Milton Hatoum tem um ritmo próprio. É, talvez, um ritmo de escritor, com intervalos longos entre as frases, como quem medita antes de tomar um gole de aguardente e, depois de pousar o copo, retorna à conversa, serenamente satisfeito. Sua voz é grave, lenta, e parece vir de longe, na boleia de pensamentos remotos.
Estamos em Iguape, tomando café no quintal de uma pousada. Um carro passa com o alto-falante aos brados, anunciando alguma coisa. “Isso é tão amazonense, nossa, fico até emocionado. É a anti-internet”, ele comenta. A cidade histórica do Estado paulista abriga um dos festivais literários mais simpáticos do País, o FLI, de apenas três anos. É também cenário do livro que o autor premiado com três Jabutis e um Portugal Telecom vem escrevendo desde 2008.
Hatoum está aqui para falar de um de seus heróis, Graciliano Ramos. A plateia, na tenda montada na praça central, é composta quase só de estudantes. Público perfeito para quem se preocupa fundamentalmente com a formação de leitores. Ao final de uma palestra inspiradora, ele me confidencia estar chateado de não ter trazido cópias do Vidas Secas. Costuma fazer isso, para distribuir aos jovens, nos muitos lugares do Brasil por onde passa.
Em São Paulo, cidade que adotou (pela segunda vez) depois de viver em Manaus, Brasília, Santos, Madri, Barcelona, Paris e Berkeley, na Califórnia, participa de programas de incentivo à leitura. Visita bairros da periferia com um livrinho de crônicas suas que sugeriu imprimir. Fala com orgulho do projeto, que contou com participação direta do prefeito Fernando Haddad. Também colabora com a ONG Vaga Lume, que monta bibliotecas em regiões afastadas na Amazônia.
Avesso a modismos, como o pós-modernismo de Michel Houellebecq, que não suporta, o arquiteto, formado pela FAU-USP (chegou a fazer alguns projetos em Manaus) e ex-professor de Literatura na Universidade Federal do Amazonas, acredita que é imprescindível passar pelos clássicos para aprender a escrever bem. E fica incomodado com o domínio da literatura norte-americana no mercado editorial. No espectro da política, está mais à esquerda, mas não poupa críticas ao PT, ainda que seja otimista quanto ao cenário econômico para o ano que vem.
Traduzido em muitos países e tido como um dos maiores autores nacionais, ele vê sua obra ser adotada nas escolas e também por roteiristas de cinema, TV e quadrinhos. Uma série global e três filmes baseados em seus escritos estão em estágios diversos de andamento. Os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá lançaram recentemente uma muito elogiada versão de Dois Irmãos em HQ, que estourou na França e deve ser lançada nos Estados Unidos, Alemanha, Itália e, possivelmente, Coreia e Japão. E é por aí que começa nossa conversa.
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Brasileiros – O que você achou da versão em quadrinhos?
Milton Hatoum – Gostei muito. É outra linguagem. Tem uma coisa interessante nos quadrinhos que é exatamente o silêncio, as imagens que não precisam de palavras e isso para mim é um ponto alto do livro. Reconheci muitas coisas da minha infância. Eles foram para Manaus, ficaram quatro anos fazendo esse trabalho. Conversamos muitas vezes, foram várias reuniões. Fiz um mapa para eles com indicações dos lugares do romance, o que ainda existe, o que foi destruído. Eu dizia: “Olha, eu andava nessa praça, estudei nesse colégio, frequentei a cidade flutuante, que não existe mais”. E eles foram lá, conheceram, desenharam, fotografaram, conversaram com as pessoas, comeram os peixes, entraram na cultura local. Escolheram uma casa modelo para ser a casa da família, na Praça dos Remédios – um casarão lindo, meio art déco, da época da borracha. Nessa praça, onde moravam e ainda moram famílias de sírios e libaneses, há lojas também, um comércio mais popular, que ficou à margem da Zona Franca. O lançamento em Manaus foi uma loucura, tinha mais de 200 pessoas. Foi na Praça São Sebastião, em uma banca de revistas de amigos nossos, que colecionam livros antigos. O dono do casarão estava lá. Acho que tem um lado também da curiosidade dos dois artistas pela Amazônia, não é só pela trama. E aí não posso esconder um certo orgulho, ou uma satisfação. Muitos leitores vão a Manaus após ler o livro. Gaúchos, catarinenses, goianos, pessoas que me escrevem também, depois de ler Cinzas do Norte, dizendo que não faziam ideia de como era aquela parte do País até lerem o livro. Ou seja, a literatura é uma forma também de conhecimento histórico. Acho um gesto de generosidade se interessar por outra cultura. É como Raul Bopp, gaúcho, que escreveu um grande poema sobre a Amazônia (Cobra Norato). Ou o incansável Mário de Andrade, que se entregou para o Brasil inteiro, se apaixonou pelo País. Para mim, ele é nosso maior intelectual. Eu mesmo já não me animo mais a viajar pro exterior. Agora, quero me internar no Brasil. O leitor estrangeiro de um modo geral ainda tem uma visão ou pré-visão do Brasil que passa pelo exotismo e isso é difícil de desconstruir. O clichê é muito forte, são ideias muito cristalizadas. Acho que a formação de arquiteto e urbanista ampliou esse meu conhecimento e curiosidade.
Você me disse, aliás, que um dos motivos de ter vindo para Iguape foi conhecer a região, cenário em seu livro novo.
Há no romance um personagem de origem japonesa, cujos avós trabalharam nessa região. A imigração japonesa foi muito forte aqui, em Iguape e Registro. Plantavam arroz, depois chá, e um pouco de café também. Exportavam muito arroz para a Europa. Isso nas décadas de 1920 e 30. Até hoje, moram aqui nisseis, sanseis e bisnetos de japoneses. Eu queria vir aqui também porque é uma cidade belíssima, das mais importantes da nossa história – a Rota do Ouro saía daqui. Quero conversar com as pessoas, ver a exposição sobre a imigração japonesa, andar pela cidade, ver as paisagens, o entorno, imaginar como essas pessoas chegaram, como fizeram essa longa viagem, de um outro oriente, que é um oriente que me interessa. No Cinzas do Norte há um capítulo sobre os japoneses da Amazônia, que no começo dos anos 1930 plantaram juta de forma exitosa, importante para a economia regional, depois da decadência da borracha. Há milhares de japoneses que casaram com brasileiras e hoje são caboclos, assim como judeus de origem marroquina e outros. O Brasil vai absorvendo esse outro, não cria compartimentos, classificações, como nos Estados Unidos, onde eu não seria um brasileiro, mas um arab-american ou hispânico.
E como está indo o livro?
Fiz o primeiro rascunho em Madri, não deu certo e queimei tudo. E graças a um argentino, você vê? Esse meu amigo era um ótimo tradutor, Mario Merlino. Traduziu Raduan Nassar, Graciliano, acho que Osman Lins. Conhecia muito bem o latim, falava bem o português, adorava o Brasil. Morreu há uns dois ou três anos. Ele disse: “Isso não é um romance, pode esquecer. É uma crônica política, está muito mal resolvido, tem de amadurecer, você deve ter uma história lá atrás, dos libaneses na Amazônia”. E ele estava certo. Era um ótimo leitor. Uma parte do que imaginei acabou se transformando, vinte anos depois, no Cinzas do Norte, que terminei em 2005. Outra parte é esse romance que estou escrevendo desde 2008. Tem um título meio provisório, O Lugar Mais Sombrio. Vou lançar se estiver legível, não sei. Na verdade, são dois volumes, que de algum modo conversam entre si, mas o segundo não é uma sequência do primeiro.
Você costuma mostrar o que escreve para outras pessoas antes de publicar? E muda de acordo com as opiniões?
Sempre. Raduan Nassar leu Dois Irmãos. O Davi Arrigucci, Samuel Titan Jr. e Luiz Schwarcz costumam ler o que eu escrevo. Maria Emília Bender, que foi minha editora por muito tempo, também, e minha mulher (a ex-editora Ruth Lanna) é implacável. Mudei muita coisa com as leituras. Adiei a publicação do Cinzas e do Dois Irmãos por conta de questões estruturais, do foco narrativo, da posição do narrador. Não eram detalhes, uma frase, uma palavra, eram problemas estruturais mesmo. Se você não tiver paciência para reescrever, você pode estragar o livro. Muitos escritores não têm essa paciência, querem publicar logo.
Esse não parece um problema para você, ao contrário.
Eu sou extremamente paciente, talvez até demais. É que essa espera não me angustia, esse é o tempo da literatura. Seria interessante os jovens terem essa percepção. Talvez por isso eu tenha publicado meu primeiro romance aos 37 anos. E escrevo à mão. Só passo para o computador quando acho que está meio pronto. Dois Irmãos teve 16 versões manuscritas. Cinzas do Norte também teve várias.
O que não tem nada a ver com o cinema, né? Como você vê as adaptações de seus livros?
O cinema é totalmente oposto. Mesmo o trabalho do roteirista tem um lado de diálogo, interferência, o produtor lê, o diretor muda muita coisa. Com o escritor não tem isso. O romance é escrito em um silêncio absoluto, o escritor fica numa espécie de confessionário consigo mesmo. Eu sou o meu psicanalista e sou o padre de mim mesmo. Sou uma espécie de réu confesso pro meu duplo, o meu outro. Não há ruídos. E é isso que exige paciência. São três adaptações: Dois Irmãos, que é uma minissérie e está sendo dirigida pelo Luiz Fernando Carvalho; Órfãos do Eldorado, com direção do Guilherme Coelho, que já está pronto, mas ainda não vi, acho que vão lançar só em outubro ou novembro; e Relato de um Certo Oriente, que Marcelo Gomes quer filmar e está fazendo o roteiro com Maria Camargo. Ainda tem um conto do Cidade Ilhada, que o Sérgio Machado quer filmar. Chama O Adeus do Comandante. Eu estou escrevendo um outro conto para dar liga e fazer parte do roteiro. Gosto muito do trabalho desses diretores e Maria Camargo é uma ótima roteirista, está há dez anos preparando o roteiro.
É sofrido escrever?
Acho que escrever é um dos modos de ver o mundo. Eu escrevo porque gosto. Aí sim tem uma pulsão, um desejo mesmo. Você não escreve forçado, escreve também por prazer. E porque você sente profundamente uma coisa que está na sua vida e que você tem condições de expressar, de inventar esse mundo paralelo, vamos dizer assim. Isso de sofrer para escrever é um mito. Mas o esforço mental e físico é grande. O Graciliano e o Flaubert são parâmetros importantes. Muita gente diz que o Faulkner escrevia de modo alucinado, bêbado. Eu duvido. O que tem de correção! São mitos. É impossível você armar aqueles jogos temporais, temporalidades distintas, sem ter plena consciência, domínio das partes em relação ao conjunto.
Você defende muito o papel do escritor na formação de leitores. Acredita que a literatura tem, então, uma função na sociedade?
A gratuidade da arte é um mito. A literatura não tem uma missão, mas ela é uma forma de conhecimento, como já disse Antonio Candido. Acho que há um trabalho enorme a ser feito no Brasil de formação de leitores e acredito que os escritores podem se envolver. Não são obrigados, claro. Mas eu, que fui professor durante muito tempo e principalmente por ter sido aluno de escola pública, acho importante um escritor falar de um bom livro ou de um livro importante para um público que está um pouco perdido. O leitor depende de um processo que em algum momento começa na escola, ou com alguém que conta uma história. Li muita coisa de literatura brasileira no ginásio. Tinha essa professora que me apresentou o Graciliano, era apaixonada por ele. Meu avô era um ótimo contador de histórias. A nota no fim de Órfãos do Eldorado não é ficção. Eu ouvi aquela história, que me impressionou. Minha mãe foi responsável pela minha leitura dos contos de Machado. Foi a maior contribuição que ela me deu, talvez ingenuamente, porque ela lia o Machado de uma forma totalmente errada, como as senhoras da segunda metade do século 19 liam, como uma história de triângulo amoroso, etc. E Machado engana o tempo todo, você tem de ir descobrindo o que está por trás desses triângulos e desses trapézios, que não são poucos.
Por que o Graciliano Ramos é tão importante para você?
A secura da linguagem dele me interessa muito. Ela tem um lado reticente. Quando você diz muito, e o romance começa a ficar derramado, explicativo, ele perde força. A linguagem de Graciliano é uma lição de estilo, uma aprendizagem. Como poucos no Brasil, ele conseguiu unir o psicológico ao social, o drama interno à paisagem hostil e árida. O que é um grande desafio. Se tiver só ação, vira thriller, e para ficar caraminholando muito tem de ser genial como Clarice Lispector. Acho que, no horizonte dele, o texto era quase um esqueleto em que cada osso tinha uma função específica, mas com um significado muito forte. Cada vez mais me preocupo com esse ritmo, com o dizer muito com pouco. Estou cortando cada vez mais.
Sente falta dos tempos de professor?
Muito, por isso dou palestras. Gosto de falar com os jovens. Tenho a preocupação de não falar em linguagem cifrada, isso no Brasil não funciona. E depois, acho que a partir desse diálogo, alguém sempre vai pensar em alguma coisa. Dei aula de Literatura Latino-americana na Universidade da Califórnia, como professor convidado. Até hoje não entendo por que um autor norte-americano é mais lido do que os hispano-americanos. Juan Carlos Onetti, que é, inclusive, um autor muito faulkneriano, nunca foi muito lido no Brasil. E há Alejo Carpentier, Juan Rulfo, Cortázar, Borges. Dos norte-americanos, só o Faulkner e o Fitzgerald têm a mesma estatura desses aí. Philip Roth tem livros importantes, mas é superestimado.
Como descendente direto de libaneses, teve contato com a literatura árabe?
É uma enorme frustração não falar árabe. Ler, então, nem se fale. Gosto muito da poesia do Adonis. É um grande poeta. O Elias Khoury escreveu um romance muito bonito chamado Yalo. Fui a um colóquio de escritores latino-americanos em Beirute. Gostaram muito da tradução de Dois Irmãos, mas não entendiam por que eu não falava árabe. Fiquei emocionado lá. Já tinha ido antes, no fim da Guerra Civil, logo nos primeiros meses de trégua, por volta de 1990. Beirute estava arruinada e eu nunca tinha visto nada assim. Era uma cidade linda. Fui com meu pai, que nasceu lá.
Tem acompanhado a política?
Acho que o PT errou muito. Eu mais ou menos esperava isso, pois ninguém ocupa o poder e vira santo. Se o ilibado PSOL tomasse o poder ia ser a mesma coisa. E o Aécio então, com quem ia se aliar? Acho que há uma disfunção na sociedade brasileira que vem de muito tempo. Por exemplo, o Judiciário será capaz de prender, mesmo tendo provas, o Renan Calheiros e o Eduardo Cunha, que para mim é uma das figuras mais execráveis deste País, um cara comprometido com a bancada da bala, com a bancada dos fundamentalistas e com a bancada do boi? Eu até brinco: se prenderem os dois, acho que alguma coisa pode começar a mudar. Dilma é refém desses caras. Qualquer presidente da República será refém do PMDB, único partido que tem representação nos 5570 municípios brasileiros. Não entendo porque a Dilma não vai à televisão para explicar aos brasileiros que as políticas de Educação, Saúde e Segurança dependem também dos Estados e Municípios. O brasileiro médio pensa que tudo depende do governo federal, quando há repasses enormes de verbas. Para onde vai esse dinheiro? Tenho, porém, a intuição de que a política econômica da Dilma vai surtir efeito. Ela escolheu a pessoa certa. O ajuste é um remédio amargo, não tenho ilusões quanto a isso. Mas no segundo semestre do ano que vem a gente conversa de novo.
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