Crescimento, crédito e o cenário do Brasil pós-golpe

Temer anuncia medidas econômicas ao lado do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles - Foto: Agência Brasil
Temer anuncia medidas econômicas ao lado do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles – Foto: Agência Brasil

Certamente, o maior desafio econômico do País hoje é a retomada do crescimento econômico. Outras questões importantes, como a inflação e o déficit externo, parecem já estar devidamente endereçadas com os efeitos das mudanças recentes nos preços relativos, tanto na taxa de câmbio quanto nos preços administrados. No setor externo, a conjunção de uma taxa de câmbio desvalorizada com uma profunda recessão fez com que o resultado em transações correntes melhorasse rapidamente, retirando qualquer possibilidade de crise cambial do horizonte. No caso da inflação, o impacto inflacionário inicial da mesma desvalorização do câmbio, somada as elevações dos preços administrados, já fez seu efeito em 2015 (quando o IPCA fechou acima de 10%), se diluindo em 2016 em meio à recessão contratada.

Para resolver o desafio do crescimento, no entanto, as diferentes escolas de economistas indicam remédios bastante diversos. Alguns, de filiação mais “liberal/conservadora”, afirmam peremptoriamente que apenas uma profunda mudança fiscal, que recupere os superávits primários e o equilíbrio das contas públicas, será capaz de recuperar a confiança perdida do empresariado e, desta forma, promover a retomada do crescimento. Para isso, estes economistas recomendam remédios considerados amargos, como a queda dos gastos públicos em áreas sociais, a redução do salário mínimo real, a contenção do consumo (como forma de incentivar a poupança) e redução do papel do Estado na economia. Nesta última proposta, se encontra uma visão bastante crítica acerca dos bancos públicos, que deveriam ter seu papel muito reduzido (quando não eliminado) para abrir espaço para os bancos privados e os mercados de capital assumirem o papel de financiadores do investimento no Brasil.

Se contrapondo a esta visão liberal e conservadora, diversas vertentes de economistas heterodoxos apontam outros caminhos para a recuperação econômica. Apesar de não necessariamente convergirem em suas proposições, estes economistas em geral concordam que um “ajuste fiscal” não é suficiente para a retomada do crescimento, podendo inclusive prejudicá-lo caso atinja fortemente os investimentos públicos e os gastos sociais, que possuem importante papel multiplicador e distributivo na economia. Ademais, concordam acerca da necessidade de um Estado forte e participativo, que incentive a iniciativa privada no caminho do investimento e da inovação, seja através do estabelecimento de condições macroeconômicas propícias (com uma taxa de câmbio e de juros competitivas internacionalmente), seja através de políticas industriais ativas, que financiem os setores mais dinâmicos e inovadores desta economia de maneira consistente e duradoura.

É nesta última visão que os bancos públicos ganham um papel decisivo. É de conhecimento geral que o sistema financeiro e bancário brasileiro nunca, ao longo de sua história, foi capaz de prover o setor produtivo com financiamentos de longo prazo necessários ao processo de investimento e inovação. Ademais, tendo o País uma das maiores taxas de juros do mundo, não há incentivos para retirar o estoque de riqueza financeira do curto prazo, fazendo com que bancos e investidores financeiros se concentrem em títulos da dívida pública e não no financiamento de atividade de longo prazo, tipicamente arriscadas e com chances elevadas de insucesso. Neste sentido, apenas os bancos públicos são capazes de “carregar” este risco, fornecendo o crédito que o setor privado se recusa a ofertar e incentivando o investimento e a inovação no Brasil. É evidente que, em se tratando de recursos públicos, os critérios de concessão precisam passar por constante revisão e aprimoramento, mas a negação da importância destes bancos e deste crédito significaria a própria negação da possibilidade do país se desenvolver em vista de nossa experiência histórica.

Guilherme Mello, economista do Instituto de Economia da Unicamp no seminário Rumos da Economia 2016 - Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros
Guilherme Mello, professor do Instituto de Economia da Unicamp no seminário Rumos da Economia 2016 – Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros

A presença de bancos públicos de desenvolvimento e inovação robustos foi apontada pelo FMI e por outros organismos internacionais como um fator importante para países em desenvolvimento (como Brasil e China) e também para países desenvolvidos (como Alemanha) para reverter eventuais situações de crise e recessão. A presença de bancos públicos sólidos também amplia a competição em um mercado tipicamente oligopolizado, dominado por meia dúzia de bancos privados que conjuntamente estabelecem seus “spreads” e apresentam lucros extraordinários. Por fim, o financiamento paciente do investimento e da inovação, como nos ensina a economista Mariana Mazzucato, exige um esforço público significativo, pois os riscos envolvidos no processo de inovação afugentam o investidor privado (fixado nos ganhos de curto prazo). O resultado final, no entanto, é positivo para a sociedade, não apenas pelos empregos e impostos gerados pelos investimentos, mas também pelo eventual sucesso do processo de inovação, que cria amplas vantagens para o conjunto da sociedade.

A crise política que o Brasil atravessa hoje é, em grande parte, um questionamento ao papel do Estado na economia e na sociedade. Após mais de dez anos de avanços significativos na distribuição de renda, no nível de emprego, com elevadas taxas de crescimento econômico e melhorias sociais significativas, a desaceleração econômica colocou em xeque o papel do Estado como promotor e incentivador do crescimento. Ataques recorrentes às políticas sociais, aos gastos com saúde e previdência, aos incentivos públicos e ao papel dos bancos públicos fizeram com que o País revertesse sua orientação anterior e adentrasse uma nova estratégia liberal de condução da economia, com cortes de gastos e investimentos públicos, redução do papel dos bancos públicos e discussões aceleradas acerca de “reformas estruturais”, que podem ser responsáveis por reduzir os serviços sociais e a previdência pública a uma mera quimera dos verdadeiros objetivos inscritos na Constituição de 1988.

Este projeto liberal, derrotado em todas as eleições desde 2002 até 2014 e alvo de críticas até no debate econômico internacional (vide as profundas críticas aos planos de austeridade fiscal na Europa), parece se consolidar com o golpe que alçou Michel Temer e o PSDB à Presidência do País. Sem conseguir convencer a população brasileira dos pretensos méritos de seu projeto liberal, o novo governo não eleito exigirá “sacrifícios” em nome do saneamento da nação, sem possuir a menor credibilidade para fazê-lo.

Um governo que nasce rejeitado, com a pecha de golpista e traidor, marcado por profundas suspeitas de corrupção e acobertamento e sem a soberania garantida pelo voto popular, tentará reverter o projeto econômico e politicamente bem sucedido de transformação social vivido pelo País na última década, promovendo um verdadeiro “golpe econômico” após perpetrar um golpe político. Neste cenário, suas chances de sucesso são reduzidas e dependerão, dentre outros fatores, da forma com que a população brasileira reagirá aos apelos por um “sacrifício saneador”: aceitarão de braços abertos o desmonte do Estado de bem estar inscrito na Constituição, ou revelarão sua inconformidade com um governo ilegítimo que usurpou não apenas o poder, mas os próprios ideais da nação brasileira inscritos em sua carta magna?


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