Allons Enfants

Jean Echenoz - Foto: Divulgação/ Editora The New Press
Jean Echenoz – Foto: Divulgação/ Editora The New Press

1. Nos cem anos do seu início, a Primeira Guerra Mundial ainda se presta a discussões. Para os que a viveram, ao menos para os franceses interioranos deste pequeno romance de Echenoz, era tudo mais simples: em seu orgulho patriótico, com direito a bravatas e bebedeiras, a campanha contra os alemães seria um passeio breve e vitorioso. Homens de até 50 anos embarcaram para o conflito com seus distintos bigodes e uniformes feitos às pressas sem ter ideia do inferno pavoroso que os aguardava.

Minimalista, Echenoz descreve as cenas com distanciamento. Confia na força das situações para despertar as emoções no leitor. Adota como personagem de referência um sujeito medíocre, Anthime, contador numa fábrica, que sofre de ciúmes por causa da filha do patrão, Blanche. Ela, por sua vez, prefere o impávido Charles, um pouco mais velho, a quem o nosso herói involuntário não consegue deixar de admirar.

Com Anthime, seguem no trem seus amigos inseparáveis de pesca, café e conversas à toa. Cada qual terá seu destino, uns piores que outros. No começo, “todo mundo parecia bem contente com a mobilização”. Mas aí vem o frio: “o vento caiu sobre eles como uma massa autoritária”, e o caos do combate: “as primeiras fileiras da infantaria tiveram de abandonar a estrada para se arriscar abertamente pelo campo (…) e, a partir daí, não contentes de amargar os tiros que vinham do inimigo, tiveram ainda de levar nas costas as balas disparadas imprudentemente por suas próprias forças.”

Quem tenta desertar é fuzilado. Falta comida e até corvos e toupeiras servem de alimento. O gás mostarda dizima toda uma companhia, presa nas trincheiras. A prosa clínica de Echenoz não poupa o leitor dos detalhes, os quais alterna habilmente com o plano geral: “os sobreviventes reergueram-se, mais ou menos constelados de fragmentos de carne militar, de farrapos sujos de terra que os ratos já tratavam de arrancar e disputar em meio aos destroços de corpos espalhados aqui e acolá – uma cabeça sem mandíbula inferior, uma mão sem aliança, um pé sem bota, um olho.” 

Anthime participa da longa e extenuante tragédia com a conformação singela de quem não tem sonhos ou ambições. É como se estivesse anestesiado diante de tamanha loucura. Os curtos capítulos mostrando Blanche em sua espera sufocada, grávida de um dos rivais, aumentam a sensação de uma irrealidade que, no entanto, é cruelmente real. E é desse contraste que Echenoz, mestre da brevidade densa de significados, extrai a força maior de sua obra.

14. Jean Echenoz. Tradução de Samuel Titan Jr. Editora 34, 136 páginas
14. Jean Echenoz. Tradução de Samuel Titan Jr. Editora 34, 136 páginas

2. Amin Maalouf nasceu no Líbano, em 1949, mas vive desde então em Paris. Recebeu os principais prêmios na França, inclusive o Goncourt, e também o  Príncipe Astúrias pelo conjunto da obra, de forte acento humanista. Em 2011 foi eleito para a Academia Francesa. Os Desorientados é seu oitavo romance, lançado em 2012. Em entrevistas, o autor declarou ter se baseado livremente em sua própria experiência.

Amin Maalouf - Foto: Claude Truong-Ngoc
Amin Maalouf – Foto: Claude Truong-Ngoc

O livro acompanha a vida de um grupo de amigos idealistas, que se reuniam no começo dos anos 70, em Beirute, para falar “do Vietnã, da guerrilha boliviana, da Guerra Civil Espanhola, da Longa Marcha” e também “dos poetas malditos, dos poetas assassinados, De Garcia Lorca, al-Moutanabbi, Puchkin”. Com o início da Guerra Civil, que duraria de 1975 a 1990, o grupo se dispersou, cada um reagindo ao conflito de uma maneira bem diferente. “Tudo se corrompeu: a amizade, o amor, a dedicação, o parentesco, a confiança e a fidelidade. E também a morte.”

Entre os que deixam o Líbano (aqui chamado de Levante) está o personagem central, Adam, alterego do autor, que se torna um historiador de renome na terra de Sartre e Beauvoir. 25 anos depois, recebe o telefonema de seu melhor amigo de juventude, de quem havia se afastado por divergências éticas e políticas. O amigo diz que está à beira da morte, quer revê-lo. Seria uma oportunidade não apenas de fazer as pazes, mas também de retornar pela primeira vez ao país natal. Adam faz as malas e parte, não sem muitos receios e hesitações.

A narrativa se divide em duas vozes e dois tempos. Há um narrador clássico, em terceira pessoa e há os diários de Adam, que descreve cada um de seus dias ao longo da viagem; há as descrições do presente e as reminiscências, que se alternam com fluidez. Ao contrário de Echenoz, Maalouf não é um estilista da língua, um depurador; seu grande talento está em fazer girar a roda de sentimentos e reflexões de forma a penetrar na consciência do leitor. Se o livro de Echenoz é seco e objetivo, Os Desorientados tem na subjetividade bem explorada dos diversos personagens a sua força.

E são figuras complexas, que se perderiam na mão de um romancista menor. Mourad, o amigo moribundo, tornou-se um político corrupto (“ As guerras não se limitam a revelar nossos piores instintos, elas os fabricam”). A bela Semíramis nunca se recuperou da morte de Bilal, que aderiu à guerrilha. Albert, homossexual reprimido, depressivo a ponto de tentar o suicídio, refugia-se nos EUA. O bonachão Naïm foi morar no Brasil e aderiu ao famoso “jeitinho”. Ramzi e Ramez montaram um escritório de arquitetura e ficaram milionários; Ramez, no entanto, abandona tudo para viver num monastério dentro de uma caverna. Com a morte de Mourad, combinam de se encontrar.

Em suma, um livro saboroso, difícil de largar, que entretém ao mesmo tempo que que propõe dilemas universais.

Os Desorientados Amin Maalouf Tradução de Clóvis Marques Bertrand Brasil, 490 páginas
Os Desorientados. Amin Maalouf. Tradução de Clóvis Marques Bertrand Brasil, 490 páginas

 


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