A experiência em um jogo da Copa do Mundo

Torcedores argentinos lotam arquibancadas da Arena Corinthians. Foto: Fernando Pereira/ PMSP
Torcedores argentinos lotam arquibancadas da Arena Corinthians. Foto: Fernando Pereira/ PMSP

Ainda que os ingressos para as partidas da Copa do Mundo sejam quase que conquistas pessoais – pela dificuldade de consegui-los no site da FIFA, pelo excesso de cambistas deteriorando a lei humana de oferta e procura em grupos do Facebook e pelo óbvio valor distante dos tradicionais jogos de futebol no Brasil – é difícil dizer que os torcedores que estão frequentando os estádios do Mundial têm classes sociais definidas e, assim, “não sabem apoiar suas seleções” durante os confrontos.

De fato, assim como os seres humanos adoram se dividir em grupos, ainda mais em cidades como São Paulo, onde há o VIP dentro do VIP, existem várias maneiras de se fazer presente em uma arena da Copa, seja nos setores mais caros e que, por isso, são melhores para se ver ao que passa no gramado, até os locais onde o simples ato de se sentar na cadeira para descansar as pernas se torna penoso.

Foi num lugar assim que acompanhei a classificação da Argentina sobre a Suíça, na Arena Corinthians, em Itaquera, na zona leste de São Paulo, nesta terça-feira (1). A seguir, conto-lhes a minha experiência em um jogo da Copa do Mundo:

O ingresso

O bilhete já havia sido um esforço: passei duas madrugadas com o computador ligado em um desses sites construídos graças ao desespero e a criatividade de pessoas que, sem explicações legais, invadiram o servidor da FIFA e passaram a informar alguns minutos antes, por meio de uma sirene sem controle de volume, a quantidade e os jogos que teriam ingressos disponíveis. Efetuei o processo às quatro da manhã de uma segunda-feira, entre um gole de sucrilhos e uma pingada de colírio para manter os olhos abertos, quando já havia dito mais de uma vez aos presentes (mãe e irmão) que desistiria. Depois de tanta demora, o sistema da organizadora da Copa confirmou rapidamente o recebimento dos R$ 220 reais que eu não pretendia gastar, e enviou-me um email com o local e a data para imprimir a entrada. No grupo do Facebook onde aprendi a confrontar as informações, quase todos os usuários reclamavam da falta que o dinheiro faria no orçamento do mês, mas comemoravam a presença na Copa. No mais, não houve problemas: retirei-a numa manhã de sexta, no Centro Cultural São Paulo, sem filas e com o bom humor da atendente, que não deixou nenhuma dúvida viver dentro de mim nos dias anteriores ao jogo.

O percurso
Queria ter ido de expresso da Copa – para conhecer o serviço – mas fui de metrô por causa do portão onde eu entraria no estádio, pelo lado oeste. Da minha casa, no bairro do Limão, zona norte da cidade, até o metrô Santana, da Linha 1, foram 30 minutos de ônibus. Depois, mais 15 minutos até a Sé, na Linha 3, Vermelham, onde a camiseta com a bandeira da Argentina que eu vestia, até então um motivo de olhares, risadas e caretas, tornou-se o uniforme mais modesto entre os autênticos argentinos que batucavam nos vagões. Mais 25 minutos e descemos todos na estação Artur Alvim, único lugar onde encontrei excesso de gente ao ponto de precisar parar a caminhada e perder-se na multidão. Porém, não faltaram placas informativas, funcionários orientando as passagens, vendedores de refrigerante e camisetas falsificadas de Messi e veículos da imprensa internacional tornando o jornalismo algo mais leve. Do vagão do metrô até o portão da Arena Corinthians, usei mais 20 minutos do meu tempo, entre um trecho da Radial Leste fechado pela CET, duas praças adjacentes onde homens e mulheres sem ingressos exibiam suas placas pedindo misericórdia e um grupo de evangélicos que aproveitou a Copa para expor mensagens sobre o evangelho de Jesus Cristo em várias línguas.

A entrada
Ainda antes da Cohab 1, das alças dos novos viadutos do bairro e da estação Corinthians-Itaquera, não passava ninguém na última praça da Radial Leste sem ingresso nas mãos. A Polícia Militar e a FIFA montaram duas barricadas para filtrar os torcedores durante o caminho. Na primeira, bastava ter o bilhete na mão e mostrá-lo ao policial. Na segunda, já no corredor que levava ao estádio, o PM precisou pegá-lo e ler o que nele estava escrito. Desejou-me bom jogo e orientou qual deveria ser o meu rumo até a cadeira. Andei por 10 minutos entre as torcidas da Argentina e da Suíça e, quando atingi a entrada principal do estádio, não havia filas, para espanto de uma mulher de meia idade ao meu lado. “Ué, mas não disseram que era pra se preparar pra ficar parado aqui? Não estou entendendo!”, disse para o rapaz que a acompanhava. A única falha notável foi no detector de metais: passei por ele com chaves, celular e cartões magnéticos sem avisar nenhum voluntário e sem olhar para trás depois que vi o equipamento apitando. Esperei a truculenta repressão tradicional dos seguranças que se veem diante de uma mínima ameaça, mas ninguém me barrou. Dez segundos depois, passei o ingresso na catraca, ouvi o clique de confirmação e entrei na área externa do estádio, onde torcedores tiravam selfies com vários papas Francisco, Messis e Maradonas, gastavam mais dinheiro nos stands das patrocinadoras do Mundial e paqueravam quem passasse.

O estádio
Do portão ao meu lugar não foi mais do que cinco minutos. Portão H, bloco 634, fileira A, assento 7. Sentei no lugar reservado uma hora e meia antes do jogo, mas o local já estava repleto de argentinos estendendo suas bandeiras, cantando os mesmos cânticos irônicos ao Brasil e fotografando o estádio. A FIFA insistiu em colocar uma música em volume tão alto que era difícil ouvir uma conversa ao pé do ouvido, mas consegui escutar o recepcionista Ricardo Gonzalo, argentino que vive há dois anos em Búzios, no Rio de Janeiro, dizer que estava realizando seu sonho de ver a seleção argentina in loco. Foi possível falar também com a assistente farmacêutica Mariana Soares, moradora do Tatuapé, na mesma zona leste, que chorava copiosamente depois que entrou na sua fileira. “É emocionante estar aqui e poder ver um jogo de Copa. Experiência única para alguém que, talvez, nunca mais vai ver um jogo assim”, falou-me. Da minha cadeira era possível observar a estranha movimentação em um dos camarotes, onde várias moças com o mesmo uniforme ocre e turbantes cobrindo o cabelo andavam com bandejas e sorrisos. Quando o jogo começou, duas bandeiras do Líbano voavam por uma das janelas do local. 

O jogo
Fiquei na fileira que dividia argentinos e suíços. Na parte de baixo, vestidos de vermelho, com os rostos pintados tanto pelo sol forte que batia quanto pela tinta guache escura e falando uma mistura de alemão e inglês, os torcedores da Suíça faziam um barulho relativo, e quando ameaçavam gritar mais alto, eram suprimidos pelos que estavam na parte de cima, com camisetas de times populares da Argentina, chapéus customizados, bandeiras rabiscadas com nomes de bairros de Buenos Aires e muitos palavrões em espanhol a cada bola perdida pelos amigos de Messi no gramado. Durante o primeiro tempo, um rapaz forte com uma camisa da Ponte Preta discutiu com dois argentinos por motivos desconhecidos. “Aqui é Brasil, seus merd…. Não vem zoar aqui, não!”, dizia, enquanto os dois rapazes xingavam impropérios difíceis de entender. Foi preciso segurá-los para não acontecer algo pior, e uma moça suíça chamou a atenção de todos ao subir até o local da briga e pregar um discurso de paz e Copa do Mundo como conciliação entre os povos. Na hora do gol de Di María, aos 118 minutos de jogo, todos explodiram: do lado de cima, choro, abraços e gritos. Do lado de baixo, choro, abraços e gritos sentimentalmente diferentes. Quando a partida acabou, andei por cerca de 40 minutos pelo estádio, conhecendo a estrutura, as cadeiras acolchoadas, as áreas VIP’s de onde partiram os xingamentos à Dilma Rousseff na abertura da Copa, e quando retornei ao portão de saída, o lugar onde assisti o jogo ainda estava repleto de argentinos comemorando a vitória e a classificação.

Os torcedores
Conversei com várias pessoas antes, durante e depois do jogo. Não havia ninguém considerado “elite” no setor onde eu fiquei, chamado de “categoria 3” pela FIFA, penúltimo setor entre os preços possíveis. O mais caro custava R$ 440 reais e o mais barato, R$ 180 reais, esgotado desde antes da Copa. Isso não significa que pessoas que caibam neste rótulo não estivessem lá, mas também demonstra que não são apenas elas que frequentam os jogos. O próprio estádio trata de diferenciar-nos. No setor de “categoria 1”, as cadeiras têm porta-copos e são acolchoadas, além do espaço para esticar as pernas e da proteção do teto. Nos setores 3 e 4, incluindo as arquibancadas provisórias, os assentos são minúsculos e há pouco espaço para qualquer outra coisa que não seja ficar sentado com as pernas dobradas.  Portanto, há (ou houve especificamente neste jogo) uma clara mescla de classes nas arquibancadas, tanto pelas regiões da arena quanto pelos preços. além disso, os argentinos, especialmente, trataram de bagunçar: quebraram cadeiras e um deles estava na rua levando um pedaço do assento embaixo do braço.

O fim
Houve problemas de orientação depois da partida. Ninguém sabia, por exemplo, que a prefeitura tinha disponibilizado uma frota de ônibus gratuitamente para levar os torcedores até a estação Tatuapé do metrô. Quem pegava o transporte, por sua vez, pensava que estava indo para o aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. Ajudei um argentino que estava nessa situação e percebi que outros também estavam perdidos. No entanto, do metrô em diante não havia como errar. Acabava a experiência da Copa e a rotina voltava a me engolir. O Mundial para mim volta a ser para mim, agora, apenas pela televisão.


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