Ngugi wa Thiong’o viveu a história do século 20 como poucos. Nasceu numa aldeia no Quênia, em 1938, “à sombra da Segunda Guerra Mundial”, como conta em suas memórias de infância Sonhos em Tempo de Guerra, que a Biblioteca Azul está lançando. Seu pai tinha quatro esposas e outros 23 filhos. Destes, ao menos um lutou ao lado dos ingleses na disputa pelos países da África Oriental. Mas o que marcou mesmo os primeiros anos do futuro romancista, dramaturgo e pensador da cultura negra foram as histórias narradas por uma irmã que ficara cega e inválida depois de atingida por um raio. “Sua voz e sua memória eram as mais poderosas”, conta, no livro.
Bastante politizado, Thiong’o sofreu com a ditadura de Daniel arap Moi, líder que sucedeu Jomo Kenyatta, o herói da independência, no poder. Por conta da apresentação de uma de suas peças, falada no seu dialeto natal gikuyu, ficou um ano preso. Por e-mail, ele explica melhor: “Acredito num teatro que incendeia a imaginação do povo e faça com que as pessoas possam sonhar com um futuro sem pobreza, sem prisões e sem ignorância. Quero que saibam que são eles que realmente fazem a história. E é por esse motivo que o teatro tem de ser encenado nas línguas que as pessoas do povo falam. Em 1977, fui mandado para uma cadeia de segurança máxima justamente por defender esse tipo de teatro”.
Sua fama como escritor surgiu com o romance Um Grão de Trigo, de 1966. Baseado em fatos da vida que o cercava, trata da luta dos guerrilheiros contra o domínio britânico e da vida de mulheres, velhos e crianças que sofriam com os maus tratos dos patrões brancos. “O romance continua atual. Como em meus outros livros, eu levanto questões sobre o empoderamento do homem comum, o trabalhador, o pequeno fazendeiro.” Não é, como se poderia pensar, um livro maniqueísta. Ao contrário, o aprofundamento psicológico dos personagens lembra Dostoiévski. “Gosto muito dele. Nem conseguiria medir sua influência. A verdade é que todos os escritores escrevem em diálogo com outros escritores e seus textos. Na época eu também lia muito Joseph Conrad. Acho interessante explorar as tensões entre os impulsos contraditórios dos personagens.”
Depois de solto, saiu do país com sua mulher e filhos, três dos quais também escritores. Hoje dá aula de literatura na Universidade da Califórnia. Ao longo desse mês, antes de vir para a Flip, onde dividirá a mesa com o autor tasmaniano Richard Flanagan, vai percorrer o Quênia para celebrar os 50 anos de seu segundo romance, Weep not Child.
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