As notícias que saem do Brasil para o mundo vêm se superando em seu caráter negativo mês a mês desde 2015. Primeiro foi a constatação de que a situação econômica estava muito mais deteriorada do que se deixou acreditar durante a campanha eleitoral de 2014, junto com a apresentação de um programa duro e inevitável de ajuste fiscal. Em seguida, como um movimento concatenado à piora nas expectativas sobre a economia e expressando a divisão do país ilustrada pelo resultado das eleições, o governo e a presidente da República foram vendo seu nível de rejeição aumentar de maneira meteórica.
Neste mesmo espaço apresentei mais de uma vez várias críticas à política econômica de Dilma Rousseff durante seu primeiro mandato. Penso que este talvez tenha sido seu “crime” mais grave e certamente o detonador do quadro de crise que vive agora.
A explicação da atual crise econômica e política brasileira, um processo eminentemente doméstico, tem sido feita nos últimos meses de forma bastante simplificada pela mídia e por parte dos analistas. Um exemplo do tipo de síntese que se tem visto seria a leitura da crise como a expressão do esgotamento de um projeto de governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores, que se sustentou durante o período de bonança da economia internacional e que, ademais, estabeleceu uma rede de apoio político baseada em um esquema de corrupção. Ainda que contenha elementos do quadro político atual, é simplista demais analisar o momento nesta perspectiva!
Recuperando as peças do jogo, já completamente embaralhadas à medida que a crise se aprofunda, o processo de impedimento da presidente da República não está inicialmente vinculado ao grande caso de corrupção envolvendo a empresa estatal de petróleo, o mundo político e as grandes corporações. As investigações indicam não haver dúvida acerca da existência de esquemas de corrupção integrados pelo PT, bem como por muitos outros partidos, e não apenas na esfera federal, mas também subnacional. No entanto, são esquemas semelhantes a outros revelados no passado e apenas parcialmente punidos, o que não significa que devam ser deixados impunes.
O que motiva o processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff em 2016 são procedimentos de gestão fiscal, alheios ao escândalo de corrupção e sobre os quais não há consenso na interpretação jurídica do dano à lei. A administração Rousseff está sendo julgada em uma ação originada por cidadãos que a consideram culpada pela crise. Em um sistema parlamentarista, seria normal pôr em questão a presidente nesta circunstância. Da forma como está sendo conduzido o caso no Brasil, o processo dá margem para que se veja uma tentativa de golpe em curso.
É, então, pertinente perguntar: estivesse o país vivendo uma fase favorável na economia, teria se organizado este movimento, fortalecido pela imprensa, de convencimento nacional da inadequação da Presidência da República?
Para além do mérito da transgressão da Lei de Responsabilidade Fiscal – cuja gravidade reconheço aqui –, está-se atentando contra as instituições democráticas do país. A presidente foi condenada antes de ser julgada por uma oposição que não aceitou o resultado das eleições de 2014. As contas da campanha foram julgadas sem problemas pelo Tribunal Superior Eleitoral, que agora é solicitado a reexaminá-las com outras lentes.
Curioso é o fato de que muitos dos parlamentares aptos a votar no processo de impedimento são eles também réus na Operação Lava Jato, sendo o presidente da Câmara dos Deputados um dos mais implicados, em liberdade apenas como resultado de manobras regimentais para adiar de forma impressionante seu próprio julgamento pela Comissão de Ética daquela casa legislativa. Ou seja, um conjunto de indivíduos comprovadamente corruptos votando pelo fim do mandato de um chefe de governo eleito sobre quem não há acusação de corrupção formal (mais uma vez, sem querer minimizar a importância do compromisso fiscal e da correta gestão pública).
Em meio a um quadro tão conturbado, ações arbitrárias do judiciário enaltecidas por uma opinião pública em transe, reações extremas e temerárias do partido do governo em busca de salvação, levaram o país a viver momentos de inacreditável dramaticidade.
No que concerne à economia, o cenário segue sombrio. A leitura do fracasso do ajustamento no primeiro ano do segundo mandato de Rousseff deve obrigatoriamente incorporar o elemento político. O Congresso Nacional foi impermeável a apelos de apoio para aprovação de medidas para o ajuste fiscal. O principal partido de oposição, o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), até mesmo votou contra uma medida criada no governo Fernando Henrique Cardoso que permite reduzir pressões sobre as despesas da Previdência Social. O próprio PT atuou contra o Executivo ao se posicionar contrariamente a propostas do ministro da Fazenda Joaquim Levy, um técnico com boas credenciais frente aos mercados, o que levou à sua queda. Com a demanda doméstica em retração, sem confiança e credibilidade, não há volta de investimentos. Como a própria palavra indica, um milagre seria algo ocorrido graças à intercorrência de fatores para além dos instrumentos diretamente utilizados para atingir uma meta. Na situação atual, nem foram postas em ação as ferramentas necessárias e muito menos se pode contar com um cenário favorável em termos de sustentação política para construção de credibilidade.
As perspectivas não são favoráveis para um novo governo, seja ele composto por quaisquer dos grupos políticos hoje em cena, seja um rearranjo do governo Dilma Rousseff. Não há alternativas no mundo político para compor um Executivo e ainda menos um Legislativo equilibrado e apto a enfrentar as reformas econômicas urgentes. Além disso, são poucas as opções de política econômica para além da contenção fiscal e do aumento de arrecadação por um período de tempo considerável.
A substituição da presidente não poderá garantir um choque de confiança por si só. A permanência dela no governo prolongaria a fase de instabilidade institucional, uma vez que se esfacelou a fraca base de sustentação parlamentar e sobrou pouco espaço para uma recomposição de apoios. Ao mesmo tempo, seja qual for a política sugerida por um novo governo a ser composto, ela deverá obrigatoriamente conter medidas de saneamento das contas púbicas, como elevação de impostos e corte de gastos, contra as quais estes parlamentares votaram durante o esforço de ajustamento do governo Dilma.
A “pseudo” euforia dos mercados financeiros com a saída da presidente, ilustrada nos últimos meses pela volatilidade da cotação do dólar e do índice da Bolsa de Valores, provavelmente logo sofrerá o ajuste ante à constatação de que a insólita composição do Legislativo e seu descompromisso com o real rearranjo da economia pouco poderão contribuir para uma solução da crise em um horizonte curto de tempo.
Há algo positivo nesta história? Rapidamente consigo listar alguns pontos: embora estejam sendo assustadoramente atacadas, as instituições ainda estão presentes no país; mesmo terrivelmente influenciados por uma mídia unifocal, tudo indica que a aversão dos diferentes grupos sociais à corrupção chegou a níveis muito altos. Daí até haver espaço para uma profunda renovação política deve ser um caminho mais gradual, mas, ao que parece, já em curso.
* Economista (Universidade de São Paulo) com doutorado pela FGV (Fundação Getulio Vargas) de São Paulo. É professora de Economia Internacional do Instituto de Relações Internacionais da USP.
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