A Perspectiva Africana

Foto: Reprodução/Facebook
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No romance As Mulheres Do Meu Pai, há uma cena em que uma das personagens  mergulha no mar após fazer uma refeição. Naquele mar calmo e coberto pelas estrelas do céu noturno, ela fecha os olhos e move os braços, gerando um tumulto entre os pontos luminosos. É assim que, descreve o autor, se brinca de ser Deus e de criar constelações. A licença poética é um recurso para falar do mar calmo e iluminado, também chamado, no sul de Portugal, de “agualusa”. Agualusa também é o sobrenome do escritor José Eduardo, nascido em Angola, em 1960. Assim como sua personagem, Agualusa gosta de mergulhar e é no meio das palavras que cria e recria universos, com pinceladas de poesia, que flertam com o sonho e a realidade ao mesmo tempo em que contam histórias, promovem reflexões e críticas sociais.

Para José Eduardo Agualusa, o caminho da escrita ocorreu naturalmente. Ainda jovem, estudou Silvicultura e Agronomia, em Lisboa, Portugal. Porém, foi o hábito da leitura, adquirido desde a infância, que o instigou a embarcar no fazer literário.  Traduzido em 25 idiomas, seu primeiro livro A Conjura, publicado em 1989, recebeu o Prêmio de Revelação Sonangol. Dentro dos seus escritos, deparamo-nos com personagens peculiares e elementos da cultura africana retratados com uma linguagem fluída e um trabalho com enredos quase artesanal. “Lemos para ascender a outros mundos”, diz Agualusa, cujo romance A Rainha Ginga (Editora Foz) chegou às prateleiras brasileiras recentemente.

Trata-se de um romance histórico baseado em uma das figuras mais importantes para os africanos:  Ana de Sousa (1583-1663). Ela teve um papel fundamental ao oferecer resistência aos portugueses, interessados em capturar escravos africanos para utilizá-los na América.  O livro, narrado por um padre fictício, mostra como a rainha Ginga era habilidosa ao estabelecer alianças diplomáticas e guerrear contra os europeus, assim como apresenta a perspectiva africana do contexto histórico.

Além da publicação da história de Ginga, uma adaptação cinematográfica de outro romance de Agualusa – O Vendedor de Passados –  também deve chegar por aqui em breve. Com atuação de Lázaro Ramos e Alinne Moraes, a estreia do filme no Brasil deve ocorrer no dia 21 de maio. Na entrevista a seguir, José Eduardo Agualusa fala do seu novo romance, de literatura e de como quer contribuir para desconstruir estereótipos sobre a África.

Tomando como exemplo de seu último romance, que faz um resgate histórico, gostaria de saber como começou a se interessar pela literatura. Em que momento soube que gostaria de ser um escritor?
José Eduardo AgualusaCresci entre livros e sempre li muito. Os bons livros empurram-nos para a escrita. Comecei a escrever com intenção de publicar enquanto estudava Agronomia e Silvicultura, em Lisboa. Foi um processo natural. Foi acontecendo. Ainda na faculdade criei uma revista literária com outros estudantes africanos. Enviei o original do meu primeiro romance, A Conjura, para um prêmio literário em Angola. O romance ganhou [o Prêmio de Revelação Sonangol] e foi publicado ao mesmo tempo em Angola e Portugal.

Qual é o seu combustível para continuar a fazer literatura?
A paixão de contar estórias. Também a vontade de intervir socialmente, de ajudar a mudar o mundo.

Suas obras transitam entre diferentes gêneros, como contos, romances, crônicas e poesia. É o escritor que escolhe o gênero das histórias ou isso já está determinado quando desabrocham as ideias?
Cada romance exige e escolhe o seu próprio formato. É algo que vai acontecendo pouco a pouco.

Você nota algo de diferente quando escreve um conto ou um romance, por exemplo?
Claro. Respiram de maneira diferente. São entidades muito diversas, como uma ave ou um peixe. Exigem aproximações diferentes, uma preparação diferente. Um romance é uma maratona. Leva muito tempo.

Embora seus trabalhos se destaquem no terreno da prosa, a linguagem possui traços marcadamente poéticos e o texto é menos cru e áspero. Acredita que isso pode se refletir no enredo e torná-lo mais leve?
Não tenho a certeza de que a poesia ajude a levitar. Mas pode provocar um estranhamento positivo, pode levar-nos a olhar as coisas numa perspectiva diferente. Pode ajudar-nos a ver o evidente.

O que o motivou a escrever sobre a rainha Ginga?
Quem não gostaria de escrever sobre um personagem como a rainha Ginga? Uma mulher que foi capaz de subverter todas as regras do seu tempo e da sua sociedade? O interesse é óbvio. O problema é que as dificuldades também são óbvias. Como escrever sobre uma época tão remota, tentando apresentar por dentro uma personagem de um mundo tão distante do nosso? Levei a vida inteira para escrever esse livro. Durante anos li e reli os textos da época. Li tudo sobre aquele tempo e aqueles personagens.

Atualmente, o escritor  Mia Couto também se dedica a escrever sobre a vida de outra figura africana, o monarca Ngungunhame. De que forma o seu trabalho e o de Mia contribuem para desmistificar estereótipos sobre a África?
Sim, acho importante contar a história desses personagens numa perspectiva africana. É um outro olhar. A perspectiva muda tudo. Neste momento isso é algo que está sendo feito um pouco por todo o continente, quer por historiadores quer por ficcionistas.

A rainha Ginga é uma personagem complexa, pois ao mesmo tempo em que era sinônimo de resistência angolana aos portugueses e ao tráfico de escravos, possuía escravos para si. Parece que o mito de heroína se contradiz. De  que maneira enxergá-la?
A escravatura era praticada em todo o mundo, por todo o mundo. Nem havia ninguém naquela época que sonhasse com o fim completo da escravatura. Isso era tão absurdo como sonhar hoje em dia com um mundo sem exércitos. Eu sonho – mas as pessoas acham que sou um lunático completo. Toda a gente concorda que instituições que ensinam jovens a matar outros jovens, e são sustentadas pelo Estado, são um absurdo cruel. Ainda assim aceitam isso. Era o mesmo com a escravatura. De resto a mim não me interessam heróis. Não escrevo livros sobre heróis. Senão ia fazer quadrinhos.

A história de Ginga é narrada por um padre fictício – Francisco José de Santa Cruz –  de origem brasileira, nascido no Pernambuco e com sangue português. Além disso, o padre se torna um dos secretários de Ginga. Essa mistura de culturas é interessante. Por que essa escolha?
Francisco José tem ascendência portuguesa, índia e africana. Quis alguém que representasse essa mistura de culturas e ao mesmo tempo fosse um homem dividido nas suas crenças e convicções. Alguém em processo de mudança.

Ao mesmo tempo em que existe essa mistura, a figura do padre problematiza a questão religiosa e a Igreja Católica…
Sim, isso mesmo. Ele começa a colocar em causa a própria fé.

No epílogo você fala sobre a pesquisa histórica que realizou para compor a obra. Como foi equilibrar esses dados e os elementos ficcionais de que se utiliza?
Aconteceu naturalmente. A ficção vai-se tecendo em redor das fontes históricas.

E quanto à sua percepção de Ginga? Ela é a mesma de antes de se embrenhar nas pesquisas e na feitura do livro ou foi alterada de alguma forma?
Acho que fiquei a compreender um pouco melhor a mentalidade da época. A crueldade. Foi uma época muito cruel. As pessoas que se queixam da crueldade do nosso tempo deviam mergulhar um pouco nesse outro tempo. A verdade é que evoluímos muito. Muitíssimo. É claro que vez por outra há recuos. Mas o nosso tempo não tem nada a ver com aquele. Foi um salto enorme.

A maneira audaciosa com que Ginga se impunha e se apresentava como mulher também chama a atenção, especialmente para a época. Ela pode ser considerada uma espécie de precursora do feminismo?
Não sei. Ela governava como um homem entre homens, como, por exemplo, a Margareth Tatcher. A Margareth Tatcher era feminista? Não me parece. Eu estou mais interessado num poder no feminino. Não era o caso.

Além de Ginga, é possível encontrar na sua obra outros modelos de protagonismo feminino. Em As Mulheres do Meu Pai, Laurentina traça um percurso em busca da compreensão da própria identidade. Outro exemplo semelhante é a personagem Ludovica, em Teoria Geral do Esquecimento. A mulher, mais especificamente a mulher africana, aparece bastante em seus trabalhos. É uma preocupação sua retratar o posicionamento e a condição dessas mulheres na sociedade?
Sim, sem dúvida. A sociedade angolana é extremamente machista, mas ao mesmo tempo a mulher está no centro de tudo, e há inclusive uma certa tradição de mulheres de poder. Uma das pessoas mais ricas e poderosas de Luanda, no século XIX, foi uma mulher mestiça chamada Ana Joaquina, traficante de escravos.

Em breve, estreia no Brasil o filme O vendedor de passados, baseado no seu romance homônimo. Você chegou a acompanhar a transposição do romance para o cinema? O que acha da adaptação cinematográfica?
Vi o filme. Gostei. Acho que o Lázaro Ramos tem uma presença excepcional, ele carrega o filme às costas. Vale a pena ver o filme só para ver a interpretação do Lázaro. A partir da ideia central do livro é possível fazer mil filmes diferentes.

Qual é a avaliação que você faz sobre a sua trajetória como escritor até o momento?
Não penso nisso, caminho. Escrevo por paixão. Escrevo para tentar compreender um pouco melhor o mundo que me rodeia. Se aquilo que escrevo interessar a outras pessoas, então maravilha. Que bom.

Em sua opinião, qual é a função da literatura? Pode ser um símbolo de resistência?
Lemos para ascender a outros mundos. Lemos para sermos outras pessoas. E enquanto lemos, somos essas outras pessoas, viajando por mundos diferentes do nosso. Esse exercício de alteridade melhora-nos. A experiência de ser outros torna-nos mais humanos.


Comentários

2 respostas para “A Perspectiva Africana”

  1. Esse mundo é tão grande e grandioso. Assim também é o mundo da literatura, o mundo dos escritores. Acabei de “conhecer” Eduardo (Uma pena não saber de sua existência há mais tempo). Mas é assim. Não tive quem me mostrasse Agualusa…As escolas não apresentam essas preciosidades…
    Obrigada por você existir, Eduardo! Vida longa a saudável a você.
    Professora Mira Mendes (Tomé-açu /Pará)

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