, apaixonante desde a primeira audição, que reúne 12 composições de Hyldon – com exceção de Balanço do Violão (em parceria com Beto Moura) e Sábado e Domingo (escrita a quatro mãos com Nenem). Não bastasse a pena genial do compositor, dono de um lirismo romântico invulgar, Na Chuva, Na Rua, Na Fazenda…, ainda contou com a participação do Azymuth, trio composto pelo tecladista José Roberto Bertrami, o contrabaixista Alex Malheiros e o baterista Ivan “Mamão” Conti (naquele mesmo ano de 1975, em que colaborou com grandes artistas como Marcos Valle, Quinteto Ternura, Erasmo Carlos, Erlon Chaves, entre outros, o trio, enfim, lançou seu primeiro álbum autoral, pela Som Livre, outro clássico da música brasileira dos anos 1970, que logo menos estará em Quintessência – ouça a íntegra).
Além da faixa que dá nome ao álbum – registrada com o subtítulo Casinha de Sapê – e As Dores do Mundo, a estreia triunfal de Hyldon reúne outras canções assíduas nas vitrola, nos dials das rádios AM e FM’s e nos toca-fitas dos saudosos automóveis dos anos 1970, como Vamos Passear de Bicicleta, Na Sombra de uma Árvore, Acontecimento, Quando a Noite Vem, Vida Engraçada, Meu Patuá e a autoexplicativa Guitarra, Violinos e Instrumentos de Samba.
Hyldon tornou-se ídolo de uma geração que prezava o romantismo sem perder o balanço, e sua consagração era para lá de previsível. O talento de instrumentista, compositor e arranjador o levou ao cargo de produtor da Polygram entre 1970 e 1973, período em que trabalhou para artistas como, entre outros, Erasmo Carlos, Wanderléa, Jerry Adriani e Odair José – com quem produziu todos os álbuns lançados pelo selo e registrou guitarra na censurada Uma Só Vida Só (Pare de Tomar a Pílula).
Celebre os 63 anos de Hyldon com a íntegra de Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda…, em alto e bom som!
Boas audições e até a próxima Quintessência!
Em tempo:
Outro grande artista do País também aniversaria hoje, o compositor, multi-instrumentista, arranjador e produtor Lincoln Olivetti, que assopra 60 velinhas. Em dezembro de 2013, na ocasião dos 20 anos da morte de seu saudoso parceiro musical Robson Jorge, Quintessência destacou o essencial álbum solo lançado por eles em 1982. Confira.
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