Na abertura do IV Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, realizado em setembro de 2016 na cidade de São Paulo, o artista chileno Alfredo Jaar (www.alfredojaar.net) apresentou sua experiência pelo mundo, na criação de obras em lugares e situações de alta vulnerabilidade social. Por exemplo, nos escombros da cidade de Fukushima ele encontra os restos de uma estação de rádio onde uma locutora decide permanecer para instruir a fuga das pessoas até que a radioatividade a atinge. Também diante da lousa vazia de uma escola, ele cria uma instalação com toneladas de giz, das crianças que jamais terão as aulas para as quais esse material se destinava. Alguns disseram que isso pode ser tocante e acalentador, mas que faltou arte na 32 Bienal de São Paulo Incerteza Viva.
A tematização de causas ambientais e raciais, a expressão da diferença de classe ou de gênero, o testemunho de opressão ou segregação não fazem de um objeto uma obra de arte e não é porque o sofrimento e a incerteza estão envolvidos que sua forma possui valência estética. A arte a serviço da educação, da cultura ou da transformação social deixa de ser arte por que sai de seu domínio próprio e original.
Frequentemente diz-se algo análogo sobre a psicanálise quanto se discute sua prática em escolas, hospitais e outras instituições. Como se isso fosse individualizar, psicologizar e patologizar processos privados em situações de domínio público e interesse coletivo. Como se isso fosse colocar a psicanálise a serviço de algum tipo de ação social, comprometendo sua neutralidade política. Por caminhos distintos e argumentos diversos esta conversa nos leva a perceber como estamos sendo esquemáticos e aproximativos, na arte e na psicanálise, mas também na política e na teoria social, quando confiamos em fronteiras tão simples entre público e privado, entre individual e coletivo, entre autônomo e instrumental.
A associação da psicanálise com um procedimento clinico padrão, geralmente realizado em consultórios “particulares”, para determinada classe social está sendo posta à prova pela experiência que estamos conduzindo junto com a jornalista Eliane Brum, do El País, e com Ilana Katz, pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP. Trata-se da situação vivida pela população atingida pela formação do lago da barragem de Belo Monte no estado do Pará. A remoção de milhares de indígenas e ribeirinhos, pescadores e ilhéus, ocasionada pela realização da maior obra de infraestrutura no mundo, em associação, agora tão mais conhecida, entre governo e empreiteiras, gerou um contingente de refugiados em seu próprio país. Pela lógica pública, negocial e contratual, uma casa é uma casa, um indivíduo é um indivíduo, e o interesse no progresso promovido pelo Estado é soberano. Ofertar coercitivamente casas de alvenaria, na periferia de uma grande cidade, com sua infra-estrutura abalada pelo inchaço populacional, para antigos moradores de palafitas, que viviam em íntimo contato com o rio, suas histórias, sua economia e sua mitologia, seria mesmo um “bom negócio”?
O conjunto desta “obra” de imoralidade e ilegalidade tem como um de seus efeitos colaterais a produção de novas formas de sofrimento. Sofrimento que se manifesta no aumento “inexplicável” de adoecimentos, cardíacos e circulatórios, de consumo de drogas e depressão, de violência doméstica e alcoolismo, de violência criminal e prostituição infantil. É fácil ver como a anomia e o sentimento crônico de injustiça e impotência produzem efeitos sistêmicos de devastação. Tão fácil quanto dizer, intimamente, que o progresso tem seu preço, para depois se perguntar sobre a origem de certos “problemas sociais”. Como se nossa capacidade de inferir causalidades fosse desativada simplesmente porque uma coisa são as ações públicas, outra seus efeitos devastadores na vida privada das pessoas. Como se o neoliberalismo não pudesse ser redefinido, simplesmente, como uma prática de gestão do sofrimento.
Alfredo Jaar criou uma “resposta” para o desastre nuclear japonês, nós estamos tentado uma “resposta” para a tragédia dos refugiados de Belo Monte. É possível que nossos esforços para municiar e potencializar os recursos locais dos trabalhadores em saúde mental sejam irrisórios. Quiçá ambos fracassemos estética e clinicamente, mas seria isso suficiente para dizer que a aposta não deveria ser tentada? Levaremos uma equipe de psicoterapeutas e psicanalistas para realizar uma escuta concentrada das pessoas, segundo livre procura por intermédio dos movimentos sociais, ambientais e de saúde locais, em seus domicílios. Apesar de fazermos parte de uma iniciativa mais geral envolvendo o ministério público de Altamira e uma dezena de outros projetos que vão da geologia à economia, da saúde à ecologia, coordenados pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, há peculiaridades da ação em saúde mental que tocam especificamente a relação entre o público e o privado. Uma relação que precisa ser reinventada no Brasil.
Em situação de aumento súbito de vulnerabilidade social e de violação generalizada de laços comunitários há impactos subjetivos agudos e imediatos. Colocar em palavras e construir leituras sobre o sofrimento imediato pode ser de algum auxílio. Isto tem que ser feito agora. Inaugurar o trabalho de luto do que foi perdido, ligar a emergência de sintomas com novos e antigos conflitos, apontar recursos presentes e emergentes são objetivos clínicos mais ou menos óbvios. Aqui nossa preocupação atende e segue a ajuda demandada pelos movimentos sociais da região e conta com sua coordenação. Nossa intervenção é curta e procura evitar o erro de abrir assuntos e questões para depois, em função da descontinuidade, aumentar o sentimento de desamparo. Daí que nosso interesse não seja apenas clínico, mas a partir do sofrimento privado encontrar e destinar a ele uma voz de inscrição pública e coletiva. Nossos relatos serão então narrativamente entremeados, reescritos e ficcionalizados, respeitante o sigilo, em colaboração com jornalistas e artistas. Um documento, assim produzido, será devolvido e guardado por esta comunidade e transposto para o resto do País. Com isso esperamos contribuir para o dever de memória, para o qual concorrem o testemunho como função transindividual requerido pela psicanálise e a escrita da história como ocupação do espaço público.
Nossa preocupação, nesta segunda parte da intervenção, é com o futuro. Efeitos traumáticos imediatos são conhecidos, porém efeitos profundamente deletérios emergem muito depois, quando a tragédia ora em curso estará esquecida ou banalizada. Esta é a condição para que a história se repita. Basta lembrar que no mesmo lugar onde hoje se erige Belo Monte ocorreu o morticínio derivado do ciclo da borracha, o massacre da construção da Transamazônica, os assassinatos impunes, como os de Chico Mendes e Dorothy Stang, as centenas de vidas perdidas na grilagem de terras, os holocaustos indígenas. Esperamos que esta “cápsula do tempo”, fruto do testemunho vivo e cruzado de pessoas, seja um gesto de desesquecimento, presente e futuro, uma forma de tornar o silêncio e a devastação agora inevitáveis, mitigada por um fragmento de memória coletiva.
Observemos que isso levanta um problema estético relevante, com o qual abrimos nosso texto. Como tratar do sofrimento sem explorar suas imagens, sem fazê-lo instrumento para um ganho de capital imaterial e para a fetichização “social” da obra? Ele é também correlato de um problema clínico. Como deflacionar o olhar que vitimiza subjetividades, apenas para nos fazer gozar com sua compaixão, mobilizando a indignidade para outros fins?
Ambas as dificuldades se reúnem em um problema prático que enfrentamos logo no início do projeto. Quem vai pagar por isso? É certo que os professores envolvidos estão fazendo o que deles se espera, que os psicoterapeutas e psicanalistas não serão pagos pelo trabalho de escuta em campo, que ninguém da equipe de apoio, jornalismo e audiovisual será remunerado. Contudo, isso não resolvia os custos de transporte e alimentação. Ainda que os recursos sejam exíguos, nestes tempos de cortes de recursos para educação e saúde, poderíamos tentar financiamentos com o Ministério da Saúde e com as agências de fomento. Afinal, existe um sistema público de assistência social e uma rede de associações especialistas em ações comunitárias, pensado para este tipo de situação. Foi aqui que começamos a entender que a reformulação das relações entre público e privado precisa de um novo início. Ao escutar os atingidos diretamente pela situação surgiu uma espécie de protesto: “Assim o Estado vai corrigir a atrocidade que fez aqui e tudo terminará com um apagamento “justo” da injustiça generalizada, aqui cometida? Não, obrigado!” Pensamos então nas muitas empresas que desenvolvem programas de apoio em situações de catástrofe e urgência humanitária. Novamente a enunciação que recebemos foi constrangedora. “De onde vieram a pressão e a força determinantes para construir a barragem, depois de 30 anos de resistência, senão destas bondosas e prestativas empresas interessadas no progresso? Não, obrigado, de novo!”. Psicanalistas, assim como artistas e bons educadores, são pessoas que se interessam por este tipo de resposta. São elas que nos convocam.
Se não podíamos contar com a força pública nem com a iniciativa privada, não haveria como obter recursos. Talvez a ONU ou os Médicos sem Fronteiras? Em que pese a presença de egressos deste último organismo internacional no projeto, os processos administrativos, requeridos por este tipo de apoio, pareciam lentos demais para a presteza exigida pela situação. Foi assim que surgiu a ideia de pedir doações diretamente para as pessoas pelo sistema Catarse [(www.catarse.me/refugiadosdebelomonte) .
Este texto é um agradecimento e uma resposta para as 1.298 pessoas que nos levaram a atingir, em 21 de outubro, 113% da meta necessária para realizar nosso projeto. Pessoas incomumente comuns, inúmeras delas anônimas, várias delas que pontuaram seus gestos com palavras, críticas e ponderações, o que o tornou cada vez mais coletivo, de interesse público, mas não estatal. Uma ação coletiva para pessoas com seus sofrimentos silenciosos, com seus interesses íntimos, mas não privados.
Assista a entrevista de Alfredo Jaar e de Christian Dunker para a Brasileiros
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