Entretenimento fatal


Em pouco tempo de vida, David Foster Wallace (1962-2008) tornou-se o escritor mais cultuado da América. Para ter uma ideia, é comum ver seus leitores com frases suas tatuadas no corpo Foto: Marion Ettlinger

A busca pelo Grande Ro­­mance Americano atravessou todo o século passado, motivando autores hoje consagrados e assombrando outros que tentavam fugir desse Santo Graal. Criado como uma forma de distinguir a literatura da antiga colônia inglesa da produção britânica, o posto teve em clássicos, como Moby Dick e As Aventuras de Huckleberry Finn, seus primeiros candidatos. Mas à medida que o século 20 foi passando, o título passou a pesar sobre ombros de diferentes autores: F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, John Steinbeck (As Vinhas da Ira), John dos Passos, Salinger (O Apanhador no Campo de Centeio), Saul Bellow, Nabokov (Lolita), Thomas Pynchon (O Arco-Íris da Gravidade ), John Updike, William Gaddis, Don DeLillo. Todos confrontados com o desafio de traduzir, em palavras impressas, a essência desse país autodenominado América.

Mas um nome candidatou-se a esse trono como se aceitasse um desafio. Um metadesafio, afinal. O século americano chegava ao fim e um autor considerado prodígio dedicou três anos de sua vida a uma obra que não apenas sintetizasse a importância cultural dos Estados Unidos para o resto do mundo, mas que também radiografasse uma sociedade que passou a primeira metade do século cultivando sua grandeza e a segunda metade remexendo nas próprias entranhas, enquanto perguntava-se o que teria acontecido de errado. David Foster Wallace completou 34 anos no mesmo fevereiro de 1996 em que viu o lançamento de sua obra-prima precoce, o exaustivo e enciclopédico romance Infinite Jest, que finalmente é lançado no Brasil como Graça Infinita. O título não é retirado apenas de uma frase qualquer de Shakespeare, mas do momento em que Hamlet encara o crânio de Yorick e, diante da ossada do bobo da corte, declama: “Uma pessoa de infinita graça, da mais fina fantasia, carregou-me às costas umas mil vezes e, agora, quão abominável me parece”. A caveira na capa da edição brasileira escancara a sutil constatação hamletiana sobre os EUA.

No romance, Graça Infinita é o título de um filme experimental realizado por James O. Incandenza Jr. que, antes de dedicar-se ao cinema, era especialista em óptica, fundou a Academia de Tênis Enfield e cometeu suicídio enfiando a própria cabeça em um micro-ondas. Mas, ao contrário de outros filmes que produziu, Graça Infinita – que também é conhecido apenas como “entretenimento” ou “samizdat” – era considerado perigoso, por induzir seus espectadores a um estado de desinteresse por tudo que não fosse o próprio filme –, uma degradação psicológica que inevitavelmente levava à morte.

Eis o objetivo de uma caçada estática conduzida pelas mais de mil páginas do livro, em que notas de rodapé tomam conta de nada menos que cem outras páginas. É um calhamaço de dimensões atordoantes, que não deixa barato ao ser desbravado: David Foster Wallace nos conduz por uma montanha russa de estilos, habitada por personagens verborrágicos em monólogos de frases gigantescas. Quase não há parágrafos e a sensação de estar à deriva em um mar de palavras é constante. É um livro mais extenso do que os longos romances russos – e que a própria Bíblia.

Graça Infinita nos a­­pre­­­­­sen­ta os Estados Unidos de um século 21 em que, se não houve um 11 de Setembro, o consumismo, a publicidade e o mercado de entretenimento deformaram de vez a América do Norte. Não há nem mais os Estados Unidos como o conhecemos e sim uma mutação entre a ALCA e a OTAN chamada Organização das Nações da América do Norte (referida apenas como ONAN – isso mesmo). Nesse novo país não existem preocupações ecológicas e todo o lixo tóxico é catapultado para a antiga região da Nova Inglaterra. Os anos não são mais referidos com a numeração tradicional e são vendidos às marcas que pagarem mais – e assim os primeiros anos do século em que vivemos são referidos como “o ano do Whopper”, “o ano do Frango Maravilha Perdue” ou “o ano da fralda geriátrica Depend”.

Nesse mundo habitam dois personagens centrais: o prodígio do tênis Hal Incan-denza, filho caçula do autor do filme, e o ex-viciado Don Gately. Através deles, visitamos alguns dos temas recorrentes de David Foster, o tênis e reuniões de Alcoó­latras Anônimos. Ele mesmo foi um jovem tenista, o que garante páginas e páginas do esporte por escrito, por vezes exaustivas como uma partida no saibro. Também frequentou reuniões do AA, não por causa da bebida, mas por conta de seu vício em assistir à televisão. Os dois personagens, paralelamente, ainda fazem o leitor passear por descrições so­­bre todo o tipo de drogas e efeitos diretos ou colaterais, como se parte do autor fosse possuída por William Burroughs ou Hunter Thom­­pson.

Mas não são os únicos temas de Graça Infinita. Seu número assustador de páginas funciona como uma passarela para Wallace desfilar seus extensos conhecimentos em áreas completamente diferentes, além de costurá-los com observações inusitadas e frases deliciosamente escritas. E aqui é possível perceber seu parentesco com Thomas Pynchon, Kurt Vonnegut, Don DeLillo, William Gaddis e John Barth. Por mais que atravesse sagas maçantes ou procedimentos burocráticos, ele sempre o faz de forma elegante e exagerada, eloquente e exaustiva – às vezes, de todas essas formas. Em seu segundo romance, David Foster Wallace exibe uma maestria típica dos grandes nomes da literatura pós-moderna norte-americana, encarnando, no papel, a “literatura da exaustão” do manifesto de Barth.

Entre relatos intermináveis e narradores implacáveis, acompanhamos Hal e Don em busca do tal filme mortal, ao mesmo tempo que seguimos o grupo terrorista separatista de Quebec Les Assassins des Fauteuils Rollents, cujos integrantes sem pernas querem usar Graça Infinita como arma. Ainda há centenas de outros personagens, desde a família Incandenza aos alunos da Academia de Tênis, passando pelos viciados da Casa Ennet – todos falando sem parar sobre todo o tipo de assunto.

O sentimento de desamparo e solidão da leitura interminável ao ser contraposto à avalanche de descrições detalhadas, teses fundamentadas e muito material técnico transforma o livro numa provocação em si mesma – fica evidente o metadesafio encarado pelo autor. Ao contrário do filme que o batiza, Graça Infinita não induz o leitor à catatonia passiva, é uma missão a ser cumprida, uma aventura racional (até demais) em um bizarro mundo de letras. “Queria fazer um livro triste”, disse o autor em entrevistas dadas à época do lançamento, frisando que era a tristeza que afluía quando não há mais motivo para buscar a felicidade, a principal motivação dos cidadãos norte-americanos.

O grande rei pálido

Como o criador de Graça Infinita, o filme, o autor de Graça Infinita, o livro, também deu fim à sua própria vida. David Foster Wallace havia parado de tomar as medicações para depressão e já havia tentado o suicídio no início de 2008. No dia 12 de setembro daquele ano, foi para a garagem de sua casa, em Claremont, na Califórnia, escreveu uma carta de duas páginas, deixou arrumado o manuscrito de seu livro mais recente, o inacabado The Pale King, amarrou seus braços e se enforcou. Tinha 46 anos. Sua morte consagrava de vez um dos principais novos nomes da literatura norte-americana da virada do século.

Graça Infinita foi seu maior feito artístico, mas estava longe de ser o único. Ele escreveu outros dois romances, The Broom in the System (que o lançou em 1987) e The Pale King, que concorreu ao Pulitzer do ano em que foi lançado, 2011. Além desses três livros, ainda lançou três coletâneas de contos: Girl with Curious Hair (1989), Breves Entrevistas com Homens Hediondos (Companhia das Letras, 1999) e Oblivion: Stories (2004).

Sua figura caricata, sempre usando uma enorme bandana na cabeça, contrastava com a personalidade tímida e quieta que mal sabia se comportar em entrevistas. Rato de biblioteca, Wallace foi criado por pais acadêmicos, e passou a vida na universidade, inclusive como professor.

Como escritor freelance, publicou nos principais veículos dos EUA textos sobre todo tipo de assunto: a indústria de efeitos especiais para o cinema, o atentado do 11 de setembro, um festival de lagostas no Maine e muito tênis. No Brasil, em 2012 foi publicada uma coletânea com seus melhores artigos, inclusive o genial ensaio sobre Roger Federer, com o longo título Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo (Companhia das Letras).


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