Melancolia da resistência

As melhores premiações são aquelas que resgatam autores geniais de uma relativa obscuridade. Vencedor do Man Booker International Prize desse ano, anunciado na última terça, o húngaro László Krasznahorkai é um desses casos. Cultuado em rodas restritas, já vinha, há alguns anos, despertando a admiração em colegas e leitores exigentes, como o crítico James Wood, Susan Sontag, que o chamava de “mestre do apocalipse” e o comparava a Melville e Gógol, e o Nobel (e conterrâneo) Imre Kertész , que bem resumiu o espírito de seus livros: “Suas sentenças longas e tortuosas me encantam, e mesmo que o universo de suas histórias pareça sombrio, sempre experimentamos aquela transcendência que para Nietzsche representava um consolo metafísico.”

Ainda não traduzido no Brasil, Krasznahorkai, também é conhecido em pequenos círculos de cinéfilos, por suas parcerias com o diretor Béla Tarr. Dentre seus romances mais importantes estão Satantango, War and War e The Melancholy of Resistence (títulos das edições em inglês). Li o primeiro e posso dizer, sem pestanejar, que foi o livro que mais me impressionou nos últimos anos. E aqui preciso abrir um parêntesis. Mais ou menos como definiu o grande César Aira (coincidentemente, outro dos finalistas do Man Booker International 2015), há basicamente duas literaturas: aquela que marca presença mas não deixa rastros e aquela cuja presença se estende muito além da leitura. O primeiro tipo reúne os livros de puro entretenimento, com começo, meio e fim, desenvolvimento satisfatório da trama e personagens críveis. E, principalmente, que forma um todo coeso, sem ruídos de ordem metafísica ou ousadias de estilo. O segundo, no qual se inserem as grandes obras, engloba escritos que nos perturbam, fazem com que questionemos a existência, o status quo e a própria arte e ficam ressoando na cabeça, com cenas que não nos largam e até mesmo nos assombram, seja pela beleza ou pela densidade do pesadelo que descrevem.

Satantango é, obviamente, do segundo tipo. Consegue produzir um amálgama praticamente impossível entre a expectativa do terror e a possibilidade da epifania. No sótão de sua casa, uma menina apaga as luzes e luta ferozmente com seu gato. Misto de anjo e demônio, ela, depois, morre ao vagar pela paisagem de frio e neve, provocando o sentimento de culpa em todos na sua comunidade rural. Um falso profeta aproveita a situação e lança os habitantes, atônitos, bêbados, desesperados, numa busca pela redenção e por uma vida melhor. Quem descreve tudo, passo a passo, minuto a minuto, numa prosa de “loucura disciplinada”, é um médico, que observa de sua janela, a dinâmica caótica da aldeia, uma soma de pecados mesquinhos, regida pela covardia e egoísmo.

Simplesmente não consigo esquecer de várias trechos do livro (e há, de fato, ao menos uma epifania, que pode ser entendida tanto no sentido religioso quanto no puramente estético), mas especialmente das sensações que ele provoca, com sua aura a um só tempo decadente, arcaica e moderna e essa deliberada confusão entre as fronteiras físicas e metafísicas, terrenas e místicas.  Perguntado sobre suas frases compridas e pela quase falta de parágrafos na sua escrita, o autor disse que “falamos com vírgulas. Quem coloca pontos é Deus. Tenho certeza de que é ele quem vai por o ponto final.” Sobre o apocalipse, insinuado em todos seus livros, é enfático, com certa leveza : “O apocalipse existe desde o início dos tempos. Precisamos aceitar o apocalipse.”


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.