Desimpedidos: a nova maneira de se comunicar com torcedores de futebol

Kelvin e Bolívia entram com o meia Paulo Baier, então no Criciúma, de Santa Catarina, pelo Brasileirão do ano passado - Foto: Reprodução
Kelvin e Bolívia entram com o meia Paulo Baier, então no Criciúma, de Santa Catarina, pelo Brasileirão do ano passado – Foto: Reprodução

Só um corintiano com uma paixão considerável pelo clube consegue se lembrar de momentos ímpares – no bom e no mal sentido que a expressão pode ter – da história do time alvinegro, como quando, em uma partida contra o maranhense Sampaio Corrêa, pela Copa do Brasil de 2005, o lateral-esquerdo Fininho levantou os dois dedos médios para os torcedores que o vaiavam das arquibancadas do Pacaembu. Ele nunca mais vestiu a camisa corintiana. Ou quando o meia-atacante Fábio Baiano fez, machucado, um golaço de fora da área contra o Goiás, também no Estádio Municipal, pelo Campeonato Brasileiro de 2004, que determinou a vitória do Corinthians por 1 a 0 e livrou o time do rebaixamento naquele ano. Mais difícil ainda é recordar dos péssimos jogadores que passaram pela equipe, como o volante Wendel, campeão brasileiro em 2005, o atacante Jaílton, contratado no início de 2007 do Paulista de Jundiaí, ou o também volante Perdigão, que chegou ao clube no início de 2008 repleto de contestações nas costas. Uma falha em uma partida decisiva contra o Santos pelo Campeonato Paulista daquele ano seria a comprovação de que sua contratação fora um erro.

Foi baseado no conhecimento desse tipo “quase fanático” de torcedor que o também corintiano Kelvin Thiago, então com 18 anos, criou a página Corinthians Mil Grau no Facebook, um dia antes do primeiro jogo da final da Copa Libertadores da América de 2012, contra o Boca Juniors, em Buenos Aires. Nela, Kelvin se baseava nas brincadeiras que costumava fazer com os amigos alvinegros, criticando jogadores, decisões dos treinadores, lamentando vexames ou relembrando grandes vitórias, para construir montagens envolvendo o cotidiano da equipe, sempre com frases escritas em português provocativamente errado e na linguagem típica dos torcedores, sem abrir mão de palavrões e piadas mais pesadas. 

“As brincadeiras que eu faço na página são as que você ouve no estádio, no papo de bar com seus amigos, na faculdade, na escola ou em qualquer outro lugar em que o papo não tem tanto limite. Essa é a diferença do Corinthians Mil Grau e é por isso que acho que fez tanto sucesso”, conta ele à Brasileiros. “Eu pego até um pouco pesado com as piadas, como zoar com o fato de o corintiano escrever errado, ser maloqueiro, e daí surge aquelas coisas de ‘acabou a pas [sic]’”, completa ele, se referindo ao conhecido costume da parte organizada da torcida do Corinthians de ameaçar os jogadores quando a equipe está em má fase.

No final de 2012, ou seja, seis meses depois da surgimento do Corinthians Mil Grau no Facebook, Kelvin comemorava 60 mil seguidores da página, enquanto o clube conquistava seu segundo título mundial. Na metade de 2013, já eram 200 mil seguidores e um público fiel que curtia, comentava e compartilhava todas as postagens na rede social e que fez eco entre os atletas e a diretoria do clube, que reconheceu em Kelvin uma nova plataforma de comunicação entre a instituição e o torcedor. “Tudo casou certinho: o Corinthians foi campeão mundial naquele ano, o Palmeiras, maior rival, foi rebaixado e o acesso a internet como um todo cresceu nessa mesma época. Foi um conjunto de coisas que colaborou para a página chegar aonde chegou”, explica. “Um dia fui convidado pelo Corinthians para conhecer os jogadores, fiquei amigo do pessoal e, desde então, passei a ir aos jogos credenciado, como imprensa. Às vezes eles gostam tanto das piadas que republicam nas páginas oficiais do clube, como o famoso ‘pq fas iso, romarino [sic]’”, completa.

“Pq fas iso, romarino”, no entanto, concedeu a Kelvin mais do que fama na internet ou entre as pessoas do clube: ela alçou o Corinthians Mil Grau como um modelo inédito de linguagem que aproximou o torcedor comum tanto da conexão à rede como com o time em si. A ideia da frase surgiu quando ele e os amigos contestavam o atacante Romarinho quando ele desperdiçava alguma chance clara de movimentar o placar ou, de forma contrária, imaginando o que os adversários falavam quando ele fazia gols nos rivais. “É como você estar vendo um jogo com o pessoal e falar: ‘porque você fez isso, cara? Poderia ter chutado de outro jeito, feito outro movimento, sei lá’. É uma frase triste mesmo. Daí eu adaptei para o português errado, para dar uma cara mais maloqueiro mesmo, e pegou”, conta. Romarinho, hoje no Al-Jaish, do Catar, cansou de publicar vídeos em suas redes sociais repetindo o bordão ou de ver a expressão em faixas da torcida durante os jogos. Foi a primeira vez que o criador da frase, da página e da ideia percebeu o tamanho da ferramenta que estava manuseando e, assim, assumiu um novo nome: o “Menino Mil Grau”.

Desimpedidos, a virada

Quando Kelvin Thiago já havia desistido da faculdade de Publicidade e Propaganda, decidido a “trabalhar com internet” e iniciado a produção de vídeos sobre o clube, a maioria deles narrando os melhores momentos das partidas com a voz masculina do tradutor do Google, surgiu um convite inesperado: o canal Desimpedidos, idealizado por um grupo de sócios ligados ao futebol, entre eles o meia-atacante Kaká, o queria na equipe para iniciar um projeto parecido de comunicação pela internet.

“O Desimpedidos começou em 2013 por uma iniciativa do pessoal do canal Porta dos Fundos, que queria desenvolver algo semelhante em termos de estrutura, mas ofertando um conteúdo de futebol. A [produtora] Spray Filmes incubou a gente dentro deles, virou nossa sócia e, a partir dali, passamos a projetar a empresa”, conta André Barros, CEO da Networks Brasil, que controla, entre outros, o canal Desimpedidos.

Em junho de 2014 foi ao ar o primeiro vídeo da nova página: um piloto parecido a um jornal televisivo, mas com dois apresentadores – um deles Kelvin – fazendo piadas com times, jogadores, técnicos, dirigentes e outros agentes que rodam o universo futebolístico. De lá para cá, o crescimento foi exponencial: os “programas” do canal dobraram de tamanho e de temas; a estrutura física para gravações de quadros cresceu; o apresentador Felipe Andreoli, hoje na TV Globo, passou a colaborar para a página com um programa semanal; um novo personagem surgiu (Bolívia, uma caricatura criada por Kelvin para se referir aos bolivianos que trabalham em longas jornadas de trabalho em São Paulo e que, na brincadeira, era um editor que passava o dia editando vídeos) e, enfim, as empresas passaram a olhar no canal uma possibilidade de comunicação com um público considerado interessante. “O Desimpedidos nasceu com alguns apoios importantes, como a Coca-Cola e Easy Táxi, por exemplo, e para a gente já é rentável hoje. Acho que vai oferecer ainda mais receitas e lucros em breve. As empresas se interessam pela forma que a gente se comunica e as pessoas que a gente atinge. É um tradutor para a marca chegar e conversar com o público que temos: faixa de etária, perfil…”, conta André.

Até a semana passada, a página tinha 1,8 milhão de seguidores, uma média de 20 mil “likes” em cada postagem, um site oficial e até um pequeno shopping com camisetas personalizadas. Mais do que isso, os clubes institucionalizaram a brincadeira em suas plataformas de comunicação: o Corinthians repete constantemente as piadas do canal, o Coritiba responde as postagens que brincam com o time e o Criciúma chegou a permitir que a dupla entrasse em campo com Paulo Baier em um jogo do Brasileirão do ano passado.

Em março, o canal comemorou a primeira cobertura internacional durante os amistosos da Seleção Brasileira contra a França e o Chile, em Paris e Londres. Kelvin, agora “Menino Mil Grau”, e Bolívia passaram cinco dias nas duas cidades europeias gravando os programas semanais, entrevistas e um diário sobre a viagem. Todas as postagens registraram centenas de visualizações no Youtube e uma média de mil compartilhamentos no Facebook. “Aquele formato ‘coxinha’ dos programas de televisão,  a mesa redonda, os caras de terno e gravata, está no fim. Cada vez mais a gente percebe que as pessoas querem uma comunicação direta de torcedor pra torcedor. Os caras na TV falam bonitinho, mas não falam a verdade como a gente pode falar. Nós não temos pudor. Falamos qualquer coisa porque é o que o torcedor gosta. Ele gosta de falar que o goleiro do time rival é frangueiro, que o Cruzeiro treme, que o São Paulo é freguês do Corinthians, essas coisas”, finaliza Kelvin.


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