Fuga para a vitória

Coragem - Popole Misenga em treinamento para encarar o tatame no Instituto Reação, Rio de Janeiro. Foto: Rio 2016/Alex Ferro
Coragem – Popole Misenga em treinamento para encarar o tatame no Instituto Reação, Rio de Janeiro. Foto: Rio 2016/Alex Ferro
Refugiados carregam nos ombros o peso de uma tragédia pessoal: são proibidos de viver na nação de origem. Atletas refugiados vivem esse drama em dobro: não podem também representar o país natal em competições onde exercem sua profissão. Sensíveis a essa crueldade, dirigentes do Comitê Olímpico Internacional decidiram acolher apelos de organizações humanitárias e criar, para a Rio 2016, a primeira delegação oficial de refugiados em uma Olimpíada: a Refugee Olympic Athletes (ROA, na sigla em inglês), ou Atletas Olímpicos Refugiados. “Se não pertencem a nenhuma equipe nacional e não podem marchar atrás de uma bandeira nacional nem têm permissão para cantar hino nacional em cerimônias públicas, esses atletas serão bem-vindos aos Jogos do Rio com a bandeira e o hino olímpicos”, diz o presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), o alemão (campeão olímpico de esgrima) Thomas Bach.

O projeto consumiu esforço e tempo. Na primeira fase, logo após os Jogos de Londres 2012, o COI iniciou uma consulta aos comitês olímpicos nacionais (CONs ou NOCs, na sigla em inglês) sobre a existência de atletas estrangeiros abrigados em condição de disputar os Jogos Olímpicos. Com as respostas nas mãos, e também as avaliações de especialistas e consultores, os integrantes do Conselho Executivo do comitê chegaram, no final de 2015, a uma lista com os 43 competidores.

Feita a lista, o COI finalmente deu sinal verde, dias atrás, para a criação da ROA. Em junho, o Conselho Executivo vai se reunir para definir os integrantes da equipe. A peneira da seleção será apertada: apenas de cinco a dez atletas deverão ser selecionados entre os 43 previamente listados pelo COI. Com boa vontade, a ROA poderá ter 12 e, com euforia, 15 integrantes.

Os critérios de seleção incluirão a situação do atleta em relação ao estatuto do refugiado das Nações Unidas, o comportamento pessoal no país de abrigo e, como era de se esperar, as informações e índices de desempenho esportivo no período da reunião. No mesmo dia em que confirmou a equipe de refugiados, o COI anunciou o fechamento de novas indicações e inscrições para o projeto. A partir de agora, atletas refugiados adicionais só em “circunstâncias especiais” – e com a aprovação pessoal do presidente do COI.

Resumo da ópera de Bach: se nada de “especial” ocorrer até junho, a base para a seleção será mesmo a atual lista com os 43 concorrentes. Por questão de segurança, o COI não divulga informações detalhadas sobre os refugiados antes dos Jogos. Mas é certo que há dois abrigados pelo Brasil na lista: os judocas congoleses Popole Misenga, 23 anos, categoria médio (até 90 quilos), e Yolande Bukasa, 28 anos, médio-pesado (até 78 quilos).

Os dois estão no Brasil desde agosto de 2013, quando aproveitaram a disputa do Mundial de Judô no Rio para pedir asilo político ao governo brasileiro. Justificativa: eles eram vítimas de agressões e atos de violência promovidos nas últimas décadas por grupos em batalhas étnicas e políticas no país de origem, a República Democrática do Congo, o segundo maior da África em extensão territorial e, na prática, um caldeirão de conflitos desde a independência, em junho de 1960. Foram vítimas até de seus treinadores e líderes esportivos. Abrigados, os dois passaram a treinar no polo Cidade de Deus do Instituto Reação, dentro da faculdade Estácio, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio.

O Reação é a ONG de inclusão social pelo esporte criada pelo ex-judoca Flávio Canto, medalha de bronze nos Jogos de Atenas 2004. “No início, estavam mal alimentados”, lembra Geraldo Bernardes, coordenador de alto rendimento do Reação e técnico da dupla. “Fizemos um trabalho que envolveu alimentação, assistência psicológica, cesta básica e cuidados com o corpo, além da orientação técnica e esportiva. Hoje estão mais fortes. São aplicados, interessados e treinam com três judocas que pertencem ao time olímpico brasileiro. Temos esperança de que entrem para a equipe ROA”, acrescenta o técnico.

É um trabalho apoiado pelas principais lideranças do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e pelo Ministério do Esporte (ME). “Criar a equipe de refugiados foi uma grande iniciativa do COI. Mostra a força que o esporte tem para ajudar pessoas e comunidades. O COB foi o primeiro comitê olímpico nacional a indicar atletas refugiados para o programa. Estamos em plena torcida para que Misenga e Yolande alcancem a classificação”, revela o presidente do COB e do CO-Rio, Carlos Arthur Nuzman. “Pela primeira vez os Jogos terão a participação de um time de refugiados. Um marco na história do esporte.

E o melhor de tudo: isso se dará no Brasil, uma nação multiétnica, que historicamente recebe todos de braços abertos e abriga atualmente 8,6 mil refugiados de diversos países”, afirma o ministro do Esporte, Ricardo Leyser Gonçalves. “A participação do time de refugiados tem o condão de denunciar o drama dessa crise global que envergonha e entristece. E, acima de tudo, é um símbolo de esperança para a humanidade. Esses atletas certamente servirão de inspiração e serão motivo de orgulho para os demais. Ficarão marcados como exemplo de superação e espírito olímpico”, diz o ministro.

O sofrimento e o espírito de superação de Misenga e Yolande justificam tanto apoio. Nascida na capital,Kinshasa, Yolande mudou-se ainda criança, com a família, para Bukavu, no leste da República Democrática do Congo, uma das regiões mais castigadas pelos confrontos étnicos, onde também vivia Popole. Pressionados pelos conflitos, os dois decidiram ir para capital. “Andei pela floresta por oito dias. Em uma província pequena, subi em um barco que me levou até a capital, onde morei com um amigo”, conta Popole. O judoca jamais teve notícias dos três irmãos deixados para trás. A mãe já havia sido assassinada quando ele fugiu.

Busca - Yolande Bukasa tentava conversar como todo negro que via no Rio. Achava que eram africanos e poderiam ajudá-la. Foto: Rio 2016/ Alex Ferro
Busca – Yolande Bukasa tentava conversar como todo negro que via no Rio. Achava que eram africanos e poderiam ajudá-la. Foto: Rio 2016/ Alex Ferro

Os dois se tornaram alunos dedicados de judô na capital. Por isso, foram chamados para o Mundial de 2013 no Rio. O sofrimento promovido pelos técnicos congoleses na ocasião não foi menor. Eles contam que o chefe da delegação confiscou dinheiro, documentos e até material de disputa, como faixas e quimonos, deixando os atletas famintos. “Não lutei no Mundial. Decidi que já tinha sofrido muito e, por isso, não iria lutar. Depois de três dias sem comida em um hotel do centro do Rio, resolvi fugir. Tinha fome. Pensei: é minha oportunidade de ficar neste país”, contou Yolande.

A judoca tomou as ruas do centro do Rio sem falar português. Tentava conversar com todo negro que passava à sua frente na esperança de que fossem africanos. Dois dias depois, conseguiu fazer contatos com moradores da favela Cinco Bocas, em Brás de Pina, zona norte, bairro que abriga parte considerável dos congoleses e africanos residentes no Rio.

O sofrimento de Popole foi parecido. Com um quimono emprestado, chegou a lutar na primeira rodada. Perdeu a luta por falta de combatividade (“estava fraco de fome”) e tomou decisão parecida com a da amiga Yolande. “Decidi: vou ficar mesmo aqui. Alguém vai me ajudar.” Depois de vagar alguns dias pelas ruas do Rio, conheceu um angolano que o levou à instituição católica Caritas, que presta auxílio a estrangeiros. Semanas depois, foi morar com o mesmo amigo em uma comunidade em Brás de Pina, onde reencontrou a amiga Yolande. Popole casou-se recentemente e continua no bairro.

Agora devidamente nutridos, os dois treinam em um instituto respeitado com apoio financeiro de bolsas do grupo Estácio, do Ministério do Esporte e do programa Solidariedade Olímpica do COI. Ganharam e perderam muitas lutas dentro e fora dos tatames, várias delas tribais e outras nem tanto. Mas desejam mesmo é participar da grande batalha, da grande e inesquecível guerra dos palcos dos Jogos Olímpicos do Rio 2016.

Como será a Rio 2016 dos refugiados

O Comitê Olímpico Internacional (COI) selecionou 43 refugiados, abrigados em vários países do mundo, com potencial para disputar a Rio 2016. Os judocas congoleses Popole Misenga e Yolande Bukasa, radicados no Brasil e treinados no instituto carioca Reação, fundado por Flávio Canto, estão na lista.

Em junho, o Comitê Executivo do COI formará o time a partir da lista. Inicialmente, ele terá entre cinco e 12 atletas. Mas poderá chegar a 15. O nome da equipe será Refugee Olympic Athletes (ROA, na sigla em inglês) ou Atletas Olímpicos Refugiados.

Como as outras equipes, a ROA terá cerimônia de boas-vindas na Vila Olímpica e será hospedada em instalações idênticas às criadas para os outros 11 mil competidores. Uma equipe com chefe de missão, treinadores e dirigentes técnicos será nomeada pelo COI para atender às necessidades da ROA.

As roupas das cerimônias, uniformes e materiais individuais de disputa serão fornecidos pelo COI. A bandeira e o hino olímpico serão os símbolos dos refugiados nos Jogos em apresentações da equipe, incluindo as cerimônias de abertura, encerramento e, se for o caso, de medalha. 

A ROA será a penúltima delegação a entrar na Cerimônia de Abertura. A última será a dos anfitriões, os brasileiros. Cada atleta da ROA terá uma apólice de seguro pessoal. A Solidariedade Olímpica cobrirá despesas de viagem e as envolvidas com os Jogos dos atletas da ROA.


Comentários

Uma resposta para “Fuga para a vitória”

  1. Avatar de Carlos Baket
    Carlos Baket

    Os cubanos que fugiram para Miami (balseros) também podem integrar esse time???

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