Questão de identidade

Jhumpa na FLIP deste ano. Foto: Reprodução
Jhumpa na FLIP deste ano. Foto: Reprodução

Serenidade e elegância são as primeiras palavras que vêm à cabeça quando se conhece Jhumpa Lahiri. No entanto, quando a autora de Aguapés e do premiado Intérprete de Males encara o interlocutor, é difícil não se deixar perturbar. Seu rosto, emoldurado por longos cabelos bem penteados e joias escolhidas com bom gosto revela uma incongruência fascinante: se a expressão é impassível, civilizada, a beleza tem algo de selvagem. A cor indescritível dos olhos, associada à pele morena, faz pensar em um quadro de Gauguín, ou numa daquelas capas emblemáticas da National Geographic.

O leitor há de se perguntar: mas por que falar tanto de sua aparência? Porque transmite, de alguma maneira, a sua escrita. Jhumpa Lahiri se parece muito com seus livros ou vice-versa. São romances e contos com essa mesma dualidade complexa: fascinantes e serenos, belos e perturbadores. A dualidade se traduz mesmo na dinâmica dos personagens, frequentemente opostos que se atraem. Encarnam o choque cultural vivido pela autora, que cresceu nos EUA e hoje mora na Itália, mas falava bengali com os pais quando pequena e visitava Calcutá todos os anos.

O conto que dá título a Intérprete dos Males, seu primeiro livro e até hoje o mais bem sucedido, vencedor do prestigioso Pulitzer Prize, descreve justamente um “duelo cultural” entre uma família norte-americana de origem indiana e seu guia, num passeio pela Índia. A incompreensão (e/ou compreensão enviesada) mútua é flagrante, alternando momentos de humor e melancolia.

Em Aguapés, finalista do Man Booker Prize, lançado recentemente no Brasil, o “duelo” se dá entre dois irmãos que vivem numa região modesta de Calcutá. Eles se amam e se admiram, mas à medida em que vão crescendo, cresce também a distância entre suas personalidades. Udayan, o mais velho, é politizado e adere ao movimento naxalita, de orientação maoísta, com consequências trágicas; Subhash, menos arrebatado, decide estudar nos EUA e perde o contato com a realidade de seu país. O Xará, romance anterior, já traz no título a ideia de alteridade e confusão de identidade.

Na conversa a seguir, feita à beira da piscina de uma pousada em Paraty, sob a sombra de inúmeras plantas – um ambiente que ela disse lembrar muito a índia – Jhumpa se estendeu mais nessas e outras questões, numa fala pausada, de quem procura dar o devido valor às palavras e às ideias. Sua voz é baixa, suave, mas como em tudo o que a cerca, vem carregada de uma sutil intensidade.

Brasileiros – Quando você se deu conta de que seria escritora?
Jhumpa Lahiri:
É uma longa história. Eu escrevia quando criança, achava reconfortante. Mas eu nunca pensei que pudesse me tornar uma escritora. Eu era muito insegura e achava que um escritor tinha que ser alguém forte e corajoso, e eu não era nada disso. Estudei literatura e segui um caminho diferente. 

Você já estava nos Estados Unidos quando estudou literatura?
Sim. Aos vinte e poucos anos, além de estudar literatura, eu também escrevia em segredo. Mas com o passar dos anos, ficou claro para mim que nada mais era tão importante para mim quanto escrever. Levei muito tempo para aceitar isso, para me sentir à vontade e contar às pessoas o que eu estava fazendo. Foi só quando fiz 30 anos que me senti segura para assumir para mim mesma e para os outros que eu queria escrever e me tornar uma escritora.   

 Logo no primeiro livro, O Intérprete de Males, você recebeu um prêmio muito importante. Imagino que tenha pensado: “Estou no caminho certo, eu posso ser escritora”. Pois como você mesma disse, é um trabalho difícil e arriscado.
Embora agora tenha se tornado um trabalho, nunca achei que fosse um trabalho. É algo que vem de dentro, uma vocação, uma necessidade. É um desejo, uma parte de mim que eu nunca poderei abandonar. É o que sou, quem eu sou. O sucesso do primeiro livro foi desconcertante para mim e ainda me sinto dividida em relação a esse reconhecimento, pois aconteceu tão rápido, eu não esperava. De certa forma, eu não queria isso, achava que havia sido um erro… E ainda sinto isso. Por outro lado, acho que foi bom, maravilhoso, pois receber algo assim quando se é tão jovem é como uma criança recebendo algo muito precioso. Eu não entendia o valor daquilo (e falo isso de uma maneira positiva). Era como se eu ainda brincasse com pauzinhos e pedrinhas e não precisasse daquela joia. Eu ainda era uma criança- pelo menos enquanto escritora. Eu não buscava reconhecimento. A única coisa que eu queria naquele momento da minha vida, e ainda quero, era escrever bem, aprender a escrever, continuar aprendendo e aprender com a prática e com o fracasso. A única coisa que realmente me interessa é o processo, nada mais.

Falando em processo, quando começa um livro, você já tem um plano ou apenas vai escrevendo até chegar ao que considera o fim?
No meu último livro, Aguapés, eu já sabia qual seria o fim e o começo, mas não sabia como chegar ao final. Ou seja, não sabia como seria o meio do livro. O começo e o fim são baseados num incidente de 20 minutos. O livro nasceu a partir de uma cena, da prisão e execução de um jovem [Udayan], e se desenvolve no espaço e no tempo a partir disso. Eu sabia que ele seria preso e morto – esse é o começo e o fim do livro. Mas como eu estava interessada no que viria depois desse incidente, tive que ir descobrindo vagarosamente. Geralmente, tenho fragmentos na cabeça, uma ideia do que vai acontecer aqui e ali, mas nada muito claro. Por isso, começo a escrever e vou tentando vários caminhos para ver aonde me levam. Vou me baseando num feeling, pois quando já tenho uma direção definida, acaba não dando em nada. É tudo meio de improviso…

Você às vezes sente que os personagens acabam te conduzindo por um determinado caminho, ao invés de você levá-los?
Sim, isso é muito comum. Os personagens são como meus filhos. Eu os crio, mas depois acabam adquirindo vida própria, percepções e pensamentos próprios, e se tornam independentes. Você é responsável por eles de uma maneira geral e deve dar–lhes vida, mas, depois que os concebe, os transforma em seres de carne e osso, com pensamentos, emoções e cérebro, eles começam a se comportar e a fazer coisas de forma independente e você passa a acompanhá-los.

Quase todas suas histórias têm como tema a questão de identidade, do choque cultural. Queria que você comentasse isso e dissesse como vê a globalização.
O termo e a ideia de “globalização” são bem recentes. Quando eu era jovem, a palavra e o conceito ainda não existiam. De fato, me lembro de que na minha infância havia falta de globalização – apesar de meus pais terem sido imigrantes e de a imigração existir desde os primórdios da humanidade. Isso não é novidade. Lembro-me de ter sido criada numa região muito provinciana dos Estados Unidos, onde a minha família era muito diferente, e de visitar Calcutá, que de certa forma também era uma cidade provinciana. Na escola que frequentava quando pequena, eu era uma das poucas crianças que tinham um passaporte, que haviam viajado de avião. Havia falta de conexão na comunicação básica.

Como assim?
As cartas nunca chegavam, ou levavam três meses para chegar ou haviam sido abertas. Havia muitos obstáculos e dificuldades. Nós entendíamos a magnitude das distâncias, mesmo de avião a jato, pois viajávamos para muito longe. Hoje em dia, as pessoas nem se dão conta disso. Uma das coisas que me motivaram a escrever esse livro [Aguapés] foi que durante o período de intensa violência e turbulência em Calcutá, meus pais estavam morando nos Estados Unidos e não tinham a menor ideia do que estava acontecendo em seu país. Não havia CNN e nem era possível telefonar para alguém para perguntar.  As pessoas estavam completamente isoladas.

Como Subhash?
Exatamente. Ele vem para os Estados Unidos e tem apenas uma vaga noção de que algo está acontecendo e de que as coisas estão piorando. Ele não faz ideia, assim como meus pais não faziam. Já hoje em dia, qualquer coisa que acontece com qualquer pessoa no mundo pode ser comunicada via mensagem de texto e aparece um segundo depois do outro lado do planeta. Com imagens, som e tudo. Isso é revolucionário.

Uma revolução positiva?
Eu não sei. Em alguns aspectos, sim. Por exemplo, quando meu livro foi publicado, tive que passar três semanas longe da minha família, foi muito difícil para mim. Mas foi ótimo poder vê-los no Ipad todas as noites, dizer “boa noite”, “bom dia” etc. Por outro lado, um aspecto dessa tecnologia que me assusta é que ela cria a ilusão de que somos mais poderosos do que realmente somos. Acho que devemos respeitar as distâncias físicas, afinal o mundo é gigantesco e isso tudo é como uma ilusão que reduz o tempo e o espaço. O tempo tem o seu ritmo próprio e não há nada que possamos fazer. Talvez seja possível fazer algo daqui a 50 anos. No entanto, acho que esses dispositivos contradizem a essência natural da vida.

Embora eu tenha gostado muito de Aguapés, fiquei um pouco frustrado com o fato de a história de Udayan não ter sido mais desenvolvida. Ele é um personagem muito forte e terminei o livro querendo saber mais sobre ele.
Eu entendo isso. É que se a história tivesse sido sobre ele, teria sido outro livro completamente diferente. Eu teria que ter seguido um caminho diferente para contar as experiências dele. Eu tive que fazer escolhas, pois queria que fosse um livro sobre as pessoas que ele deixou para trás e as consequências dos seus atos. Foi ele quem deu forma ao livro.

Quase como um fantasma.
Ele é um fantasma, cujas partículas aparecem no livro. Se a história tivesse sido contada sob o seu ponto de vista, teria sido um livro diferente, com outro tipo de energia.

E não necessariamente um livro melhor.
Eu não sei. Não posso afirmar isso. Afinal, escrever é como tirar uma foto: ao enquadrar a imagem, você foca em alguns elementos e deixa outros ao fundo. Essa escolha é um compromisso que temos que seguir até o fim.

Por que você foi morar na Itália?
Eu tinha ido à Itália e logo de cara, senti uma conexão muito forte com a língua. Não somente pela beleza, mas porque senti como se já a conhecesse. Após uma semana, voltei para os Estados Unidos apaixonada pela língua e decidida a conhecê-la melhor. Estudei italiano durante muitos anos e, um dia, falei para o meu marido: “Estou estudando italiano há muito tempo e gostaria de me aprofundar mais”. Embora viajássemos para a Itália nas férias, eu achava que mudar para lá por um tempo seria a coisa óbvia. Além disso, queria ir embora dos Estados Unidos e morar em outro lugar, estava cansada da minha vida em Nova York. Queria também que meus filhos vivessem isso na infância, pois uma parte muito forte de mim nasceu da confusão que eu sentia quando era criança e de como eu enxergava as mudanças de lugar. Apesar de ter me deixado confusa, isso também fez com que eu parasse de julgar as outras pessoas, culturas, hábitos e aparências. Meu marido também passou por isso. Nasceu no México, morou na Tailândia, na Guatemala, nos Estados Unidos. Como a família dele viajava pelo mundo todo, eles tinham uma noção muito fluída de cultura e de língua. Se formos expostos a essa multiplicidade de vidas ainda na infância, carregaremos isso para o resto da vida. 

Esse é o principal tema dos seus livros, essa mistura de culturas, as questões relativas à identidade… Quando criança, você costumava visitar a Índia? Conhece bem o país?
Sim. É como se ele fizesse parte de mim, especialmente Calcutá, que era aonde costumávamos ir. Assim que entramos nesse pátio, me senti em casa. As plantas, a luz, o ar, estou acostumada com tudo isso. Passei a vida toda indo para lá, por longos períodos de 2, 3 meses. 

Qual era profissão dos seus pais?
Meu pai era bibliotecário.

Então você cresceu no meio de livros.
Na verdade, não. Por ser bibliotecário, ele achava que as pessoas deveriam ir até a biblioteca para pegar livros. Tínhamos poucos livros em casa. Embora minha mãe fosse uma leitora voraz, ela não conseguia achar livros em bengali nos Estados Unidos. Meu pai trabalhava na biblioteca da faculdade, que era um ambiente muito sério. Mas por sorte, nós morávamos a uma quadra da biblioteca municipal, a qual eu frequentava.

Você se lembra de como foi ler pela primeira vez?
Fui criada falando bengali, mas aprendi a ler em inglês. Foi um momento crucial na minha vida. O ato de ler em si já é radical para o nosso desenvolvimento, e o fato de eu ter aprendido em outro idioma acabou criando uma divisão dentro de mim, pois de repente eu entrara num universo linguístico completamente diferente, com uma cultura diferente. Quando comecei a ler, eu tinha a consciência de que estava lendo histórias sobre pessoas que não eram nada parecidas comigo e minha família. Mesmo nos livros de ilustrações que eu lia quando bem pequena, as pessoas eram diferentes, faziam coisas diferentes, tinham vidas diferentes. Eu ficava fascinada com tudo isso, pois era um mundo imaginário do qual os meus pais não participavam. Acho que foi a primeira vez na minha vida que eu senti essa separação. Eu sentia que ler em inglês era ao mesmo tempo uma espécie de salvação pessoal e um ato de traição em relação aos meus pais. Foi naquele momento que eu comecei a sentir que vivia uma vida dupla.

Fale um pouco sobre a diferença entre escrever contos e romances. Creio que há uma grande diferença entre os dois processos.
Os processos são diferentes, mas não tanto. Embora eu passe mais tempo escrevendo um romance, já cheguei a passar anos escrevendo um conto. Outras vezes, os contos surgem muito rápido.

Você é daqueles escritores que sofrem para escrever ou é um prazer? Ou ambos?
Ambos. É um prazer e um desafio. Não sei se diria que é um sofrimento. É um grande desafio, mas que para mim é irresistível. Há pessoas que gostam de escalar montanhas, que sentem necessidade de fazer isso apesar de ser tão difícil, perigoso e assustador. Elas sentem necessidade de passar pelo processo, de viver essa experiência. Para mim, escrever é um pouco assim. Cada livro é uma grande montanha. Você começa lá embaixo com o objetivo de chegar a algum lugar. O objetivo de chegar ao topo da montanha é para ver o que você conseguiu fazer, pois enquanto está escalando você está tão focado no processo que não vê o resultado, apenas continua subindo. É assim que eu me sinto. Não sei se diria que é um sofrimento, pois foi uma escolha minha. Se alguém viesse no meio da noite e retirasse a parte do meu cérebro que me permite escrever, isso sim me causaria um tremendo sofrimento.

E o seu novo livro sobre aprender italiano, que você escreveu em italiano? 
O livro em italiano é parte de um processo mais longo. Na verdade, foi algo meio inconsciente, pois se eu tivesse pensado muito provavelmente não o teria escrito, afinal é algo tão louco. Eu havia parado completamente de ler em inglês. Estava num processo de imersão total na língua italiana e aí me mudei para a Itália. Continuei a ler em italiano e comecei a escrever um diário naquela língua, foi uma mudança repentina. O diário estava cheio de erros e imperfeições, eu era como uma criança de novo aprendendo a escrever. Comecei a ficar fascinada e empolgada com isso e o livro surgiu desse estranho estado de imperfeição, de voltar ao começo e aprender a escrever de novo em outra língua. O livro termina com uma reflexão sobre todas as línguas que aprendi na minha vida, os seus significados e como se relacionam entre si: bengali, inglês e italiano. 


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