O cenário era simples, mas nada dramático. Filha de pai metalúrgico e mãe costureira, Marly Montoni chegou ao mundo junto com dois irmãos. O casal, que já tinha um menino de 10 anos quando os trigêmeos nasceram, vivia no bairro do Belenzinho, na zona leste de São Paulo. Nas horas de folga, o pai pegava o violão para tocar músicas populares, enquanto a mãe alinhavava roupas.
Marly, 32 anos, e os irmãos cresceram dessa maneira. Mas só ela se encantou pela música. Durante um curso de teatro no Projeto Guri, ela descobriu que tinha nascido com voz de soprano, o tom feminino mais agudo, o mesmo de Maria Callas – a mais gloriosa presença vocal da ópera do século 20. “Meu pai gostava de música, do violão, mas não conhecia música erudita. Nem eu conhecia”, ela diz.
Da descoberta aos estudos foi um pulo. Primeiro, Marly passou pela Universidade Livre de Música, hoje EMESP Tom Jobim, depois cursou canto lírico na UnicSul e, mais tarde, encarou o mestrado na Faculdade Livre de Música de São Paulo. “Todo o meu percurso educacional me deu uma base importante. Mas um cantor lírico precisa se aprimorar sempre. Por isso tive aulas com o tenor brasileiro Antonio Lotti e, depois da morte dele, passei a ser orientada por Carlo Colombara. Ele é italiano, mas, quando vem ao Brasil, frequento seus cursos.”
No entanto, a voz de Marly é dom, capacidade especial inata. “Na casa dos meus pais, sou a única que canta de forma profissional. O meu irmão mais velho e o meu gêmeo são analistas de sistema, e minha irmã trabalha com vendas.”
Com o talento que possui, Marly vem cantando muito por aí. Participou de musicais famosos, como O Fantasma da Ópera, e foi solista de óperas do pianista americano George Gershwin, como Porgy and Bess e Blue Monday. “Sou a primeira mulher negra a apresentar uma ópera de Gershwin no Brasil. Blue Monday, escrita em 1927, nunca tinha sido montada no País, e nós a preparamos para um festival de ópera em Belém do Pará. A apresentação aconteceu no ano passado e foi, de fato, um momento que está marcado para sempre na minha vida.”
Ela afirma que sua origem afrodescendente nunca a atrapalhou. Ao contrário. “Em meus 16 anos de carreira, sempre procurei superar os desafios impostos da música clássica. O fato de eu ser uma das poucas representantes negras do mundo do canto lírico me deixa engrandecida.” Marly conta que há quem se surpreenda quando ela diz ser cantora lírica e acredita que um dos motivos para isso é que a música erudita no Brasil ainda é algo a ser explicado. “Tem gente que não sabe o que é. Quando conto, sente curiosidade e, ao entrar em contato com esse gênero musical, gosta. O que quero dizer é que não é que a pessoa não gosta. Ela simplesmente não conhece.”
Cita como situações curiosas o fato de Mozart, grande compositor austríaco, ter vivido no século 18 e hoje algumas de suas músicas serem toque de celular. “A pessoa coloca no celular porque gostou do som, mas não sabe que esse som faz parte da história. Isso é engraçado. Quando alguém explica, o dono do celular se surpreende. Imagina, a música do caminhão do gás também é de Mozart. O que quero dizer que o tempo passa, mas obras clássicas continuam, o que é encantador.”
A vida pelo canto lírico, assim ela quer trilhar seu caminho. Por isso, além das apresentações, ela também assina três CDs, em parceria com o tenor Ulisses Montoni, o mesmo tom de voz de Plácido Domingo, Luciano Pavarotti e José Carreras – o trio erudito –, que é seu marido. “Trabalhamos juntos, mas não somos uma dupla”, ela esclarece. No disco mais recente, Moonlight, Marly também apresenta composições próprias. “Toco violão e piano, mas nunca tinha me arriscado a compor. Foi uma experiência ótima, motivada pelo meu amigo pianista Márcio Arruda, que escreveu várias letras e, de certa forma, me forçou a compor as melodias. Gostei bastante de sentar e compor alguma coisa, porque estudo música há anos e, quando ouço os grandes nomes, penso: ‘Nossa, que gênio. Nunca vou ser capaz de fazer isso’. Não é verdade. No mais, eu me diverti muito nesse projeto e só por isso teria valido a pena.”
O CD foi produzido por meio do chamado classical crossover, que une música erudita e popular – um é um estilo adotado pelo tenor italiano Andrea Bocelli. “É preciso ter uma extensão vocal trabalhada, mas a estrutura melódica é mais conhecida. O que se ouve é algo familiar, no entanto, a voz é de um cantor de ópera”, explica.
Para manter o bom tom de voz, Marly afirma seguir os cuidados comuns, como dormir bem e se alimentar adequadamente. Também faz exercícios vocais diariamente e evita consumir bebidas geladas quando em cartaz. O mais importante, afirma, é manter o equilíbrio emocional. “Quando não estou bem, minha voz também emperra.”
Em uma recente apresentação em São Paulo, no Theatro São Pedro, Marly interpretou Fosca, de Carlos Gomes, talvez a obra prima do grande compositor brasileiro. “É uma peça linda. Fosca é irmã do chefe dos piratas e está apaixonada por um prisioneiro.” Assim como Marly, um drama que merece aplausos.
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