Celebrado na Europa e nos Estados Unidos, Que Horas Ela Volta?, terceiro longa-metragem de Anna Muylaert, entra em circuito nacional no próximo dia 27 de agosto. No Brasil, o drama protagonizado por Regina Casé tem tudo para repetir a carreira de sucesso que tem feito no exterior. Resumindo em números: em junho último, o filme foi lançado em mais de 70 cidades italianas e chegou à 8ª posição entre os mais vistos naquele país. Na França, há menos de um mês, cem cópias da película entraram em cartaz em 90 cidades.
O enorme interesse do público europeu, claro, foi despertado com a chancela de grandes vitrines mundiais, como a mais recente edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim. Com o sucessor de Durval Discos (2001) e É Proibido Fumar (2008), Anna emocionou o público alemão e, na disputa pela preferência popular, conquistou mais de 30 mil votos, número que credenciou o filme ao primeiro lugar da mostra Panorama. Repercussão análoga à provocada em janeiro, quando Que Horas Ela Volta? foi exibido, em primeira mão, no Sundance Film Festival, tradicional mostra americana criada, no Estado de Utah, pelo ator Robert Redford. Regina – que interpreta a babá e empregada doméstica Val – e a jovem atriz Camila Márdila – no papel de sua filha, Jéssica – dividiram o júri e conquistaram o prêmio de Melhor Atriz na categoria World Competition. Em Sundance, o filme também faturou o prêmio CICAE Art Cinema, concedido pelo júri independente da International Confederation of Art House Cinema.
As reverências internacionais conquistadas pelo longa-metragem são compreensíveis. Que Horas Ela Volta? aborda questões específicas da sociedade brasileira – sobretudo, o enorme fosso social que separa a chamada nova classe C da classe A –, mas também carrega mensagens universais, como o jogo de poder que permeia essas relações e a redenção pelo afeto que, por outro lado, ignora barreiras sociais.
No Brasil, o filme deve causar impacto ainda maior. Afinal, é razoável considerar que o público estrangeiro não faz ideia da dimensão popular que Regina Casé experimenta em sua terra natal. Grande atriz cômica desde que surgiu como uma das cabeças pensantes da trupe teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, em 1974, a apresentadora do dominical Esquenta, da Rede Globo, deve surpreender o público local ao encarnar uma personagem que em nada faz lembrar os papéis hilários que a consagraram.
Migrante nordestina, do interior de Pernambuco, Val trabalha para uma família paulistana abastada, que reside no bairro do Morumbi. Um quartinho de fundos, segregado da mansão, é seu lar, desde que passou a cuidar do menino Fabinho (Michel Joelsas), filho do casal de patrões, Carlos (Lourenço Mutarelli) e Bárbara (Karine Teles).
A primeira cena do filme remete ao período em que Val ingressou no trabalho, ainda como babá. Na sequência, ela aparece à beira da piscina cuidando de Fabinho, que questiona: “Que horas ela volta?”, referindo-se à mãe. A pergunta ressurgirá na voz de outra personagem em cena decisiva da trama em que há várias “voltas” deflagradas desde a chegada da adolescente Jéssica, filha de Val, a São Paulo.
Havia mais de dez anos, Jéssica estava separada da mãe que, mesmo a distância, garantia seu sustento no Nordeste. A decisão em ir ao encontro de Val decorre por problemas no convívio com o pai e, sobretudo, pelo desejo de prestar vestibular para cursar Arquitetura, na FAU, a disputada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Pretensão que gera espanto nos patrões de Val, como atesta o comentário de Bárbara: “É, esse País está mesmo mudado!”.
Ao longo do filme, a reação emitida pela personagem de Karine Teles ganha novas dimensões. Insolente, sem saber se colocar em seu lugar – para usar expressão que espelha a segregação social discutida no filme –, Jéssica desperta fascínio em Fabinho e, sobretudo, em Carlos, artista plástico afundado em uma crise que o mantém em estado de letargia, interpretado com sutileza por Mutarelli. No entanto, o desvio da normalidade provocado por Jéssica abala as relações da família e também tira do eixo sua própria mãe.
Em entrevistas telefônicas, Anna Muylaert e Regina Casé falaram à Brasileiros sobre a repercussão internacional do filme, o longo processo de maturação da trama e como as recentes transformações sociais do Brasil foram determinantes para a verossimilhança de Que Horas Ela Volta?.
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Entrevista: Regina Casé
Brasileiros – O roteiro do filme começou a ser escrito em 2011, da primeira leitura à finalização das gravações, houve muitas mudanças de curso?
Regina Casé – O final foi mudado às vésperas do encerramento das filmagens. Era como se Anna estivesse escrevendo um jornal, que muda a cada dia, mas a ideia central do filme – esse olhar da cozinha para a sala – permaneceu o mesmo. Anna tinha me chamado para fazer seu filme anterior É Proibido Fumar, trabalhamos juntas no roteiro, mas na última hora não pude gravar. Quando vi a personagem de Que Horas Ela Chega?, não tive a menor dúvida de que havia chegado o momento de fazermos algo juntas. Ninguém pode te chamar duas vezes para dançar e você dizer não – ainda mais com uma música dessas.
O filme trata de questões específicas da realidade brasileira. No entanto, tem feito enorme sucesso fora do País. O que há de universal nesse trabalho?
O filme é muito brasileiro. Nos sotaques, nas expressões, retrata estilos de vida e relações interclasses que são muito específicas do Brasil – e é incrível que o público de fora tenha feito leituras particulares e se emocionado tanto. No Brasil, deve haver outras reações, mas a riqueza do filme está em falar de diferentes “voltas”, várias formas de poder e de amor, e de questões complexas, muito contrastadas, sem ser simplista. Que Horas Ela Volta? é o Fabinho perguntando a que horas a mãe dele volta. Que Horas Ela Volta? é a Jéssica perguntando a que horas a Val vai voltar. Todas as personagens passam por esse questionamento. É como um efeito dominó emocional.
Val é uma típica cidadã da chamada nova classe C. Como apresentadora da TV Globo, você dialoga há um bom tempo com esse público. Essa experiência influenciou sua interpretação?
As pessoas vêm me perguntar “você fez laboratório?”. Não, não fiz. O que talvez tenha me ajudado a ter alcançado esse resultado tão forte foi o fato de eu ter “conhecido” a Val no forró, no baile funk, no samba. Em anos e anos de Brasil Legal (quadro exibido no Fantástico), conheci a Val em Pernambuco, onde ela nasceu, conheci a Val do Morumbi, da mesma forma que conheci a Val de Paraisópolis e a Val de Heliópolis.
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Entrevista: Anna Muylaert
Brasileiros – Como e quando você concebeu o roteiro?
Anna Muylaert – O filme começou a nascer há 20 anos, quando fui mãe. Com a maternidade, saquei como, no Brasil, existe um grande paradoxo na figura da babá, que muitas vezes deixa os filhos para trás para cuidar dos filhos de outras mães. É uma dança das cadeiras entre a mãe, que não cuida do filho, e a babá, que não cuida do filho. O título do filme se refere ao ponto de vista da criança e a esse desengano de estar todo mundo no lado errado. A figura da babá traz paradoxos relativos à educação dos filhos e à condição social das pessoas. Acho que o filme contempla temas como esses.
Na entrevista com Regina, ela comentou que você fez várias mudanças no roteiro, inclusive, no desfecho da trama. Que fatos motivaram essas mudanças?
Eu não queria um final feliz de novela. Que a Jéssica ficasse rica ou casasse com o patrão. Queria algo verossímil, mesmo que fosse uma esperança tola, uma esperança real. Seis meses antes das filmagens, me tranquei em casa durante um mês e propiciei um acesso de loucura em busca de saídas para o clichê da filha frágil da empregada. Até que um dia surgiu a ideia de fazer com que ela viesse para São Paulo para prestar vestibular. A partir dessa ideia, todo o resto se construiu. Jéssica não respeita regras separatistas porque ela não as reconhece e se vê em outro lugar. Tudo isso tem a ver com um novo Brasil, que é o Brasil pós-Lula.
O desfecho de Que Horas Ela Volta? seria inverossímil no Brasil de 15, 20 anos atrás?
Acho que sim. O que o filme tem de mais forte é sair dos clichês de divisão social. Eu mesma estava colocando a filha da empregada no mesmo lugar (no final do primeiro roteiro, como a mãe Val, Jéssica tornava-se babá), na mesma maldição que sempre foi colocada. Para eu sair dessa maldição, tirar a câmera da sala e colocá-la na cozinha, foi necessária uma mudança pessoal como artista e, também, essa mudança do País.
Como você interpreta a repercussão internacional do filme?
Quando fomos exibir o filme em Sundance, não sabíamos se o público entenderia essa história. Nas cenas em que o Fabinho dorme com a Val, por exemplo, havia o risco de acharem que se tratava de sexo. Mas não houve essa leitura porque, na Europa e nos Estados Unidos, de algum modo, eles também têm faxineiras imigrantes. Claro, os empregados não dormem em casa, mas eles têm serviçais domésticos e a discussão foi ampliada para uma questão política maior, sobre o poder em diversas situações. Desde o trabalho doméstico até o avião, temos divisões de classes e os lugares (sociais) definidos para cada uma delas. O filme não é um retrato da empregada doméstica brasileira, mas das relações humanas que levam todos a um lugar sitiado e inseguro.
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