Ingo Schulze e o Brasil

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O escritor alemão Ingo Schulze, autor de romances como Vidas novas e coletâneas de contos como Celular (ambos publicados pela Cosac Naify), conta, em seu conhecido tom subjetivo, sobre sua experiência mais recente no Brasil, lembra passagens anteriores pelo país, comenta aspectos urbanos e históricos do Rio de Janeiro e sobretudo fala da Amazônia, espaço de seu próximo grande romance, onde conheceu a “terra preta”, a mais fértil do mundo, que provaria inclusive a existência de uma civilização avançadíssima às margens do rio Amazonas. O escritor Marcelo Backes traduz e comenta os textos de Schulze, que serão publicados em doses no blog do Instituto Goethe.

Brasileiros antecipa um dos textos, como sempre caracterizados pelo humor tipicamente schulziano, leia na íntegra.

17 de novembro de 2013 

O voo parte cedo, 7:37 horas, o táxi chega às dez para as seis. Já está claro, faz calor, as ruas se mostram vazias. Ao me despedir do quarto, descubro mais uma vez a minha tendência animista de achar adequado levar o ambiente inteiro com todos seus objetos comigo, como uma espécie de agradecimento por ter me ajudado tanto, oferecer alguns palitos de incenso em oferenda ou alguma coisa do tipo. E nisso percebo que o dinheiro para as camareiras também continua sendo uma dádiva comprovadamente adequada.

Junto comigo, ao que parece, também outros escritores serão levados ao aeroporto, suas bagagens são amontoadas no táxi antes mesmo de eu os ver. As bagagens são em número demasiado grande, contudo, e não cabem todas. Antes de ver meus colegas, ouço-os, são duas mulheres, uma delas um pouco mais velha e bem corpulenta. Ela fala tão alto como se tivesse de superar a barulheira de um mercado inteiro com sua voz. Enquanto desce as escadarias do hotel – cada um dos passos levemente retardado, como se a cada um deles tivesse de medir de novo a altura do degrau –, ela me acena com um cigarro pra me cumprimentar, pede um pouco de paciência, ela ainda precisa fumar. Ainda bem que eu já havia me programado antecipadamente pra ter paciência.

Não sei porque, mas sempre me parece mais agradável viajar com mulheres. No trem, eu também prefiro ir ao banheiro depois de uma mulher do que depois de um homem. Eu me sento no banco da frente, as pernas ainda pra fora, e espero que ela termine seu cigarro. Acho até bem bom esse tempo para o cigarro, tranquilidade antes da partida. Quando as duas senhoras enfim estão sentadas no carro, a bagagem restante é enfiada em cima delas e entre elas e debaixo de seus pés. A fumante pergunta ao motorista que tipo de gente eu sou. Americano? Ele não sabe. Pode ser americano, o motorista diz – se é que entendo bem. Eu tento então pronunciar da melhor maneira possível em português: Alemanha. Mas preciso repetir meu anúncio vocal. Ah! À segunda tentativa, elas compreendem. Eu já tenho a palavra mágica Berlim nos lábios, mas o interesse delas se apaga imediatamente. Então elas passam a discutir com o taxista sobre algum tema político, é a minha impressão, mas não sei ao certo.

O táxi segue em direção ao novo estádio do “Grêmio”. Quando passamos por ele, consigo vê-lo. O estádio foi realmente construído no meio de uma favela, as casas de um dos lados de fato se localizam a menos de cinquenta metros do estádio. Despedida amistosa no aeroporto. Os voos internos no Brasil estranhamente sempre são agradáveis, a preparação é rápida, amistosa como de costume, as coisas de algum modo parecem mais fáceis do que na Alemanha.

Rio de Janeiro

Nenhuma lembrança sobre o voo. Li? Tirei uma soneca? E então o inacreditável: o Rio de Janeiro debaixo de chuva. Primeiro pensei que fosse neblina, mas eram as nuvens da chuva pairando baixas. Compro, então, no interior do aeroporto, um ticket de táxi completamente superfaturado, acreditando que estou fazendo tudo certo. E em seguida partimos.

De longe, as favelas parecem ornamentos coloridos; quando se passa perto delas, as casas perdem toda sua cor, vê-se apenas o vermelho empoeirado dos tijolos. Olho para elas como se estivesse na lua, convencido de nunca, jamais precisar morar ali. Imagino que aqueles que pertencem à classe média no Brasil as contemplam de uma distância semelhante à que eu, o turista, as contemplo.

Passamos por um túnel, e de repente já estamos no meio dos prédios. Começo a me dar conta aos poucos de que o preço que paguei pela corrida, mais de cem euros, foi uma sacanagem. A chuva apenas torna a cidade ainda mais estival. Na rua em que Marcelo e Nina moram, estão construindo a linha do metrô para a Copa do Mundo e a Olímpiada. Preciso desembarcar um pouco antes e arrasto minha mala ao longo de grades altas ou paredes de vidro que protegem as entradas dos prédios como se os moradores tivesse a intenção de fazer um jardim. Que privilégio não ter de ir a um hotel no Rio!

Nina vem a meu encontro, rindo, vestido verde-limão. A sua pronúncia brasileiramente suave do alemão, que faz as palavras se enlaçar agradavelmente… É preciso superar três portas e grades até se chegar ao elevador. O prédio parece ser dos anos cinquenta, um modernismo que envelheceu muito bem. Marcelo chegará apenas à tarde, está em Olinda, que fica ao norte do Recife (ou talvez seja um bairro ao norte da cidade), também ele participa de um festival de literatura. As distâncias aqui mal chegam a ser calculáveis pra nós. Serão dois ou três mil quilômetros em direção ao norte?

Ainda que eu saiba ser bem-vindo, sempre me mostro constrangido em outra casa. Quando foi que pernoitei pela última vez com amigos? O apartamento ocupa dois andares, uma sala, um quarto de tamanho médio, e um quarto pequeno, o escritório de Nina, que foi arranjado pra mim. Eu me alojo entre livros alemães. A vista recai sobre um amplo pátio interno, verde, dá pra ver a janela do vizinho na diagonal. Nina acha o apartamento pequeno, de um tamanho que é apenas suficiente pra dois. Minha impressão é de que ele é “concentrado”, não me parece ser necessário mais espaço.* E é tudo tão agradável que não preciso de força pra me amigar com as coisas. Até mesmo a internet funciona imediatamente. Nina, professora de Sociologia da Cultura, se poderia até avaliar que ela parece (em que medida isso é adequado aqui?) uns bons quinze anos mais nova do que de fato é, conta de seu plano de passar meio ano em Leipzig, para estudar com Christoph Türcke. O nome não me diz nada. Mas então eu começo a ler – ainda há tempo para o almoço – sua Filosofia do sonho. Uma maravilha! A psicanálise como terapia jamais me interessou (“Ora, mas isso diz tudo sobre ele!”), aplicada à antropologia, porém, ela me parece bem plausível.

Aquilo que nós, na condição de espécie, conseguimos dominar precariamente em termos de traumas e medos ao longo dos milênios através de ritos e cultos, portanto através de cultura, volta a ser revolvido, transformado e posto em movimento com a invenção do cinema e a onipresença das telas tremeluzentes e dominadas por uma absurda sequências de cortes. A tese de Türcke: o cinema/a televisão etc. mudam nossa espécie, a espécie humana. Türcke tira conclusões de modo bem prático e acaba nas assim chamadas crianças com Transtorno de Déficit de Atenção. O que ele escreve dá conta das minhas próprias experiências. Eu me tornei um fã do filme vespertino. À noite, ele me toca, me revolve demais. E quando alguém sorri pra mim da tela em uma propaganda, eu sorrio de volta. Pasolini registrou essa mudança já no princípio dos anos setenta. Ele se queixava de como a televisão havia mudado as pessoas. O que Türcke diz sobre a alma me parece de uma clareza acachapante, e eu concordo: “E com tudo isso sequer é necessário pensar a alma substancialisticamente para garantir sua autonomia. Basta percebê-la como um peculiar desempenho de equilíbrio nervoso em organismos mais elevados. O equilíbrio é algo altamente surpreendente: jamais pode ser completamente compreendido ou deduzido.” O que me deixa literalmente fascinado em tudo isso é a materialidade do todo e a figura de pensamento (não me ocorre nenhuma expressão mais estúpida do que figura de pensamento, perdão!) “desempenho de equilíbrio nervoso em organismos mais elevados”, que não encontra de modo algum uma alma apenas no ser humano. Quando eu escrevo, ao procurar tanto uma palavra isolada como também uma frase ou uma construção inteira, o sentimento de espaço tem sempre um papel importante, e nisso o equilíbrio é decisivo, quer dizer, no jeito como uma palavra se comporta no espaço. O alerta: “pesa tuas palavras!” está um pouco fora de moda. Mas é exatamente isso que é importante: examinar o peso das palavras.

Ipanema, o bairro em que fica o apartamento, é muito agradável, dá pra passear com tranquilidade. Além disso, há aqui não apenas a mais bela praia, como também a Lagoa a algumas quadras, e acima dela o Corcovado.

Nina e eu vamos a um restaurante espanhol pra almoçar, bebemos um aperitivo e pedimos paella. Cheguei, consegui, estou por assim dizer em casa. Agora a ideia de ir por três semanas à Amazônia de repente não me parece mais nem um pouco atraente. Explico a Nina porque a viagem que eu faria não deu em nada. E, ainda que ela já conheça parte da história anterior, e inclusive tenha sofrido literalmente com ela, eu começo mais uma vez do princípio.

DIGRESSÃO I:

Primeiro o Brasil me descobriu, depois eu descobri o Brasil. Embora isso seja bobagem, soa bem, e no fundo não deixa de proceder, pelo menos um pouco. Pois ainda que eu tenha estado quase três semanas por aqui em maio de 2002, visitando São Paulo, Salvador, Fortaleza, Rio e Porto Alegre, embora tenha encontrado a maravilhosa Theresa Graupner, que traduziu as Simple Storys ao português, embora tenha lido o Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, e o livro tenha ajudado a esclarecer minhas próprias ideias acerca de Vidas novas, até por causa da cena da encruzilhada, que eu usei em meu livro, foi ao final das contas Marcelo Backes (que agora também traduz este texto, bom dia, Marcelo, caríssimo!, um belo quarto dia de advento pra ti! As mais queridas saudações a Nina!), que me ouviu em uma leitura pública em Leipzig, na primavera de 2007, quem se decidiu a traduzir Celular. E não apenas isso. Ele me levou à CosacNaify, e eu recebi um convite para ir à FLIP, em Paraty, em junho de 2008 (leitura pública diante de 800 espectadores, dois tickets business-class e ainda um ensaio sobre mim na revista de bordo da companhia aérea – foi assim que sempre imaginei a vida de escritor!). E então ele começou a traduzir Vidas novas, e de certo modo também escrever o romance por assim dizer adiante, pois complementou as notas do editor, ou seja, as minhas notas, com as notas do tradutor, ou seja, com as suas (não seria ruim prosseguir usando esse princípio, o que achas? Mas, se for assim, não terminarás mais antes do Natal, e no dia 24 de dezembro vocês já viajam pra cá!). Só que eu até hoje não pude ler as notas dele, pois no fundo a edição brasileira, para a qual existe um prefácio especial, deveria ser retraduzida ao alemão. Nesse sentido, não é completamente errado dizer que Marcelo e eu estamos unidos também por um livro em conjunto!

De modo que em novembro/dezembro de 2009 eu voei pela terceira vez ao Brasil, para fazer uma pequena viagem de leituras públicas de Vidas novas (São Paulo, Rio, Brasília). Nós conseguimos inclusive ser entrevistados pela televisão. E em seguida viajamos uma semana a Manaus, e tudo começou assim:

Na primavera de 2009, eu fui convidado a participar de um workshop em Essen, para o qual foram convidados também Claus Leggewie e Harald Welzer. Cada um dos convidados, éramos uns 8 ou 10, deveria trazer mais alguém consigo. Eu convidei Boris Groys e ele veio, e mais uma vez foi – como não poderia deixar de ser – maravilhoso estar com ele e com sua mulher, mas a lembrança desses dois dias de Essen é dominada por outra coisa. No segundo dia –  eu já havia pensado se não deveria ir embora, os compromissos se acumulavam –, Elisabeth von Thadden e seu convidado Ralf Otterpohl se apresentaram diante do pequeno círculo de eleitos. Elisabeth von Thadden é redatora do Segundo Caderno do Jornal Die Zeit, Ralf Otterpohl é professor de Ciências de Águas Residuais (oficialmente o nome é outro) na Universidade Técnica de Hamburg-Harburg. Otterpohl era o único técnico, ou seja, o único cientista entre os convidados. Ele disse muitas coisas dignas de nota. Entre elas: “Nosso WC é um erro civilizatório. Sim. Nosso WC é um erro civilizatório! Pois nós lançamos os nutrientes valiosos, raros, insubstituíveis nas águas e acabamos por poluí-las, de modo que milhares de pessoas, sobretudo crianças, morrem devido à água contaminada, ou destruímos os nutrientes em nossas estações de tratamento de águas residuais com um gasto alto de energia. Não podemos mais nos dar a esse luxo, no entanto. Muitos dos nutrientes são mais limitados do que nossos estoques de petróleo.” Foi mais ou menos isso que ele disse. Depois dessa meia hora, eu fui até ele, pedi seu cartão de visitas e falei: “É sobre esse assunto que eu vou escrever meu próximo romance.” Ralf Otterpohl é bem alto e não apenas magro. No passado, certamente se diria: ele é esquálido. Sua testa alta, ao contrário, parece brilhar. Ele olhou pra mim um tanto confuso. Preciso dizer ainda que ele falou em voz baixa e cautelosa, aparentemente intimidado pelos estudiosos de outros ramos.

Algumas semanas mais tarde, eu o visitei em sua universidade. Achei chocante a amabilidade, até mesmo a alegria com que ele me explicou tudo, me concedendo seu tempo e permitindo que eu fizesse minhas perguntas. Nessa visita, foi enunciada a expressão mágica: Terra Preta. Ele não parava de mencionar essa Terra Preta. Pois ela seria a chave para quase todas as suas pesquisas. Conforme ele me explicou (e ainda li e inclusive outros me explicaram em seguida), a Terra Preta (digressão na digressão da digressão) é um conceito que vem da região do Amazonas. Terras tropicais são, via de regra, terras bem ruins, porque são esgotadas pela alta temperatura e pela umidade. Seus nutrientes se encontram todos, por assim dizer, na (aliás opulenta) vegetação. Surpreendentemente, quase não existem pedras no Amazonas. Elas foram decompostas ou se encontram fundo demais na terra para que seus minerais pudessem ter alguma importância no plantio e no cultivo do solo. Quando se desmata a floresta tropical para conseguir superfícies agriculturáveis, o rendimento é ruim. Depois de dois ou três anos, mal continua crescendo alguma coisa, a não ser que se adube a terra intensamente, mas isso sempre é demasiado caro.

Eis que no meio daquele solo ruim, porém, se encontram ilhas de solo muito bom, ilhas de uma terra preta que está entre as melhores do mundo. Essas superfícies de quando em vez têm apenas alguns poucos metros quadrados de tamanho, mas em outros casos se estendem por diversos hectares. Apenas desde a metade do século passado é que se passou a prestar atenção na Terra Preta. Nos anos setenta, havia, no melhor dos casos, algumas notas de rodapé na literatura especializada, que apontavam para a existência dessa terra especial. Seu rendimento é assombroso, ela não precisa de adubo e a chuva não causa sua erosão. Ralf Otterpohl copiou para mim um artigo da revista National Geographic, publicado em 2009, e seu autor, Lothar Frenz, esteve com o arqueólogo Eduardo Góes Neves e o geógrafo Eije Erich Pabst nas proximidades de Manaus. Hoje em dia já se sabe algumas coisas sobre a Terra Preta: ela é uma terra feita por seres humanos, ou seja, pelos índios que por lá moravam. Com a conquista, aqueles que a produziam foram expulsos ou aniquilados. A maior parte morreu por causa das doenças trazidas pelos colonizadores.

O segredo fundamental da Terra Preta é a compostagem com carvão vegetal. O acréscimo de carvão vegetal é uma das condições fundamentais para produzi-la. Um segundo ingrediente são os cacos de argila. Mesmo que se diga existir Terra Preta sem cacos de argila, a maior parte da terra encontrada é tomada por esses cacos. E os arqueólogos escavam do meio da Terra Preta uma cultura de cuja existência até hoje não tínhamos noção. De repente, os relatos antigos dos conquistadores passam a se tornar interessantes, os mesmos que até hoje eram considerados fanfarronices ou alucinações creditadas à febre, porque falam de milhares de habitantes e de grandes aldeias às margens dos rios (em 1542, Francisco de Orellana foi o primeiro branco a descer o Amazonas até a foz, sendo toda sua viagem registrada por Gaspar de Carvajal, o arcebispo de Lima, que tomou parte nessa expedição “à terra da canela”). Uma vez que nossa imagem da população indígena é proveniente do século XIX, no qual apenas existiam pequenos grupos de índios que na maior parte das vezes viviam como nômades, mal conseguimos imaginar o que foi essa alta cultura amazônica.

A discussão central é: floresta virgem versus paisagem cultural. Que a Amazônia foi uma paisagem cultural é sobretudo mostrado, mas não apenas, pelas regiões de Terra Preta.

Alguns meses mais tarde, Ralf Otterpohl é convidado para uma discussão aberta em Berlim, na Academia das Ciências (Akademie der Wissenschaften, diante da porta o jornal Berliner Wassertisch distribui seu material informativo, é quando descubro que nossa água foi parcialmente privatizada, e isso já desde 1999), da qual também fará parte, entre outros, Klaus Töpfer, o ex-encarregado para o Meio Ambiente da ONU. No dia seguinte, vamos juntos com um assistente de Otterpohl até a localidade de Finowfurt bei Eberswalde, à casa de Jürgen Reckin, que criou uma grande lavoura experimental junto a Eberswalde, ainda na época da Alemanha Oriental, a fim de testar quais as frutas do sul também poderiam ser cultivadas na Alemanha Oriental. Jürgen Reckin faz estudos de Terra Preta em seu jardim. Ralf Otterpohl se mostra impressionado. Parece que ali alguém foi bem mais longe do que todos os outros.

No caminho de volta, paramos ainda na casa de Haiko Pieplow, e o assistente tira algumas provas de Terra Preta da latrina de Pieplow. Com o hamburguês Ulf Rakelmann, que trabalha em um grupo de pesquisa da cidade de Hamburgo (Hamburger Stadtwerke) consigo o endereço de Eije Erich Pabst, que vive em Manaus. Pois agora eu quero ir ao Amazonas para ver essa Terra Preta.

(Fim da Digressão I.)

Nina e eu vamos a um museu novo do Rio de Janeiro, o MAR, no centro da cidade. Também o museu teria sido construído em meio a uma região degradada do Rio. Os prédios pitorescos, mas bastante decadentes, estão apenas do outro lado da rua, a menos de vinte metros de distância do museu. Nós subimos ao telhado pra tomar um café. Começa a chover. Somos os únicos que aguentam ali fora. A vista é bonita demais. Ela vai além, até a água, depois à ponte que leva a Niterói. Um gigante oceânico vermelho, coberto de contâineres, atraca no porto. Na parede lateral, pode ser lido em letras gigantescas: Hamburg-Süd.

Em um dos andares, uma exposição sobre a história do Rio de Janeiro. Tudo começa com a pintura paisagística e idílica do fim do século XVIII e termina com uma grande fotografia na qual todos os prédios, todos os rastros da vida humana foram apagados com retoques. O Rio não existe mais, é apenas uma paisagem. No meio de tudo aquilo, eu tive de pensar em dado momento: esta é, pois, a cidade de Machado de Assis.

 

Depois vem uma exposição na qual na verdade se mostram convincentes apenas os vídeos de uma Marina Abramovic do norte do Brasil. Em um dos filmes, ela viaja como Deusa da Vitória sobre um carro de combate romano todo dourado, puxado por porcos, rosto plácido, atravessando uma favela. Em outro, ela carrega os ossos de homens que foram mortos em um carrinho de mão e o empurra através das ruas, ela leva as vítimas de volta à comunidade, que silencia em torno delas.

Belas conversas com Nina. Seu alemão se mostra tão bom. Mas ela está cheia de dúvidas, não sabe se conseguirá se dar bem com ele em Leipzig. De volta de táxi. Em casa, Marcelo está à nossa espera. Quanto tempo faz que não nos vimos? Quase três anos? Nós não precisamos de preparativos, a velha familiaridade imediatamente volta a se instalar. Entrementes, foi publicado um novo romance seu, ao que parece um sucesso. E ele já terminou outro romance. Inacreditável. Que homem feliz! Beber, conversar, os dois cozinham, nós jantamos em casa.

Eu me sinto em casa, desapareço bem cedo em meu quarto e continuo lendo a Filosofia do sonho.

Tradução e comentários de Marcelo Backes


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