Um espaço, duas histórias

O diretor Ricardo Calil (à dir.) dirige o remake de uma das cenas de “Noites de Circo”, de Ingmar Bergman – Foto: Luiz Cunha

Do luxo à luta social por moradia, a transformação do Cine Marrocos, em São Paulo – hoje ocupado por brasileiros e refugiados – inspirou o documentarista Ricardo Calil (coautor, ao lado de Ricardo Terra, dos filmes Uma Noite em 67 e Eu Sou Carlos Imperial) a produzir seu primeiro longa-metragem solo. Intitulado Cine Marrocos, o filme conta, do triunfo à decadência, a história da sala de exibição, permeada por relatos dos moradores que compõem a babel instalada na rua Conselheiro Crispiniano. Além disso, inspirado em filmes exibidos na Mostra Internacional de Cinema de 1954, primeiro festival do gênero no País, Calil acrescentou, com moradores, adaptações de cenas de clássicos, como A Grande Ilusão (1937), de Jean Renoir, Noites de Circo (1953), de Ingmar Bergman, Julio Cesar (1953), de Joseph L. Mankiewicz, Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, e A Princesa e o Plebeu (1953), de William Wyler.

Criado em 1951 pelo empresário Lucydio Ceravolo, o Marrocos foi inaugurado com o ambicioso slogan “o melhor e mais luxuoso cinema da América Latina”. Em 1954, ocasião em que foi comemorado o quarto centenário de São Paulo, a mostra teve o cinema como palco principal. O festival trouxe ao País estrelas mundiais, como Errol Flynn, Joan Fontaine e Fred McMurray, cineastas de renome, como o francês Abel Gance e o austríaco Eric Von Stroheim, o papa da crítica cinematográfica moderna, André Bazin, e o presidente da Cinemateca Francesa, Henri Langlois. O glamour do Cine Marrocos, no entanto, se transformou em decadência na segunda metade da década de 1970, quando as projeções ficaram restritas a fitas de sexo explícito. Instalado no térreo de um edifício de dez andares, o espaço fechou as portas nos anos 1990. Tempos depois, os dois imóveis foram comprados pela Prefeitura de São Paulo. Sem ações efetivas do órgão público até o momento, em novembro de 2013 o cinema e o edifício foram ocupados por mais de 400 famílias do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Atualmente, cerca de duas mil pessoas residem no Marrocos, entre elas refugiados e imigrantes de países como República Democrática do Congo, Angola, Nigéria, Guiné, Peru, República Dominicana, Haiti e Bolívia.

O rapper camaronês Yamaia reinterpreta Marco Antonio, papel de Marlon Brando em "Julio Cesar" - Foto: Luiz Cunha
O rapper camaronês Yamaia reinterpreta Marco Antonio, papel de Marlon Brando em “Julio Cesar” – Foto: Luiz Cunha
As filmagens de Cine Marrocos foram realizadas entre maio e junho de 2015. A experiência reservou boas surpresas para Calil. “Fizemos uma oficina de preparação coordenada por dois atores, Ivo Muller e Georgina Castro, e selecionamos 25 pessoas. As refilmagens das cenas ficaram muito próximas das originais, mas as pessoas deram grandes contribuições. Yamaia, um rapper de Camarões, refez o famoso monólogo do Marlon Brando, no papel de Marco Antonio, em Julio Cesar. Na hora da filmagem, ele transformou a fala num rap cantado em francês e a cena ficou linda. Na refilmagem de A Grande Ilusão, Panda, um congolês que fez o papel de Jean Gabin, interpreta um francês que é feito prisioneiro pelos alemães durante a Primeira Guerra Mundial. Panda é filho de um ex-ministro da Defesa do Congo. O pai dele foi assassinado, envenenado, porque sabia demais. Em seu país, ele trabalhava como jornalista de direitos humanos para a TV. Por denunciar o regime ditatorial, veio parar aqui como refugiado. Com essa história de vida de violência e perseguição, ele fez o papel de um prisioneiro. Cada pessoa trouxe contribuições especiais.”

“Ridiculamente barato”, segundo Calil, o filme contou com improvisos, como a utilização de lençóis como figurino romano nas tomadas de Julio Cesar e a adaptação de um quarto, ao lado da extinta sala de projeção do Cine Marrocos, transformado em cela. Com recursos pessoais do diretor e apoio do Canal Brasil, a produção demanda agora novos apoiadores para a conclusão da montagem, a cargo de Jordana Berg, colaboradora do mestre Eduardo Coutinho (1933-2014). Ansioso para exibir o filme em 2017, Calil enaltece uma característica nobre de seus personagens: a disposição para a coexistência.“A experiência do filme foi um laboratório reduzido, mas demonstrou que, quando existe o desejo de acolher e o esforço de aproximação, as coisas só podem dar certo. No mundo inteiro existem maus exemplos de retrocesso, afastamento, isolamento, preconceito e violência contra quem vem de fora. A decisão dos ingleses de abandonar a União Europeia, motivada por xenofobia, é um mau exemplo. O prestígio de Donald Trump, nos EUA, é terrível para o mundo. Espero que a gente esteja entre os bons e não entre os maus exemplos”, conclui.


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