Ser ou não ser?

Jo Clifford é a primeira mulher trans a ter uma peça montada no circuito comercial londrino. Foto: Luiza Sigulem
Jo Clifford é a primeira mulher trans a ter uma peça montada no circuito comercial londrino. Foto: Luiza Sigulem

Vestido simples, xale no ombro e uma bengala. A imagem de avó parece um contrassenso. No entanto, não poderia ser mais acurada. “Quando estou com minha filha mais velha e meu neto, ela me chama de pai e ele me chama de vovó”, diz Jo Clifford, a aclamada dramaturga trazida para o Brasil pelo British Council para falar sobre identidade de gênero e, entre outras atividades, ministrar oficinas no Sesi, em São Paulo.  Aos 66 anos, a doce senhora que espreme de alegria os olhos e se sacode em boas risadas já viu e ouviu muita provocação. E passou por maus bocados.

Em sua peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, ela mesma interpreta o Jesus trans e contemporâneo do texto, um libelo contra a intolerância. “Às vezes as pessoas me xingam, riem na minha cara, ameaçam me bater. A primeira vez que apresentei essa peça em Glasgow, as ruas estavam lotadas de gente protestando! Fiquei bem assustada.” O carisma e o senso de humor da escritora e atriz nascida na Inglaterra e criada na Escócia, porém, parecem capazes de desarmar até o homofóbico ou fundamentalista mais radical. Quando fala, a voz expressiva faz ondas no ar, acompanhando o gestual festivo das mãos. “Estamos desafiando o que muitas pessoas veem como os fundamentos de suas identidades. Para um macho man, uma pessoa como eu é – ohhhhh! – uma abominação! Eu os deixo muito desconfortáveis. E a resposta é o ódio. E o ódio vem do medo. Basicamente essas pessoas odeiam a si mesmas. Dá para ver isso em seus rostos! Olhe para os políticos de direita! Eles parecem tão miseráveis! Pobres almas (risos)!”

Sua história tem um quê dos folhetins de Dickens – autor, aliás, que adaptou para o palco, numa montagem de Grandes Expectativas que fez dela a primeira mulher trans a encenar no West End, o prestigioso circuito londrino de teatro. “Quando eu era menor, me via no espelho e olhava para um menino, mas de alguma forma aquele menino não era eu. Era aterrorizador.” O pai, senhor severo e conservador, queria que fosse homem de negócios, como ele. Não era o caso, evidentemente. E os tempos tampouco ajudavam. “Não havia pessoas trans. A palavra nem sequer existia! Eu era algo indizível, literalmente. Me sentia péssima e tentei esconder isso o máximo que pude.” A famosa questão lançada por Hamlet a assombrava. Se não era menino, o que era? Descobriu-se mulher nas peças de teatro da escola. “Me escolhiam naturalmente para os papéis femininos, por mais que eu tentasse disfarçar. Não me importei muito. Afinal, usar aquelas roupas de menina, que eu adorava, fazia parte da tradição britânica (risos). Foi aí que senti que podia ser aceita como eu era.Tinha descoberto minha vocação. Depois de dois anos, percebi que queria, de fato, ser uma menina, e tudo passou a fazer sentido. Eu tinha 15
ou 16 anos. Fiquei com tanto medo!”

Nos 50 anos que se passaram, o então John Clifford fez Espanhol na faculdade, casou-se com uma colega, a militante feminista Sue Innes, trabalhou como cobrador de ônibus, professor de ioga e enfermeiro. Teve duas filhas, iniciou uma tese de doutorado sobre Calderón de La Barca e, depois de muito tempo renegando o teatro, montou, aos 35 anos, sua primeira peça, Losing Venice, que conquistou público e crítica. “Era um texto fora de todos os padrões. Poucos dias antes da estreia, a diretora começou a chorar e disse que não sabia como fazer a peça. Achei que seria um desastre. Voltei para casa. Olhei para minha filha menor, que tinha acabado de nascer. E ganhei confiança. A montagem foi um enorme sucesso. A partir daí, comecei a escrever cinco peças por ano, para ganhar o mesmo que um professor”.

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