Mudança e Permanência

Foto: Luiza Sigulem
Lilia Schwarcz (à esq.) e Heloisa Starling mostram, em um escritório da Companhia das Letras, o bom humor e a cumplicidade que pautaram a difícil escrita do livro – Foto: Luiza Sigulem


Alguns diriam que o processo é dialético
. Mas a palavra soa insuficiente quando se vê as duas autoras de Brasil: uma Biografia em ação. Sempre de bom humor, Heloisa Starling e Lilia Schwarcz parecem concordar discordando e discordar concordando. Quando uma fala, a outra mal se contém. E quando as vozes se cruzam, acabam caindo na risada. Estão claramente felizes e aliviadas com a missão cumprida. A dinâmica “eu sou funcionária, ela é bailarina” funcionou. Lilia acorda cedo: “Eu recebia e-mail às quatro da madrugada e falava, Helô, vai dormir”. Heloisa é boêmia: “Essa louca me mandava e-mail às seis da manhã” (risos). Rivalidades por conta da mineirice de uma (Heloisa vive em Belo Horizonte e dá aula na UFMG) e da paulistanice de outra (Lilia é professora da USP) também surgiram, além de algumas divergências políticas (aparentemente, na gradação de esquerdismo).

Diferenças que garantiram o equilíbrio do texto final. “O livro cresce porque são olhares diferentes. A gente tem uma base comum, somos as duas historiadoras e temos uma relação pessoal muito boa e uma prática de trabalho já há algum tempo. Isso é fundamental, porque senão você não deixa o outro mexer no seu texto. E a gente mexia descaradamente”, acrescenta Heloisa. Muita coisa também foi feita em conjunto. Um bom exemplo é a conclusão, que trata do período mais recente, e “foi dialogada linha a linha”.

Nessa dinâmica de mexer uma no texto da outra e discutir cada pequeno aspecto do livro, várias modificações se introduziram ao longo dos quatro anos de gestação dessa biografia algo inusitada, que já vendeu 30 mil exemplares e está na terceira tiragem – um sucesso inesperado. As cobranças ditavam o ritmo das duas em consonância com o andamento da história: “Eu falava: ‘Lilia, manda logo o Dom João que o Napoleão está chegando!’” (risos). Outros também participaram do processo, como lembra Lilia: “É importante dizer que a pluralidade foi garantida também por Otávio Marques da Costa e o Luiz Schwarcz (editores, aos quais o livro é dedicado), porque nós lemos sei lá quantas vezes, eu já sabia o livro quase de cor e a Heloisa também, mas o Otávio e o Luiz leram, pelo menos, quatro versões diferentes.”

Quase um mês após o lançamento, cansaram de responder à pergunta inevitável: “Por que, afinal, biografia?”. Mas o bom humor ajuda a dupla a buscar um viés novo ou ligeiramente diferente para a resposta: “À medida que a gente começou a escrever, percebemos que não tinha jeito de fazer uma história do Brasil, que o Brasil era maior do que qualquer coisa que a gente tentasse fazer. Ao mesmo tempo, nós começamos a trabalhar a narrativa, e a narrativa demanda o personagem. E assim, ao longo da escrita, o Brasil foi virando um personagem”, explica Heloisa. “E também porque o País ia se apresentando para gente quase como um amigo e um inimigo, a quem a gente, como os biógrafos, se afeiçoa”, diz Lilia. E completa: “Uma preocupação minha e da Heloisa é essa ideia de que a história não é previsível, ela poderia dar em outra coisa, assim como uma biografia, que tem contradições, tem acertos, tem erros, tem problemas, tem coisas que a gente se orgulha, tem coisas que a gente não se orgulha. E a nossa ideia não era fazer uma história de consagração, patriótica ou fazer de tudo um arrazoado coerente. Por isso, cada capítulo faz menção a um tema que de alguma maneira se destaca. Também por isso o livro é recortado o tempo todo por mudanças, mas também por permanências, como nós mesmos. A gente muda e muda e volta sempre ao que é”.

A escolha do elenco também ajudou a tornar o livro especial. Diz Helô: “Outra coisa que me fascinou muito é você pensar não só nos grandes personagens, mas também nesses personagens pequenos e então ir do público para o privado, fazer esse entrelaçamento. Por exemplo, você ter um personagem como a Zeferina, lá no Quilombo do Urubu, na periferia de Salvador, que na hora em que o quilombo é atacado pelas tropas reage com flechas, lidera a reação. A Zeferina é rigorosamente anônima.”

A imagem da capa, uma foto de Marcel Gautherot com operários candangos na cúpula do Congresso em Brasília, é um bom exemplo desse partido. “A ideia da capa era fundamental para nós, a gente não queria devolver o exotismo. Eu dou aula no exterior há muito tempo e é impressionante como o Brasil é sempre o outro do outro. Ou é malandragem ou é capoeira ou é candomblé ou então é a favela. A gente queria uma capa icônica, e o Brasil é um dos centros de criação da fotografia no mundo”, explica Lilia.

O caderno de imagens, muitas delas pouco vistas ou inéditas em livro, é outro ponto forte. Não surgem como ilustração, mas como parte da construção da história. “Assim como a gente tem de usar a literatura não como decorrência, mas como documento, como combustível, assim como a gente tem de usar a poesia, assim como a gente tem de usar o cinema, o rap, as imagens produzem o nosso imaginário. Se você pensar em todas as imagens do canibalismo, são construções europeias acerca da América. Ou a famosa imagem da América sempre deitada na rede e mulher, ela é quase estuprada pelo europeu, e a gente joga nos livros didáticos, como se fosse uma inocência. Não tem nada de inocente na imagem”, diz Lilia. Helô arremata: “O Sérgio Buarque fala isso. Ele é uma figura importante para nós nesse livro. E ele diz assim, o documento fala, o problema é que você precisa saber como perguntar para ele. A imagem também fala, nós temos de saber perguntar. Porque determinadas coisas no Brasil você só entende pela canção ou pela imagem”. Lilia, novamente: “O Castro Gomes que fala que o Brasil bem vale um refrão”.

De fato, Brasil: uma Biografia tem muitos diferenciais. O diálogo transversal com outras disciplinas é mais um deles. “Eu e a Heloisa fazemos parte daquela associação de cientistas sociais, do grupo que se chama O Pensamento Social. Penso que sem esse grupo, eu e ela não conseguiríamos escrever sobre a importância dos pensadores, dos intérpretes nacionais, que são personagens fortes desse livro, em todos os momentos, desde o Jean de Léry na colônia até o pensamento árcade mineiro, a chegar aos vários modernismos, um Euclides da Cunha, até quando a gente fala de Gil, de Caetano, do rap. Existe sim essa discussão com a historiografia de ponta, amadurecida, mas há também uma discussão muito grande e paralela, não sei se a Heloisa concorda, com a crítica literária, com as artes e com a sociologia e a ciência política.”

Heloisa concorda sim: “Acho que é isso mesmo. E a outra coisa que a gente talvez possa pensar é que o livro tem aquilo que você (Lilia) chama de a permanência na mudança. Ele conseguiu desenhar, mostrar que o Brasil não é uma coisa ou outra, ele é uma coisa e outra. Então, ele é ao mesmo tempo um país que tem uma raiz escravista – e isso tem uma permanência porque vai gerar esse racismo, que a Lilia trabalha bem, essa sociedade brasileira que parece muito pacífica, mas é muito violenta consigo mesma, nas suas entranhas. Mas, além de todos esse pontos negativos, a sociedade brasileira, desde o século 17, se mobilizou no sentido de buscar liberdade, de buscar direitos. E isso é uma permanência. Começa lá nas santidades indígenas e vai às linguagens de resistência dos escravizados, aos motins e às revoltas do período colonial, às revoltas do Império”. Ao que ajunta Lilia: “E isso, se a gente pensar em um historiador que é importante para nós, e que nós duas entrevistamos, que é o Evaldo Cabral de Mello, ele se oporia muito a isso, porque ele dizia para a gente que história é mudança, essa coisa de permanência é coisa de antropóloga estrutural. É mais um exemplo de como essas metodologias diferentes, com a contribuição dos estudos de uma Manuela Carneiro da Cunha, de um Eduardo Viveiros de Castro, de um Antonio Candido alimentaram a nossa reflexão no sentido de ir contra essa ideia de que história é só mudança. É mudança na reconfiguração, na releitura, em sua própria tradução, esses dois movimentos são muito interessantes no livro”.

Voltando ao começo da conversa, pergunto quais, no final das contas, foram os personagens por quem se afeiçoaram e aqueles que são, para elas, abjetos. “Antes de mais nada, tem um personagem que acho que, talvez, seja o mais complicado de definir da história do Brasil que é Getúlio Vargas”, se adianta Helô. “Porque ele é ao mesmo tempo responsável pela repressão do Estado Novo, da tortura, pelas prisões, e um ditador, não tem simpatia pela democracia, no segundo governo ele tem um grande projeto para o País.” Lilia completa: “Ele fez as leis trabalhistas, ele é muitos, né?”. Helô, animada, continua: “O próprio Tancredo é ambivalente. Se alguém for fazer a biografia do Tancredo, uma pergunta que deve ser colocada é se ele boicotou ou não as Diretas. A gente não sabe, tem gente que diz que sim. É um personagem difícil. Que são os bons personagens. Eu tinha muita resistência a ele, e tinha certeza de que ia liquidar o Tancredo rapidamente nesse livro. E, à medida que ele foi aparecendo, ele mostrou uma coerência ética e que não estava disposto a ocupar o poder por qualquer coisa. O comportamento dele foi muito impressionante.”

Ulisses Guimarães é unânime entre as duas como herói. Lilia também lembra de Gonçalves Ledo e, curiosamente, Dom João VI: “Ele se transforma em um estrategista muito mais complexo, que dentro da sua lógica salva a coroa”. Helô se “apaixonou” por Dom Pedro I e cita também o João de Deus: “Ele é partidário da conjuração, ele é partidário da revolução francesa no período do terror, ele é um jacobino. E aí, ele não tem dúvida, se veste como imagina que se vestiriam os franceses revolucionários. É uma roupa estranhíssima, um calção de seda roxa, uns chinelinhos revirados. E aí, alguém pergunta para ele na rua: ‘Então, que roupa é essa?’. Ele fala: ‘O senhor cale a boca, isto é francês e daqui a pouco vai estar todo mundo trajando essa roupa francesa’ (risos)”. Já os vilões incluem três repressores e torturadores: o conde de Assumar, Filinto Müller e Médici. Compreensível.


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