No início, em 2001, o espetáculo acontecia uma vez por semana, às terças. Mas a coisa cresceu e muito. Criadora e principal cabeça por trás do projeto, Grace Gianoukas, 50, sabe da relevância da Terça Insana no cenário do humor nacional, e da importância que teve ao romper com a estética “limpinha”, de “comediazinhas de adultério”, que prevalecia no fim dos anos 1990. “Eu achava que estava na hora de discutir outros assuntos, sem hipocrisia, e retratar a sociedade brasileira como ela é”, conta.
Ao longo de 13 anos, foram mais de 320 espetáculos originais e 500 personagens criados, com a colaboração de importantes atores que passaram pela Terça Insana (Luís Miranda, Ângela Dip, Arthur Kohl, Octávio Mendes etc.). “Não temos mais um elenco fixo. Fechei o hospício e agora trabalho só com day care! A Terça Insana é uma família, uma grande escola. As pessoas vêm, participam, se formam, e vários seguem outros caminhos”.
Em entrevista à Brasileiros, a atriz criticou o humor “medíocre” que se vê hoje em certos lugares (como alguns espetáculos de stand up comedy), mas ressalta – elogiando Porta dos Fundos, Paulo Gustavo e Marcelo Adnet – que o quadro melhorou bastante de modo geral. “Fico feliz de ver uma vertente inteligente, radical, continuando uma linha que acho que a gente começou. Todos acertam e erram, mas estão se arriscando para um lado positivo”. Pois a incansável Grace Gianoukas sabe que não é fácil ser original o tempo todo. “A gente se atira do precipício toda semana, nunca caímos numa zona de conforto. Nem sempre vamos conseguir fazer o melhor show, mas eu não vou parar de me arriscar. O artista que não se arrisca, esse deixa de fazer arte”. Leia os principais trechos da conversa:
Brasileiros – O texto do próprio site da Terça Insana começa questionando o que é o projeto. Teatro? Show de humor? Vídeos do Youtube?
Grace Gianoukas: Bem, é um projeto de comédia. A gente trabalha o humor através de várias pesquisas de linguagem, então temos a coisa teatral, a musical, mas tudo pode entrar. A gente diz que é uma “comédia de revista”, que tem essa coisa do cotidiano. E não fazemos coisas apelativas, a gente tenta fazer uma ironia fina.
Parece que é um olhar irônico sobre a sociedade de modo mais amplo, não sobre casos específicos de um político, de um acontecimento.
Exato. É do comportamento humano acima de tudo. É um projeto que se propõe a analisar a sociedade contemporânea sob o ponto de vista do comportamento humano.
Como foi o processo, do surgimento até hoje? A Terça Insana cresceu muito, influenciou outros grupos…
Acho que a gente abriu uma picada na mata que estava fechada na época. Criei a Terça Insana porque estava de saco cheio, no fim dos anos 1990, de ver tudo clean, aquela coisa corporativa, uma estética do fake limpinho, sabe? Quase tudo em cartaz eram “comediazinhas” de adultério, com nomes globais, coisas assim. E eu achava que estava na hora de discutir outros assuntos, sem hipocrisia, e retratar a sociedade brasileira como ela é. Uma coisa que a gente faz, por exemplo, é pegar o excluído, que costuma ser o motivo da piada, e levar ao palco. E ele dá o seu ponto de vista. Essa virada de olhar é uma coisa que eu busco.
E como fazer para esses personagens não caírem no caricato?
Mas o caricato pode ser bárbaro. Eu faço alguns personagens muito caricatos. Pego algumas características e vou pincelando a partir daí. Por exemplo, tenho uma personagem que eu adoro que é a Mulher Limão, uma funcionária pública que procrastina. Mas não quero acusar o funcionário público. É também uma reflexão sobre como funciona a cabeça dela. A partir desse ponto de vista que eu começo a criar.
É muito diferente do stand up né? Ao menos, desse tipo que estourou no Brasil nos últimos anos.
Tem stand up muito bom. Mas o que estourou é uma coisa que, por exemplo, acho que Ary Toledo faz melhor, com o arquivo de piadas que ele tem. Esse que a gente vê aí é um monte de gente contando piadas preconceituosas e jogando conceitos muito retrógrados.
E reclamam muito de um “patrulhamento do politicamente correto”…
Olha, quem tem dignidade e tem o que dizer não precisa entrar nessa coisa do correto ou não correto. Jamais vou subir ao palco para falar mal de raças, de gays, por exemplo, porque isso não me interessa, é ridículo. O que não significa que não vou tocar nesses assuntos. Agora, acho que a sociedade está de pé. Caretas, xenofóbicos, racistas… todos estão no palco, sem vergonha de dizer o que pensam, achando que são transgressores. Pegar uma piadinha de oitava, preconceituosa, levar para o palco, e achar que está sendo transgressor, isso é de uma burrice! Mas, do mesmo modo que há pessoas sendo grosseiras no palco, existem movimentos organizados, de gente inteligente, colocando bandeiras. Então, quer se colocar? Vai lá. Mas depois não vem reclamar que tem reação.
Há comediantes que acham que podem falar o que querem porque é humor. Como é na Terça Insana?
Um dos motivos da criação do Terça Insana foi isso. Estava cansada de ouvir essas coisas tipo “todo negro é trambiqueiro”, “todo político, corrupto”, “todo gay sei lá o que”… Um óbvio medíocre que está em todo lado, que me mata. Acho que a sociedade evoluiu tanto, na internet, na ciência, na física, no espaço, nos satélites! Não é possível! Então na Terça Insana temos algumas diretrizes. Não entra piada preconceituosa, piada pronta, sarro com a plateia. A não ser que seja uma brincadeira educada.
Ou seja, não são regras fechadas?
Não, são diretrizes. Mas as coisas sendo feitas com talento, inteligência, originalidade e com um objetivo que não seja ofensivo, claro que pode. Porque acho que o artista, quando sobe no palco, tem uma puta responsabilidade. Primeiro, aquelas pessoas pagaram para te assistir, e eu não sou batedora de carteira. Não vou lá falar barbaridades para arrancar o dinheiro das pessoas. Eu teria vergonha disso. A gente têm muito respeito público. Já foram cerca de 400 shows diferentes. Claro que alguns funcionam mais, outros não funcionam. A gente se atira do precipício toda semana, não caímos numa zona de conforto.
Os números da Terça Insana realmente são impressionantes. De onde tirar inspiração para tudo isso?
O mundo é inspiração! A gente tem que estar em movimento.
E, deste “mundo”, o humor pode ajudar a revelar coisas que costumam passar batidas?
Claro. Nós somos bombardeados todos os dias com milhões de informações. Não dá nem tempo de escolher o que engolir. As informações vão entrando. E, quando a gente consegue parar e refletir, percebe algumas coisas. Os textos da Terça Insana muitas vezes surgem dessas reflexões de coisas que eu mesmo engoli sem questionar. Como por exemplo: para que serve o cartão Pão de Açucar Mais? (risos). Às vezes levo umas coisas assim para o palco e vira uma catarse coletiva…
Uma vez você disse que seus personagens são construídos a partir de uma “dor profunda”. Fazer humor, ao contrário do que parece, também pode ser um trabalho sofrido?
Sim, escrevo porque senão enlouqueço. As coisas que eu quero falar, que me incomodam, tenho que expressar. É do meu incômodo como cidadã, observadora, que nascem os questionamentos que dão corpo aos personagens. O ator, quando sobe ao palco, tem que aproveitar a oportunidade para trazer algo relevante. Nem que seja apenas para causar uma boa gargalhada. Gosto do simples. Mas jamais vou baixar o nível para ganhar público. Quero levar qualidade, reflexão e boas gargalhadas. Quando uma reflexão é levada ao palco, você amadurece e o público também. Acho que nós, como brasileiros, temos de amadurecer juntos.
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