De touros e cavalos-marinhos

Escalada para o segundo dia da FLIP, ao lado do poeta Mariano Marovatto, com mediação de Carlito Azevedo, Matilde toma uma cerveja à beira do Tejo, em Lisboa - Foto: Maria Palha
Escalada para o segundo dia da FLIP, ao lado do poeta Mariano Marovatto, com mediação de Carlito Azevedo, Matilde toma uma cerveja à beira do Tejo, em Lisboa – Foto: Maria Palha

Um salto mortal. É assim que a lisboeta (e já meio carioca) Matilde Campilho, 32, define o impacto que a publicação de Jóquei teve em sua vida. Desde que foi lançado em Portugal no ano passado, o livro vem sendo saudado pela crítica e teve um sucesso surpreendente de público, esgotando rapidamente a primeira edição. Boa parte da matéria-prima de seus poemas surgiu ao ritmo de caminhadas pelo Rio de Janeiro, onde viveu por três anos trabalhando como jornalista. Foi lá que fez amizade com o poeta Carlito Azevedo, que a encorajou a escrever. Nômade, Matilde, que voltou a morar em Lisboa, estudou História da Arte em Milão, trabalhou na MTV da Espanha e em um hospital de periferia em Moçambique. Seus poemas em prosa e versos livres, vestidos numa dicção encantatória, juntam referências a escritores e cantores, lugares e situações inusitadas, amores e conversas com pessoas distantes e uma filosofia de vida ensolarada, alegre, terna e selvagem. Convidada para a Flip, vai a Paraty pela primeira vez.

Brasileiros – Você tem regras próprias na hora de escrever?
Matilde Campilho – Regras fixas eu não diria. Mas a verdade é que organizo meus dias bastante em volta da escrita, mesmo que possa passar um dia ou dois sem que eu escreva. Seja como for, tudo é caminho para isso. A leitura diária, a corrida de manhã, um mergulho no mar quando é verão, a observação das ruas, tudo é um caminho para chegar à escrita. Os rituais e as regras não são sempre iguais, nem poderiam ser. Para que um poema seja diferente do outro, preciso que os “exercícios” variem também. E isso, no resultado final, vale tanto para o momento da escrita como para a forma do texto. Se existe um ritual fixo, ele é o do trabalho. Eu estou trabalhando o tempo todo para os poemas, mesmo quando estou distraída. A distração, a observação aleatória do mundo, isso também constrói o poema final.

A sonoridade é um fator decisivo para seus poemas?
Sim, com certeza. Acho que toda a literatura tem um som, um ritmo, uma cadência. Mas de todas as vertentes dela, talvez a poesia seja aquela na qual isso é mais explícito. Lembro de que uma vez estava lendo um poema no trem, muito concentrada, e quando dei por mim estava batendo o pé no chão e a mão no joelho, ritmadamente. Como se estivesse acompanhando os batimentos de uma canção. Olhei para a pessoa do lado, que estava escutando música com fones de ouvido, e ela estava fazendo o mesmo, em outro ritmo. Achei aquele momento muito bonito, porque foi a confirmação física daquilo que eu já suspeitava: poema também é canção. Poema tem um ritmo para além de um timbre. Mesmo quando isso está oculto. A cadência é muito importante para mim na hora de escrever, seja nos momentos em que construo o poema inventando um ritmo para ele, seja nos momentos em que o ritmo vem antes e guia o poema. Sim, sim: a sonoridade me importa muito.

Há uma mescla entre o casual e o estudado em Jóquei, que me parece muito feliz e difícil de atingir. Você se debruça muito tempo sobre os poemas? Quando sabe que estão prontos? E de onde eles nascem?
Os poemas nascem precisamente dessa mistura constante entre trabalho e dia a dia. Entre estudo e ocasião. Nascem do atravessamento que existe entre as leituras concretas (de poesia, de romances, de jornais, até de enciclopédias) e o cotidiano. Para mim, interessa muito a mistura do real com a teoria, até porque muitas vezes o real contradiz a teoria. Outras vezes a confirma e desdobra. Interessa também a metafísica que se mistura constantemente com o banal, todos os dias, em tantos gestos que nos parecem automáticos. Acho que é por causa dessa mistura constante e volátil que escrevo e reescrevo poemas − são muito raros aqueles aos quais eu não regresso para “polir”. É preciso dar tempo a eles, tempo para que a palavra se adeque ao acontecimento, ao ritmo, ao tempo. Alguns poemas nos perseguem durante muitos dias, às vezes muitos anos. Então, acho que o poema só está pronto quando ele para de me perseguir. Quando ele se acostuma com a página. Aí, eu o fecho. Seja como for, certos poemas são como pessoas: alguns são tão malandros que continuam atrás de nós o tempo todo, nos acompanham, mesmo depois que a gente tenta dizer adeus. E ainda bem.

Em seus poemas, a geografia física do mundo parece se entender bem com a geografia íntima das pessoas. Como se dá, para você, essa relação entre as viagens e os sentimentos?
Nossa geografia íntima é sempre muito influenciada pela geografia física do mundo, você não acha? Uma parte de nós é DNA, outra é experiência, outra é o silêncio que cada um carrega consigo. Acho que nós homens somos um mapa muito perfeitinho, físico e emocional. Somos sempre fruto desse cruzamento constante entre o mundo lá fora, a paisagem que nos aparece de repente na janela, e nossa paisagem interna. É por isso que viajar é importante. Viajar nos desdobra, nos redesenha quantas vezes forem necessárias. E olha que, quando falo em viagem, eu não estou falando necessariamente de pegar um voo transatlântico. Falo de caminhar na rua da tua cidade. Falo de ir ao supermercado. Falo de assistir ao aparecimento dos jacarandás em flor. Falo daquela conversa importantíssima e ao mesmo tempo tão banal que você teve com seu pai. Falo da entrada da morte em nossas vidas. Tudo é viagem, diariamente. Acho que esse eterno movimento físico (e espiritual) nos governa e nos define muito.

Beatriz Sarlo, outra convidada da Flip, escreveu certa vez, em um ensaio sobre Walter Benjamin, que, para ele, as citações viajam de uma escrita a outra e, arrancadas de sua aura original, se fundem a essa nova escrita, cercadas de outros sentidos. Há várias citações em seus poemas, de T.S. Eliot e Cisneros a Chico Buarque e Chavela Vargas. Elas entram nessa definição dada por Benjamin?
Benjamin era também ele um andarilho, um homem que sabia da necessidade de perder-se nas cidades para achar um caminho interno diferente. Neste caso específico, a propósito de sua pergunta, arrisco dizer que quando falamos de cidades podemos estar falando também de lugares. Qualquer lugar. Lugares estranhos ou familiares, qualquer lugar que não seja o nosso. Outros autores, outros textos que não sejam de nossa autoria, funcionam como lugares onde nos podemos perder e a partir dos quais achar caminhos novos. Ou reformular caminhos. Durante o fazimento desde meu livro, eu estava lendo muito, estava viajando bastante, estava escutando sotaques diferentes do meu, canções novas e velhas. Estava com o olho bastante dilatado e, portanto, receptiva à novidade. Foi assim que outros autores foram entrando em minha vida, em minha mão e mais tarde nas páginas do Jóquei. Algumas vezes eles deram o empurrão para lugares novos que eu mesma estava criando, outras vezes eles se “intrometiam” no caminho. As citações são importantes, mesmo quando elas não estão explícitas. É bom ter a companhia de outros autores no caminho da escrita, até porque, ao contrário do que se costuma dizer, nada disto se faz sozinho. Estamos sempre acompanhados por aqueles que nos antecedem.

O romance continua a ser um touro e a poesia um cavalo-marinho? Como se descobriu poeta?
Isso eu falei naquele vídeo da Clara Cavour, que está na internet, não é mesmo? Acho que o contexto disso era a questão de eu sempre ter sido muito distraída e, até determinada idade, ter tido muitos problemas de concentração. Era difícil eu “permanecer” – na leitura, na escrita, até em um lugar. Essa foi uma das razões de a poesia chegar até mim. Fui me encantando com certos poemas porque no começo até parecia que não precisava de tanto tempo para me focar, eles eram mais imediatos. Daí, eu ter chamado a poesia de cavalo-marinho (pequeno, veloz, facilmente identificável com a beleza), e o romance de touro (maciço, dotado de movimentos físicos pensados e planejados, algumas vezes demasiado escuro). Hoje, não sei mais se é assim. Aliás, sei que hoje não é mais assim. A poesia tem passo de touro também, e certos romances se assemelham muito a cavalos marinhos. E os dois são bichos lindos.

Como a poesia mexe com você? E como imagina que seus poemas mexam com os leitores?
A poesia mexe com tudo em mim. Com minha cabeça, com meu corpo, com meu ritmo, com minha concentração, com minha idade. Ela apareceu em minha vida como uma brincadeira e, como todas as boas brincadeiras, foi crescendo de mansinho até cravar as bandeiras em meu corpo. Digo: o que começou sendo só um vento que me pegou na esquina, virou meu eixo. No começo distraidamente, e agora muito conscientemente. Assumi a poesia como a posição central de minha vida, o lugar para o qual acordo e depois do qual adormeço. Às vezes, ela vem até durante o sono. Trabalho todos os dias nela, e com ela. E o melhor de tudo é que eu ainda brinco com a poesia, e a poesia ainda brinca comigo. Também me dá muita dor de cabeça, me desgasta, me rebenta. Mas acho que é sempre assim com os grandes amores, não é? Quanto à forma como meus poemas são recebidos, aí eu não saberia te responder. Como com os tais grandes amores, depois que a gente os deixa, a gente escolhe conscientemente libertá-los para o mundo. É preciso viver o amor até o limite de sua construção. Depois que entendemos que já tudo foi feito ali, é preciso deixar o outro ir. Deixá-lo respirar sozinho e ser respirado por outros. De outra forma, renovada. Esse é um dos pontos mais bonitos da poesia: cada poema se renova constantemente, diariamente, conforme o olho que o recebe.

Já aprendeu a gerundiar?
(Risos) Eu já sabia, só não usava isso no dia a dia. Mas o Brasil veio mudar muito meu dia a dia, meu coração, meu caminho. Às vezes, acho que o Brasil quase mudou meu genoma. Passei muito tempo morando no Brasil, ou pelo menos foi durante uma temporada fulcral, e tudo o que aconteceu comigo nesse País ficou cravado aqui até hoje. Em meu pensamento, em minha escrita, e até em minha oralidade. Em Portugal, a gente quase não usa o gerúndio, pelo menos não falando. Mas agora que meu coração ganhou uma nacionalidade dupla… É, confesso que agora eu gerundio bastante. Quando falo, quando penso, e até quando caminho.

Quais suas expectativas em relação à Flip? Já esteve em Paraty?
Estou muito feliz por poder participar da Flip este ano. Lembro de ter lido sobre essa feira quando nem o Brasil e nem sequer a literatura faziam parte de meus planos. Fiquei olhando aquelas fotografias e imaginando aquele lugar, e me lembro de pensar “um dia eu visito essa cidade”. Depois fui morar no Brasil, aconteceu tanto, mas nunca cheguei a ir. E agora, muitos anos depois, vou finalmente conhecer Paraty. E logo assim, com escritores que tanto respeito, com gente que tanto admiro. Acho que as coisas demoram o tempo certo para chegar. O caminho até aqui foi muito bonito, teve suor e lágrimas também pelo meio, teve sem dúvida muito trabalho, e teve certamente muito amor. Hoje, tenho amigos no Brasil que parecem ser da vida toda. Talvez sejam. E em julho eles estarão todos lá. Só isso, na verdade, já seria suficiente.

O que mudou na sua vida estando o livro publicado? E qual o próximo passo?
Esse livro foi um salto mortal em minha vida. Não só sua publicação, sabe? O caminho dele, os anos que demorei para escrever. Os lugares onde vivi, as coisas que li, as pessoas que ganhei e algumas que deixei. A forma como o fazimento dele me ensinou a sossegar, a me focar. O ritmo que ele me deu. As paisagens invisíveis que ele me permitiu habitar, os outros autores aos quais ele me levou. Tudo isso alterou meu percurso, e está comigo até hoje. O próximo passo eu já estou dando – aliás, não é um, são vários. Escrever esse livro me permitiu entender que as coisas crescem devagar, com muito cuidado. Um pé atrás do outro. E é isso que estou fazendo agora.


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