Entre 2004 e 2012, o Brasil retomou o caminho do crescimento econômico, interrompendo um período de mais de duas décadas de relativa estagnação econômica. Em um quadro externo favorável, foi possível crescer a um ritmo de 4,1% ao ano, em média. O País acumulou reservas, melhorou as condições do balanço de pagamentos, mesmo promovendo a desindustrialização com a permanente sobrevalorização cambial e praticando uma das maiores taxas de juros reais do mundo.
Internamente, um ciclo virtuoso, determinado simultaneamente pelo forte dinamismo do emprego, pela expansão da massa salarial, pelo crescimento do crédito, pela ampliação de programas sociais e pela promoção dos salários de base, com uma vigorosa política de elevação real do salário mínimo, cujo impacto direto não se restringiu ao mercado de trabalho, mas também aos milhares de benefícios previdenciários, o Brasil viveu anos de mobilidade social ascendente, redução da pobreza e diminuição da desigualdade.
A reversão simultânea do ciclo externo de bens primários e do esgotamento do ciclo interno de consumo estreitou drasticamente as possibilidades de manutenção do crescimento econômico. A ausência de uma estratégia clara de desenvolvimento econômico, a incapacidade de articulação dos grandes investimentos com uma política industrial mais robusta, além do errático comportamento da política econômica que, grosso modo, com juros altos e câmbio valorizado privilegiou sobremaneira medidas para que a retomada do crescimento viesse por um novo ciclo de consumo, acabaram por reforçar as tendências de estagnação econômica e regressão da estrutura produtiva.
O ajuste será recessivo sobre emprego e salário. Conquistas serão perdidas, pois haverá mais desemprego, maior restrição às políticas sociais e ampliação da desigualdade
A redução do ritmo de crescimento da economia, ao longo do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, tomou contornos dramáticos em 2014, quando o crescimento foi de apenas 0,1%, e mais ainda no primeiro trimestre de 2015, quando o PIB recuou 1,6% em comparação ao primeiro trimestre de 2014, com retração de 7,8% da formação bruta de capital fixo, 1,5% das despesas de consumo do governo e 0,9% do consumo das famílias.
Nesse quadro complexo, que demandaria uma saída à altura dos desafios internos e externos da economia brasileira, a estratégia para a retomada do crescimento adotada pela equipe econômica de Dilma no início do segundo mandato elegeu a questão fiscal como centro da política de recuperação. Partindo-se de um precário diagnóstico sobre os efeitos das condições fiscais para as condições do desenvolvimento brasileiro, em termos das perspectivas de novos investimentos, assim como para o controle da inflação, passou-se a advogar a tese de que o comprometimento obsessivo com a austeridade fiscal trará de volta o crescimento para o País.
O governo divulgou no fim de maio o maior corte de gastos públicos dos anos de governo do Partido dos Trabalhadores. O contingenciamento de R$ 69,9 bilhões atingiu 38 ministérios, com destaque para o Ministério das Cidades (corte de R$ 17,2 bilhões), da Saúde (R$ 11,7 bilhões) e da Educação (R$ 9,4 bilhões). Somadas, essas três pastas responderam por 56% das restrições.
Do ponto de vista dos programas de governo, dois dos mais importantes anos recentes sofreram cortes profundos: menos R$ 25,7 bilhões para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e menos R$ 7 bilhões para o Programa Minha Casa Minha Vida, atingindo sobremaneira os investimentos públicos e privados. Ademais, os problemas que atingem a Petrobras e as grandes empreiteiras privadas tendem a comprometer sobremaneira os investimentos de grande porte.
Segundo as previsões do próprio governo, o Brasil enfrentará a maior recessão dos últimos 25 anos. A centralidade da questão fiscal na estratégia de recuperação econômica mostra-se desprovida de sentido no que se refere ao estabelecimento de uma política de desenvolvimento capaz de devolver o crescimento econômico ao País. Muito ao contrário, os passos dados tendem a aprofundar a desarticulação dos projetos de investimentos e da sinergia entre o setor público e o privado.
4,1% ao ano foi a média do crescimento brasileiro entre 2012 e 2014, propiciado pelo quadro externo favorável. O País melhorou as condições do balanço de pagamentos, mesmo promovendo a desindustrialização
Além disso, uma política econômica que, simultaneamente, avança nos cortes de gastos públicos e promove a elevação das taxas de juros, atua radicalmente contra qualquer objetivo declarado de melhorar as condições fiscais.
Amplia-se, de um lado, a carga de juros sobre a dívida pública, remunerando investidores e os afastando dos investimentos em grandes projetos, infinitamente menos atraentes do que o rentismo. Isso exige, por outro lado, um esforço fiscal ainda maior e possivelmente mais corte de gastos, o que tende a aprofundar a recessão e deteriorar a situação fiscal. Os efeitos da recessão podem ser vistos na própria previsão governamental, que estima uma queda da receita líquida da ordem de R$ 65,1 bilhões.
Nota-se, então, um corte de R$ 69,1 bilhões para promover o chamado ajuste fiscal e está prevista, ao mesmo tempo, uma queda da receita quase do mesmo tamanho. Levando-se em conta a elasticidade da comportamento das receitas em relação ao crescimento da renda, a queda pode ser muito maior do que as previsões iniciais.
Basta notar que, até o mês de abril, dados da Receita Federal indicavam uma queda real de 2,7% no recolhimento de impostos frente a igual período do ano anterior e que os dados de maio indicam uma queda mais acentuada, em torno de 3,8%. Obviamente, nessas condições, dificilmente a meta de superávit primário de 1,2% do PIB será atingida. Concretamente, não é razoável imaginar ser possível um ajuste dessa natureza em um quadro de profunda recessão.
Na verdade, longe de uma estratégia sólida de desenvolvimento do País, trata-se de uma política de desajuste fiscal com efeitos deletérios sobre o crescimento da economia brasileira, sobre sua estrutura produtiva, sobre o mercado de trabalho, sobre as políticas sociais, sem que indique qualquer perspectiva concreta de recuperação, fora do campo das abstrações ideológicas.
R$ 69,9 bilhões é o valor total dos contingenciamentos orçamentários para atingir o ajuste fiscal proposto pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy. O corte atingiu 38 ministérios, com destaque para o das Cidades
A deterioração das condições econômicas e a estratégia adotada para a reversão do difícil quadro que se impõe, promovendo um ajuste recessivo sobre emprego e salário, acaba por trazer sérios riscos de reversão das importantes conquistas sociais do período anterior. Mais desemprego, pobreza, maior restrição às políticas sociais, ampliação das desigualdades, parecem estar cada vez mais próximos da realidade dos brasileiros comuns.
Ruim para quem trabalha e para quem produz, vítimas da austeridade; melhor para os rentistas, absorvedores das maciças transferências financeiras produzidas pela política econômica derrotada nas urnas.
*Professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp
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