Foram seis horas de debate no órgão deliberativo máximo da Unicamp, o Consu (Conselho Universitário), e mais de uma década de luta de movimentos sociais. Em decisão histórica nesta terça-feira (30), a Universidade Estadual de Campinas aprovou o sistema de cotas étnico-raciais na graduação e deu um passo importante para ser o ensino superior paulista um reflexo da composição demográfica brasileira. Prevista para o vestibular de 2019, a proposta estabelece a reserva de vagas para negros, pardos e indígenas em todos os cursos e turnos em modelo ainda a ser definido pela universidade. A aprovação foi comemorada – mas ficam as marcas de uma disputa complexa, permeada por resistências.
Enquanto a primeira universidade a adotar o sistema, a UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), o fez em 2002, e há uma lei federal de 2012 que prevê cotas em todas as universidades federais, as três grandes instituições paulistas resistiram. A Unicamp é a penúltima universidade estadual a sair da trincheira para a adoção de cotas – a primeira foi a Unesp (Universidade Estadual Paulista) em 2013; e a USP (Universidade de São Paulo) segue sem cotas.
“Mesmo com o atraso, foi uma decisão importante e significativa no cenário paulista”, avalia Lucilene Reginaldo, professora do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da Unicamp. Lucilene desenvolve pesquisas sobre história da África, da escravidão e do racismo, e fez parte de grupo de trabalho que organizou relatório e audiências prévios à adoção do sistema de cotas na universidade.
Em entrevista, ela fala sobre os debates travados para a aprovação, mostra a importância do sistema para a produção do conhecimento e discorre sobre como a política é essencial para o combate ao racismo e à harmonia falsa produzida pela “ideologia da mestiçagem”.
Brasileiros: O que essa conquista significa para o ensino superior na Unicamp?
Lucilene Reginaldo: É um momento ímpar, mas revelador de um atraso, não só da Unicamp, mas do conjunto das universidades paulistas. Esse é um debate que se instalou com força no início dos anos 2000. A primeira universidade brasileira a adotar o sistema foi a UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) em 2002.
A Unicamp tem uma política de ação afirmativa (o PAAIS), desde 2004, mas foi reticente ao modelo das cotas. Por muito tempo, a universidade fez questão de afirmar que tinha um programa de ação afirmativa sem cotas. Então, a decisão do Conselho Universitário da Unicamp foi importante porque significou uma reavaliação de sua política de inclusão e o reconhecimento de um modelo mais “radical” e eficiente de ação afirmativa, adotado no País há 15 anos.
Há também uma lei federal de 2012 que já aplica as cotas raciais em universidades federais de todo o Brasil…
Sim. Essa lei foi promulgada depois de um grande debate no Supremo Tribunal Federal em março de 2010. Na ocasião, o STF julgava uma ação contra a Universidade de Brasília que alegava a inconstitucionalidade das cotas. Em uma decisão histórica, as cotas foram consideradas constitucionais. Ficou reconhecido que o racismo brasileiro produzia situações de desigualdade e que é um absurdo reafirmar o mérito universal em um sistema com diferenças de oportunidades.
As universidades paulistas e o governo de São Paulo resistiram à lei de 2012, inclusive, chegando a lançar em 2013 uma proposta muito polêmica, muito criticada aqui na Unicamp e na USP por alguns colegas e pelo movimento de estudantes pró-cotas: o PIMESP (Programa de Inclusão por Mérito no Ensino Superior Público Paulista). Era uma proposta bastante avessa aos princípios que fundamentavam a lei. Então, o que aconteceu na Unicamp essa semana foi um enfrentamento dessa resistência de uma maneira muito significativa e muito importante.
Você chegou a ver resistência de alguns setores da universidade?
Eu vi resistência de alguns setores. No bojo do conjunto de argumentos resistentes, vejo que está uma dificuldade de reconhecer privilégios. É a dificuldade de ver que, no Brasil, o fato de uma pessoa nascer branca a coloca sim num patamar de privilégios. Do ponto de vista acadêmico, soma-se o fato de que a universidade é um espaço de reprodução de uma elite que está bastante confortável nos seus privilégios.
Acredito que no centro dessa resistência está um privilégio que foi, de certa forma, naturalizado. Então, as cotas tensionam as relações sociais porque ameaçam um dos espaços mais caros de manutenção e de reprodução dos privilégios.
A Unicamp já possui um sistema de acréscimos de pontos no vestibular para estudantes oriundos de escola pública e também de negros, pardos e indígenas, o PAAIS (Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social). Qual a diferença desse sistema para a reserva de vagas, pensando do ponto de vista da inclusão?
A grande diferença é que o sistema de bonificação continua promovendo uma concorrência universal. Há um acréscimo de pontos, mas a concorrência continua entre estudantes supostamente iguais. Já a reserva de vagas, propõe uma seleção, uma concorrência entre iguais.
Ainda, na bonificação, não se tem necessariamente uma meta de inclusão, o que está pressuposto na reserva de vagas. Também as costas se dão em todos os turnos e em todos os cursos e a bonificação tem mais impacto em cursos e turnos de menor concorrência.
As cotas na Unicamp serão implementadas no vestibular da graduação em 2019. Como está o debate de cotas na pós-graduação?
Como os programas de pós-graduação tem autonomia, alguns já possuem cotas. É o caso do IFCH (Instituto de Filosofia de Ciências Humanas), que teve as cotas implementadas em 2014 para o processo de 2015. Sei que há cotas também na Faculdade de Educação, no Instituto de Economia e há um debate avançado no Instituto de Estudos da Linguagem.
As cotas são suficientes para a inclusão? E nos cursos em que há mais resistência, como medicina e engenharia?
Algumas federais têm mais de uma década do sistema de cotas. Então, a gente tem hoje um conjunto de trabalhos produzidos que fazem a avaliação da inclusão tanto do ponto de vista quantitativo, quanto do ponto de vista dos impactos da produção do conhecimento e da qualidade do ensino. Em linhas gerais, o que esses estudos vêm mostrando é que, considerando os números, faz sim diferença nesses cursos mais concorridos.
Na proposta apresentada na Unicamp, está muito claro que a inclusão não termina na entrada, não termina na seleção. Ela supõe uma série de ações e políticas que chamamos genericamente de políticas de permanência. Porque não basta você possibilitar o acesso sem dar condições para que essa pessoa permaneça. É muito caro permanecer na universidade. A gente sabe que, quanto mais seletivo o curso, mais caro ele é. Exige-se dedicação integral, acesso a materiais bibliográficos e práticos, etc.
Uma das diretrizes do sistema de cotas na Unicamp prevê a criação de uma secretaria que vai ser responsável por cuidar das questões de inclusão, que vai desde questões materiais ao combate à discriminação.
O debate sobre o sistema de cotas no ensino superior é antigo e os argumentos que o criticam são bem conhecidos (por que não melhorar o ensino básico? como fica a excelência das universidades?).
Essas questões foram superadas ou o debate ressurgiu?
Essas questões aparecem eventualmente e, na reunião do Conselho Universitário, discutimos algumas delas. Por exemplo, argumenta-se que a questão da exclusão de pretos e pobres do ensino superior não pode ser atacada no ponto final [na universidade], e que, por isso, devemos investir na melhoria do ensino fundamental e médio para preparar o aluno para concorrer no vestibular.
É evidente que devemos atacar também o problema na base, mas se começássemos agora, quantas gerações de estudantes negros teriam que esperar para acessar o ensino público de qualidade. Além disso, se a gente considerar o conjunto de estudos elaborados no Brasil há algumas décadas sobre as desigualdades socioeconômicas, vemos que eles demonstram que as políticas universalistas não atingem brancos e negros [pretos e pardos] da mesma forma.
A professora Márcia Lima, da USP, tem estudos sobre o acesso ao ensino superior. No capítulo de uma coletânea publicada em 2015 [ver Revista Fapesp], ela demonstra que houve uma grande expansão do acesso ao ensino superior no Brasil, mas observando o recorte raça, você chega a conclusão de que os brancos se beneficiaram muito mais da expansão do que os negros. Os dados refletem um panorama que é difícil de se mensurar em pesquisas quantitativas, que é o fator racismo.
Sobre o argumento do mérito, tem muita discussão acumulada e, como falei anteriormente, ele se sustenta numa falsa premissa, na premissa de que se pode medir capacidades sem considerar que o ponto de partida das pessoas é muito diferente. As universidades com cotas têm mostrado que há uma diferença sim em termos de competência no início dos cursos, mas não ao longo e no final.
Demonstram essa conclusão o professor Jocélio Peres, da UFBA, que tem uma página em que ele divulga muitos estudos e também o professor João Feres, da UERJ, com o Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), dentre outros estudos. Então, o argumento da meritocracia é uma falácia.
Nesse sentido, ouvi – com alguma frequência nesta universidade – que o sistema de cotas coloca em risco os centros de excelência, mas isso não aconteceu em nenhuma universidade. Os que apresentam esse temor em tom de ameaça não apresentam evidências, nem dados.
Além disso, deve-se ressaltar o ganho – que é difícil de medir quantitativamente – que são as perspectivas que esses novos sujeitos trazem à produção do conhecimento. A diversidade é boa para o conhecimento. Ela faz com que a gente saia de questões previsíveis no interior de um grupo homogêneo e passemos a encarar o imprevisível, que foi possível graças a outros pontos de vista e de partida.
Tem um outro argumento que eu escuto – com certa frequência – que é o de que “não se sabe quem é negro no Brasil”. É uma outra falácia porque basta ver os números de violência para ver que os negros e pardos ocupam posições sociais e econômicas muito diferente dos autodeclarados brancos. Esse argumento certamente está relacionado com o lugar que a ideologia da mestiçagem ocupou na história do Brasil e ainda ocupa.
Você poderia desdobrar um pouco mais sobre a ideologia da mestiçagem..
Eu diria que desde o século XIX a mestiçagem é um tema fundamental do pensamento social brasileiro. Primeiro, como um atributo negativo, que impedia um projeto de nação. Depois, como mostrou a antropóloga Lilian Schwarcz, no Espetáculo das Raças, a mestiçagem foi sendo paulatinamente positivada e aí chegamos a Euclides da Cunha, com o mestiço sendo o forte.
A grande virada ocorre com Gilberto Freyre, nos anos 1930, que coloca a mestiçagem como fundadora da nossa nacionalidade. De alguma forma, retoma lá o velho mito das três raças fundadoras [o Brasil seria uma mistura de europeus, indígenas e africanos. A professora cita a tese de Martius, publicada em 1845].
Assim, a mestiçagem, à medida que foi sendo positivada, tornou-se o elemento de produção de uma sociedade harmoniosa em diversos contextos, inclusive projetando essa harmonia sobre o passado, para a sociedade escravista.
O grande problema, voltando às cotas, é que se projeta uma sociedade harmoniosa do ponto de vista racial como se isso significasse uma superação das nossas profundas desigualdades.
Acredita que políticas afirmativas vão ter um impacto positivo sobre o combate ao racismo?
Não tenho a menor dúvida. O fato de você fomentar a diversidade no âmbito da universidade é muito positivo, você provoca um impacto nos estudantes e nos futuros profissionais, possibilitando a convivência com outros universos de referência. Um aluno branco de classe média da Unicamp, que só via mulheres negras como empregada doméstica, é levado a questionar a naturalização das desigualdades quando vê uma como professora, como colega de sala.
Isso é uma contribuição muito importante para você atacar um problema complexo como o racismo. A possibilidade de formar médicos, advogados e outros profissionais negros também contribui para a formação de pessoas brancas com outras referências, com uma outra relação com o mundo.
Desse modo, as cotas também enfrentam os mecanismos de exclusão, reconhecendo o direito das populações negras. Ao ocuparem outros espaços, impõe-se uma reflexão sobre “a naturalização dos privilégios”.
Além disso, as cotas muitas vezes proporcionam que uma família tenha o seu primeiro membro formado em uma universidade. Eu ouvi há pouco de um aluno da Unicamp que ingressou aqui pelo PAAIS, que ele era a primeira pessoa da sua família que entrava na universidade. Ele também disse que, quando chegou aqui, isso era um mundo completamente diferente de tudo o que ele tinha visto.
Conta ainda que seu ingresso na universidade mudou a vida do irmão de 12, 13 anos, cujo “curso natural” seria o de procurar um emprego como empacotador de supermercado. Agora, ele já tem como projeto também entrar na universidade. Da mesma maneira, a mãe decidiu fazer vestibular e entrou em uma faculdade privada. Essa experiência demonstra que as cotas detonam no interior das famílias a compreensão de que os lugares que elas ocupam na sociedade não são pré-definidos, não são determinados.
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