Loteria é um imposto que se alimenta da ilusão, diz sociólogo

A Caixa Econômica Federal sorteia nesta sexta a Quina de São João - Foto: Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas
A Caixa Econômica Federal sorteia nesta sexta a Quina de São João – Foto: Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas

Cuidado: a Quina de São João promete distribuir um prêmio de R$ 140 milhões nesta sexta-feira, 24.  A probabilidade de acertar os números com uma aposta simples do sorteio é de apenas uma em 24 milhões. Mas você é livre para perder.

Tem sido assim que as loterias foram introduzidas no Brasil, em 1784. As concessões da Coroa a particulares se multiplicaram até que a prática foi regulamentada por dom Pedro 2º, em 1844. Com a Proclamação da República, em 1899, uma parte da arrecadação passou a ser destinada ao Orçamento federal até que, em 1961, o presidente Jânio Quadros estatizou os jogos.

Desde então, as loterias se transformaram numa importante fonte de receita. No ano passado, a Caixa Econômica Federal repassou ao todo mais de R$ 7 bilhões à União, o dobro do que o governo obteve com a Cide. Os jogos financiam a Seguridade Social, o Fundo Nacional de Cultura, o Fies, os comitês Olímpico e Paraolímpico, o Fundo Penitenciário. A União absorve tantos recursos que o prêmio líquido pago aos apostadores da Quina representa apenas 31,71% da arrecadação total.

Como explica o sociólogo Izildo Corrêa Leite em sua dissertação O Imposto da Ilusão, as loterias constituem, a rigor, uma espécie de tributo, pois os apostadores são apenas formalmente livres para jogar: as precárias condições de vida da maioria da população na prática obrigam os indivíduos a buscar atalhos para superar suas dificuldades.

Em entrevista à Brasileiros, Leite argumenta que a propensão a apostar se fundamenta em dois fatores: “De um lado temos que considerar as condições de todo precárias em que vivem parcelas muito grandes da população brasileira. É verdade que, nos últimos 13 anos, houve uma ligeira melhora absoluta dessas condições, mas contingentes populacionais muito significativos continuam a viver de modo extremamente adverso, em todos os aspectos, na sociedade brasileira. Muitas vezes tirando dinheiro de outras possíveis e necessárias destinações, um indivíduo que se encontra nessa situação deposita, no ato de aposta, suas esperanças de sair da condição socioeconômica desesperadora em que se encontra”. Embora seja ínfima, a possibilidade de ganhar existe. E, desde que as loterias surgiram,houve inúmeros “casos registrados de pessoas que ganharam prêmios desse modo: sacrificando outros gastos pessoais ou familiares”.

Mas essa privação material não constitui a única razão para jogar. O segundo elemento importante para compreender “o enorme sucesso popular dos jogos por dinheiro” é, segundo o professor da Universidade Federal do Espírito Santo, “a enorme valorização do ‘sucesso monetário’. Essa expressão foi utilizada pelo sociólogo Robert Merton, em referência à sociedade norte-americana, para se referir à obtenção de grandes fortunas. Ele considera que a busca do sucesso monetário é, nos Estados Unidos, o principal objetivo culturalmente prescrito, ou seja, aquilo a que as pessoas mais aspiram. Mas essa aspiração não se restringe à sociedade estadunidense: ela é própria das sociedades capitalistas em geral”.

É a existência desse segundo elemento que “explica, em parte, por que essa modalidade de jogos faz sucesso também em países do chamado Primeiro Mundo. O maior prêmio lotérico e o maior prêmio já conferido a um único bilhete foram pagos nos Estados Unidos. Loterias fazem sucesso também em diversos outros países desenvolvidos, como a Alemanha, a Itália, a Inglaterra etc. E, como a crise que irrompeu em 2007-2008 afetou profundamente tais países, levando a um forte aumento da pobreza, é muito provável que os jogos por dinheiro estejam representando, ali, uma possibilidade (ainda que remota) de se sair de precárias condições de vida”.

Contudo, se as pessoas querem ficar ricas, por que elas trocam modalidades de jogo com maiores chances de vitória por outras ainda mais difíceis? Esse deslocamento começou já nos anos 70, quando a Loteria Esportiva substituiu a Loteria Federal como a opção mais popular. “Quando surgiu, a antiga Loteria Esportiva (hoje Loteca) foi um grande sucesso, porque competia com um único jogo explorado pelo governo federal: a Loteria Federal. A Loteria Federal tinha (e ainda tem) prêmios já definidos de antemão: independentemente de quantas pessoas apostassem, o prêmio correspondente a cada bilhete premiado já estava estabelecido. Com a Loteria Esportiva, era diferente. Ela é o que chamamos de um pool: o prêmio a ser pago depende do total apostado. Mais apostadores, mais apostas, maiores prêmios”.

Ora, “como as duas motivações principais para explicar o sucesso dos jogos no Brasil — a tentativa de sair de condições socioeconômicas precárias e a busca do sucesso monetário — não são excludentes, já que a mesma pessoa pode estar procurando desesperadamente melhorar de vida e, ao mesmo tempo, buscando, se possível, obter grandes fortunas, a Loteria Esportiva ‘explodiu’. Muitas pessoas apostavam, os prêmios cresciam, isso atraía mais apostas. Uma bola de neve”.

“Mas a Loteria Esportiva foi superada por dois outros jogos que surgiram nos anos 1980: a Loto (hoje, Quina) e a Sena. E isso não foi um acaso. Na Loteria Esportiva (como na Loteca, hoje), o indivíduo faz prognósticos sobre eventos cujos resultados não são totalmente aleatórios, não são de todo casuais: partidas de futebol. Por mais que se diga que ‘o futebol não tem lógica’, equipes mais fortes derrotam, na média e na maioria das vezes, equipes mais frágeis. Por isso é que, quando não acontece o resultado ‘normal’, fala-se que ‘deu zebra’. Não há, na grande maioria dos casos, a mesma probabilidade de acontecer a vitória do time A, o empate e a vitória do time B. Por isso os prêmios ganhos por um só indivíduo, na Loteria Esportiva, mesmo em sua fase áurea, eram raros”.

Com a Quina e a Mega Sena não é assim: “São jogos sobre eventos cujos resultados são completamente aleatórios: é um puro acaso que o número X seja ou não seja sorteado. Por isso é frequente que poucos ganhem. Por vezes, um único bilhete é premiado. E também não é raro que os prêmios acumulem, porque ninguém fez o prognóstico sorteado. Quando a Quina (então, Loto) surgiu, ela ficou meses e meses sem um único ganhador de seu prêmio principal, prêmio esse que ia sendo acumulado para o sorteio seguinte. Uma situação desse tipo, ao invés de afastar os apostadores, exerce sobre eles uma enorme força de atração. Por que apostar num jogo em que a probabilidade de ganhar pequenos prêmios é maior, ao invés de apostar num jogo em que, embora as probabilidades de ganho sejam muito menores, os prêmios podem ser fortunas imensas? Como eu já disse, posso, numa só aposta, buscar dois objetivos, quais sejam, sair de uma situação socioeconômica muito desfavorável e, ao mesmo tempo — quem sabe? — ganhar uma ‘bolada’.”

Paradoxalmente, como a chance de ganhar é sempre pequena, os indivíduos buscam os jogos que oferecem os maiores prêmios. Em seu conjunto, os apostadores sempre perdem, pois os prêmios pagos por uma loteria são muito inferiores ao valor total das apostas. Mas isso não impede que cada jogador aposte, porque, embora suas chances de ganhar sejam irrisórias, seu prejuízo será pequeno, mas a possibilidade de ganho é imensa. Como diz Pascal, aposta-se o finito para ganhar o infinito.

Na prática, portanto, o jogo funciona como um imposto, embora formalmente se apresente como um opção voluntária. Segundo Leite, “em termos formais, jurídicos, é claro que os jogos por dinheiro geridos pelo Estado não podem ser vistos como um imposto. De acordo com a lei, eu e você fazemos apostas nesses jogos se quisermos. Mas, se, de um ponto de vista formal, há total liberdade para fazer essa escolha, não me parece que possamos dizer o mesmo quanto ao aspecto substantivo dessa questão. Para uma análise sociológica dos jogos, devemos levar em conta as situações concretas da sociedade em que eles existem. No caso brasileiro, não podemos, de modo algum, desconsiderar as difíceis condições de vida da maioria da população, a forte valorização do sucesso monetário, a ruptura ideal que os jogos representam relativamente ao cotidiano das pessoas (até que saia o resultado, a esperança no ganho tem razão de ser, porque, ainda que as probabilidades de sucesso sejam diminutas, elas são reais) e as inúmeras possíveis utilizações que se pode dar ao prêmio (caso seja ganho). Nada disso pode ser desconsiderado, quando nos perguntamos por que tantos milhões de pessoas apostam, com tanta frequência, em nosso País”.

Essa aparência voluntária do jogo constitui ainda uma vantagem “para o próprio Estado”, já que essa arrecadação não se apresenta como impositiva, “para todos os efeitos legais”.


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