Os jornalistas Paulo Markun e Vladmir Herzog tiveram um rápido e intenso período de convivência. Se conheceram no fim de março de 1975, na redação Folha de S.Paulo, e se viram pela última vez no dia 17 de outubro do mesmo ano.
Naquele dia, Markun, chefe de reportagem da TV Cultura, onde os dois trabalhavam, foi preso pelos militares. Uma semana depois, era Vlado quem se apresentava no Doi-Codi, onde seria torturado e assassinado no dia 25 de outubro.
Se não teve a chance de conhecer melhor o colega em vida, Markun o conheceu e descobriu muito sobre Herzog para escrever a biografia Meu Querido Vlado, lançada há dez anos e agora reeditada, com um novo prólogo e atualizações após os trabalhos da Comissão da Verdade.
Leia nossa entrevista com Paulo Markun:
Brasileiros – Reeditar o livro no momento em que temos manifestações pedindo a volta da ditadura te motivou ou pesa mais os 40 anos do assassinato de Herzog?
Paulo Markun – As duas coisas. Quarenta anos é uma data redonda, o livro foi originalmente publicado há dez anos e tem toda uma geração que não leu porque ele estava fora de catálogo. Ao mesmo tempo, havia uns detalhes para atualizar a partir do trabalho da Comissão da Verdade, algumas modificações que aconteceram.
Mas principalmente, acho que tem a ver com esse cenário político de hoje onde, na minha opinião, há um desentendimento por parte de gente que não viveu a ditadura de qual é a diferença entre democracia e ditadura.
Pelo fato de que a democracia não resolveu todos os nossos problemas, nem as desigualdades, nem a educação, nem a corrupção, há pessoas que aderem a essa ideia da volta dos militares sem ter vívido aquele período. Eu costumo dizer que é muito simples entender a diferença entre as duas coisas. Em uma democracia você pode até ir para a rua pedir a volta da ditadura, mas em uma ditadura você não pode pedir a volta da democracia, salvo se você correr o risco de ser punido por isso.
Relembrar a trajetória do Vlado, principalmente o que ele fez como jornalista, que é um pouco o que o Instituto Vladmir Herzog faz, é uma maneira de alertar para isso: “Olha, democracia é um avanço que precisa ser preservado a qualquer custo e as questões e os problemas que a sociedade tem devem ser resolvidas dentro do regime democrático”. Claro que quando você tem uma instituição como o Legislativo, fortemente abalada por denúncias de envolvimento de parlamentares com corrupção, é difícil pensar assim, mas eu acho que é necessário.
O prólogo da nova edição é uma carta sua para o Herzog atualizando ele das novidades dos últimos 40 anos. Qual a função desse texto?
Originalmente, a primeira versão do livro era uma carta destinada ao Vlado, por isso o título é Meu querido Vlado. Isso lá em 2005. Mas quando eu fui escrever nessa forma, inteiro, verifiquei que isso demandava uma quantidade tão absurda de notas de rodapé que ficaria muito chata a leitura. Porque quando duas pessoas que se conhecem bastante estão conversando, ainda que seja por carta, você não explica exatamente tudo, você acredita que o sujeito sabe de algumas coisas. “Ah, lembra do Zuenir Ventura?”, você não fala quem é o Zuenir Ventura. Isso inviabilizou lá atrás o modelo.
Mas agora imaginei esse prólogo com o sentido contrário do que ele aparenta. Acho que é uma maneira de um público mais jovem tentar entender o que era o Brasil e o mundo daquela época, onde nada daquilo que tá ali mencionado existia.
Não existia a Rússia capitalista, ela era comunista, parte da União Soviética e governada pelo Partido Comunista, não por um ex-líder da KGB. Imaginar em 1975 um negro presidente dos Estados Unidos era impensável, idem mulheres no comando de vários países.
Ao mesmo tempo, certos problemas do mundo permanecem. É o caso dos apátridas, que hoje é essa questão dos imigrantes. O Vlado mesmo nasceu na Iugoslávia, depois passou pela Itália, antes de chegar no Brasil.
A carta foi mais nesse sentido de chamar atenção, principalmente para as mudanças tecnológicas. A televisão em 1975, por exemplo, era o grande e único veículo de comunicação de massa no Brasil. A importância de fazer uma televisão educativa, se hoje é relevante, naquela época, então, era extremamente relevante.
Quanto você reescreveu para esta nova edição, quais são as principais novidades? As notas do final do livro sobre vários personagens estão super atualizadas, por exemplo.
O trabalho de alguns colegas profissionais, como o Audálio Dantas e o Marcelo Godoy, e da própria Comissão da Verdade deixou mais claro quanto aquela campanha contra a TV Cultura em 1975 era parte do jogo do poder que envolvia de um lado o general Geisel, presidente da República, e do outro o ministro do exército, Silvio Frota.
Por exemplo, agora entendemos como o DOI-Codi e os organismos de repressão realmente respondiam a uma cadeia de comando muito clara, mas tinham conquistado autonomia em relação a presidência da república.
Se no livro de 2005 isso não tava perfeitamente esclarecido, acho que agora fica claro pelas revelações mais recentes. Outra coisa importante, digamos assim, é dar mais visibilidade ao papel que o então deputado José Maria Marin teve de fazer coro para essa campanha sórdida contra a TV Cultura.
Na época, ele era um deputado irrelevante, que depois ainda ganha algum protagonismo na política- chegou a ser governador de São Paulo temporariamente por ter sido vice, mas realmente se destaca só na CBF e agora como personagem de um escândalo de corrupção.
Como personagem da história, como você encarou os resultados da Comissão da Verdade?
Eu acho que a Comissão da Verdade bateu de frente com o silêncio dos militares. Há uma determinação não publicada de botar uma pedra em cima de todas as histórias que envolvam as ações de tortura dos militares. Exército, marinha e aeronáutica jamais reconheceram os erros e os abusos cometidos, só muito indiretamente. E mais: no período da redemocratização, que foi longo e gradual, porque não houve uma ruptura, muitos documentos e material desapareceram. Então, a Comissão não teve grande avanços, a não ser, graças ao esforço de sua equipe, em conseguir definir essa coisa da cadeia de comando, ou seja, demonstrar que não era algo de meia dúzia de fanáticos e malucos a solta, mas que era algo planejado. E em alguns casos, como do deputado Rubens Paiva, conseguiram novas informações.
Mas os avanços foram modestos e o país não se livrou deste modelo de anistia que mistura alhos com bugalhos. Uma coisa é você anistiar um militante político que fora do Estado pegou em armas para lutar contra ditadura, ainda que fosse para implantar um regime ditatorial de esquerda. Outra coisa é anistiar agentes do Estado que atuaram por determinação dos seus superiores em uma cadeia de comando muito clara cometendo o maior número de abusos em relação aos direitos humanos, os direitos do presos, a convenção de Genebra e tudo isso. Mas é isso que o Brasil decidiu lá em 1979, em um outro cenário político.
E de lá pra cá, as condições políticas não foram dadas para que se modifique isso, ao passo que outros países vizinhos, em relação aos responsáveis pela tortura, tiveram outro tipo de comportamento. E esse debate continua. Não acho que se encerrou, embora do ponto de vista efetivo de punição real a gente possa ter poucos avanços porque muitos já morreram e porque os documentos desapareceram.
Pessoalmente você gostaria que a gente tivesse uma atitude mais próxima do Chile e da Argentina com os torturadores?
Certamente, mas não por mim. Para você ter uma ideia, eu sequer recorri a anistia, aos direitos que eu supostamente teria de ser indenizado pelo que eu vivi. Acho que há pessoas que usaram isso e outras que não usaram, eu estou entre as que não usaram por decisão própria. Acho que eu estava lá atuando sabendo dos riscos que corria e nem acho que os prejuízos que tomei, que foram grandes, se resolvam com pagamento. Não recorri a isso.
Mas para o país acho que seria importante ter isso, como houve na própria África do Sul do apartheid – onde a situação era muito mais complexa e houve um momento de expurgo do que se passou e se deu um salto adiante.
Sua relação com o Vlado foi curta e na maior parte do tempo profissional, além do fator histórico, o personagem que entra pra história, o que te motivou pessoalmente a contar a história dele?
Eu vivi isso, foi para mim um marco na vida. Eu tinha 23 anos e foi um marco importante porque até então eu acreditava muito cegamente que um grupo de militantes abnegados e dispostos a qualquer sacrifício, se soubessem o que estavam fazendo, conseguiria mudar o mundo e mudar o país. Essa experiência concreta ali me demonstrou que na verdade as modificações só acontecem ou vão acontecer quando envolvem as grandes massa, as multidões, o povo inteiro.
É o caso, por exemplo, da campanha das Diretas, que embora não tenha chegado ao que toca a decisão dos parlamentares, foi um um marco de ruptura e de aceleração do fim da ditadura muito importante, assim como a morte do Vlado foi isso em um grau menor, por envolver muita gente e não um único grupo.
Então, minha vida profissional tem uma mudança grande após esse período. Porque o jornalismo para mim até ali era um pedaço da minha atividade, a militância política era mais importante. E o Vlado, ao contrário, era um cara cujo o foco central era a atividade profissional, seja como jornalista ou o cineasta que ele imaginava vir a ser, porque até então ele tinha só um documentário filmado, mas tinha roteiro e projetos em desenvolvimento. Isso pesou no sentindo de relembrar esse momento da minha história.
No programa Retrovisor você entrevista “mortos” que são interpretados por atores. Fazendo um pouco este papel, você consegue imaginar um recado do Vlado para 2015.
Eu não sei se conseguiria, mas mais facilmente talvez consiga pensar em qual seria a atitude dele diante do que a gente está vivendo. E eu tenho a impressão, posso estar engando, claro, de que seria um misto de desânimo e ao mesmo tempo de persistência.
Porque a conjunção dessa crise econômica com a crise política e as denúncias de corrupção e esse movimento da sociedade, essa intolerância que vem crescendo, desanima no sentindo de imaginar como a gente vai sair disso.
Mas ao mesmo tempo acho que o levaria a pensar em como atuar nesse cenário dividido entre torcedores do Flamengo e do Fluminense. Acho que ele não estaria torcendo nem para o Flamengo e nem para o Fluminense, estaria preocupado com questões maiores. Acho que a gente tá muito nesse embate em que tudo se resume a tirar ou não o comando do país da presidenta Dilma, como se isso resolvesse as questões todas. E isso é dito e estimulado por algumas pessoas que sabem muito bem o que querem e outras que não tem a menor ideia de aonde isso vai dar, no sentindo de que se quer sabem – e falo dos grandes setores de classe média – os procedimentos, agora talvez comece a ficar mais claro, o que acontece no dia seguinte, o que justifica ou não isso.
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