Ronnie Von: o “Príncipe” que abriu mão do reinado

ronnie_capa.miniPara a maioria dos brasileiros nascidos a partir dos anos 1990, muito provavelmente Ronaldo Lindberg Von Schilgern Cintra Nogueira, ou melhor, Ronnie Von, é tão somente o gentil apresentador de TV do programa Todo Seu, exibido desde 2004, de segunda a sexta-feira, às 22h, na grade da TV Gazeta. Fato anterior, que reforça essa imagem reducionista, na mesma emissora, no biênio 1999/2000, Ronnie apresentou o programa vespertino Mãe de Gravata – título que fazia alusão ao livro homônimo lançado por ele em 1992, no qual relatou a experiência de ser “pãe” (pai e mãe), como se autodefiniu, ao assumir a guarda dos filhos Alessandra e Ronaldo depois de a ex-mulher Arethusa sair de casa e dar fim a 19 anos de relação.

Ronnie Von chega hoje aos 70 anos. Quem aprecia a história da música brasileira e tem mais de 30, bem sabe que esse “bonitinho” – como ele costuma chamar seus convidados da TV – é tudo menos ordinário.

Nascido em Niterói, Ronnie é filho do diplomata José Maria Nogueira, que nos anos 1960 atuou em Londres como Ministro Plenipotenciário (com plenos poderes) do Itamaraty. No exercício da missão diplomática, sem nem sequer suspeitar, o pai de Ronnie introjetou no garoto tamanha paixão pelo rock n’ roll que o amor pelo novo gênero musical mudaria os rumos do jovem aviador (Ronnie ingressou na Escola Preparatória de Cadetes aos 15 anos, aos 17 fez seu primeiro voo) e aspirante a economista. Em primeira-mão, com meses de antecedência, graças ao ofício do pai, Ronnie recebia remessas regulares de LP’s e compactos lançados no Reino Unido. Para muitos de seus pares, Ronnie foi o “educador” daqueles dias inaugurais de beatlemania e Invasão Britânica – nome dado ao verdadeiro flashmob de bandas egressas daquele epicentro moderno, como Stones, Kinks, Who, Animals, Small Faces, combos roqueiros que começava ma assolar o mercado mundial de música jovem.  

Com o domínio do inglês e do repertório dos Fab Four,  Ronnie logo arriscou suas interpretações dos Beatles. E foi na apresentação de um grupo pioneiro nas releituras do quarteto de Liverpool, o quinteto carioca Brazilian Bitles, que, a fórceps, ele deu o primeiro passo para a carreira de cantor. Convidado para uma canja em You’ve Got to Hide Your Love Away, tímido, Ronnie debandou do convite, mas foi literalmente jogado em cima do palco e teve de encarar o desafio de dividir o espaço com o experiente Brazilian Bitles. A reação da plateia foi arrebatadora. Entre os presentes, um jovem executivo da indústria fonográfica, João Araújo (pai de Cazuza), não hesitou em imediatamente convidá-lo para assinar contrato com o selo que representava, a gigante Polydor. Lançado em 1966, o disco de sete polegadas trazia além de You’ve Got to Hide Your Love Away, outra composição dos Beatles, Girl, mas vertida para o português, sem tradução literal, com o título Meu Bem.

O compacto foi o marco zero de um sucesso tamanho que, sem aviso prévio, Ronnie fez páreo a ninguém menos que Roberto Carlos, o Rei da Jovem Guarda. Em uma participação no programa televisivo de Hebe Camargo, acompanhado do pai, Ronnie ganhou da loura a alcunha de Príncipe. Em 1966, sobre direção de Solano Ribeiro, estreou na TV Record o programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von. A despeito de não se identificar até hoje como parte do grupo de brotos, tornou-se um dos ícones da Jovem Guarda. Mesmo alinhado ao movimento liderado por Roberto, Erasmo e Wanderléa, o programa de Ronnie foi importante vitrine de bandas mais experimentais, como Os Bruxos, Os Baobás e Os Mutantes – estes, rejeitados no programa de Roberto, tiveram o nome sugerido por Ronnie, influenciado pela leitura de Império dos Mutantes, de Stefan Wul.

Mas a ascensão meteórica e a consolidação como ícone pop e símbolo sexual não condiziam com as aspirações artísticas do jovem de beleza ímpar, que povoava os sonhos de milhões de moçoilas brasileiras. Se para Ronnie Von havia restado o epíteto de “Príncipe”, depois de dois álbuns de acento frívolo e uma experiência um pouco mais edificante, mas irregular, no terceiro deles – lançado em 1967, o LP teve participações dos Mutantes, dos Baobás e arranjos do maestro Rogério Duprat – em 1968, com novo álbum homônimo, Ronnie decidiu chutar a porta de vez. Estava disposto a abdicar do posto de Príncipe e de um possível “reinado” para elevar de vez seus propósitos de artista. “Conteúdo, não tinha nenhum, o que interessava (para as gravadoras) era o olho verde, o cabelo grande, o sucesso com as menininhas e a gritaria no auditório. Eu queria me livrar disso de qualquer maneira e, fundamentalmente, poder fazer aquilo que eu queria.”

Contracapa do álbum lançado em 1968 pela Polydor
Contracapa do álbum lançado em 1968 pela Polydor

O depoimento que fecha o parágrafo acima foi dado por Ronnie no início de 2014 para o filme Quando Éramos Príncipes. Idealizado e roteirizado pelo jornalista Ricardo Alexandre, com direção de Caco Souza, o documentário conta com a participação da extinta banda paulistana Os Haxixins e faz um recorte de três momentos cruciais da discografia de Ronnie Von: o quarto álbum, de 1968, o posterior A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nunca Mais (1969) e seu sucessor, Máquina Voadora (1970). Para celebrar os 70 anos de Ronnie, falaremos hoje de seu turning point e, para este escriba, seu ápice criativo, o álbum de 1968.

Se até então Ronnie Von era apenas mais uma criatura anódina no cenário da música jovem do País, naquele mesmo ano em que Os Mutantes lançaram seu bombástico primeiro LP, o padrinho carioca do anárquico trio paulistano também alçou voo libertário dos mais inventivos. Psicodélico desde a capa, que expõe retrato de Ronnie com o torso nu em meio a ilustrações lisérgicas, o álbum flertou com a intenção tropicalista de perseguir o tal “som universal” e contou com três fatores primordiais para atingir tão elevado nível de realização: o rock moderno do grupo B-612 – presença regular no extinto programa de TV de Ronnie; as inspiradas letras de Arnaldo Saccomani; e a produção e os arranjos grandiloquentes e experimentais do maestro Damianno Cozzella, que contou com o apoio fundamental do técnico de som Stélio Carlini.

Egresso do movimento de vanguarda Música Nova, que reuniu maestros como Rogério Duprat, Julio Medaglia e Willy Corrêa de Oliveira, a exemplo de Medaglia e Duprat, que já haviam feito registros ousados com Caetano, Gil e Gal, Cozzella transformou o álbum de Ronnie, da primeira a última faixa, em uma espécie de suíte sensorial. As experimentações do maestro ora remetem a saídas aparentemente previsíveis, mas sublimes (como a utilização de cordas e sopros em Meu Novo Cantar e Chega de Tudo); ora surgem inusitadas e instigantes (como em Espelhos Quebrados, considerada por Ronnie sua Eleanor Rigby, e na belíssima Tristeza Num Dia Alegra). Há de se enaltecer também a verve irônica e provocativa de Cozzella na vinheta que antecede o registro da utópica Anarquia e no hilário arremedo italiano do “Warte, traz as porpeta” que sucede o início intrigante de Tristeza Num Dia Alegre.

Com predicados de sobra, a despeito de ter sido rejeitado na ocasião de seu lançamento e de Ronnie jamais ter herdado, nas décadas seguintes, o status cult dos Mutantes, em 2000, o LP foi incluído no guia Record Collector Dreams, editado pelo colecionador austríaco Hans Pokora, como um dos mais importantes registros mundiais do psicodelismo. O reconhecimento tardio coincidiu com o progressivo advento de democratização do acesso a banda larga de internet e, na primeira década deste século XXI, a trinca de LP’s psicodélicos de Ronnie Von teve, enfim, neste ambiente virtual, seu devido reconhecimento. No início de 2014, os três álbuns foram, inclusive, relançados no Brasil em vinil pela Polysom.  

Mas a fase psicodélica de Ronnie foi engolida pela incompreensão de um público elitista e patrulheiro, que o manteve distante do rol das grandes estrelas da MPB, e a frieza de um mercado que dele pretendia extrair apenas a “embalagem” extremamente vendável de sua aparência, sem se importar com o conteúdo e as pretensões de um artista de repertório cultural dos mais distintos. Ronnie muito poderia ter contribuído ainda mais para o cenário musical dos anos 1970, e seguiu, com efeito, nessa tentativa em álbuns subsequentes, mas acabou sendo tolhido pelo romantismo exacerbado que a indústria fonográfica impôs a seu repertório.

Nos anos 1980, Ronnie enfrentou uma rara e devastadora doença, a polineurite plurirradicular, uma inflamação no sistema nervoso, que provoca dores insuportáveis por todo o corpo e imobiliza a vítima na cama até a morte, desígnio que, felizmente, não o acometeu. Segundo registros médicos da época, Ronnie foi o segundo paciente a superar o problema. Que não falte saúde nas próximas décadas a este cavalheiro que, embora desdenhe o predicado, terá sempre a nobreza de um verdadeiro príncipe.

Assista a íntegra do documentário Quando Éramos Príncipes, de Ricardo Alexandre (dir: Caco Souza, 2014)

Ouça a íntegra de Ronnie Von

Boas audições e até a próxima Quintessência!


Comentários

2 respostas para “Ronnie Von: o “Príncipe” que abriu mão do reinado”

  1. Adorei reviver grandes momentos da minha vida.Minha irmã mais velha era fã do Ronnie e eu quando era pequena tambem comecei a admira-lo e gostar muito dele.Hoje tenho 52 anos e um desejo enorme em um dia poder conhecer o meu grande ídolo da minha infância,.Meu querido Ronnie Von.Parabéns por seu aniversário no dia de hoje.Que Deus te abençõe muito,dando-lhe muitos anos de vida.Felicidades,meu lindo.Eterno príncipe.

    1. Obrigado pelas lembranças e pelo prestígio, Marlene! Abraço.

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