Entre 12 e 14 de abril, estivemos em Luanda como participantes brasileiros da I Conferência Nacional sobre o Direito à Verdade e à Memória Coletiva como Direitos Humanos na construção do Estado Democrático de Direito, a convite da Open Society – Angola e da Associação Justiça, Paz e Democracia de Angola. Ranqueado como um dos últimos Índices de Desenvolvimento Humano – IDH do mundo e posicionado entre os países de baixo desenvolvimento humano, o país africano ocupa a posição 149 em lista de 187 países. Angola é o mas rico em petróleo e diamantes, de onde vem a maioria das receitas, e sustenta uma elite abastada e ostentatória. Luanda é hoje uma das cidades mais caras do mundo.
Arrasada por quase cinco séculos de colonização portuguesa e escravização de seus povos, coisificados e traficados para os continentes americanos, a partir de 1961 Angola se viu imersa em luta revolucionária pela libertação nacional, que culminou na tão aguardada Independência em 1975. Mas terminada a guerra da Independência, o povo viu as forças que libertaram o país se engalfinharem, entre 1975 e 2002, em uma sucessão de guerras civis que duraram 40 anos e, segundo militantes dos direitos humanos, causaram mais de um milhão de mortes. Estimativa impossível de confirmar devido à ausência de investigações disponíveis confiáveis. Isso significa que em um país de cerca de 23 milhões de habitantes, é quase nula a possibilidade de algum angolano, com 30 anos ou mais, não ter participado dos conflitos armados ou não conhecer os custos subjetivos, políticos e sociais altíssimos de períodos prolongados de guerra, cujas marcas perduram nas cidades, no corpo e nos corações dos angolanos.
Augusto Santana, cientista político angolano, relata que, após 14 anos de luta armada, os três movimentos políticos destacados – Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e União Nacional pela Libertação Total de Angola (UNITA) –, em 1975, fizeram um acordo (Acordo do Alvor) com as autoridades portuguesas com objetivo de descolonizar Angola por um lado e, por outro, obter correlação de forças militares no território angolano. Esse processo não foi bem-sucedido, e as forças políticas se desentenderam. O presidente do MPLA, Agostinho Neto é proclamado presidente da República de Angola. A partir daí, estabeleceu-se a guerra civil, que só terminou em 2002.
Esses anos devastaram o país e esparramaram sangue, medo, ressentimentos e ódio. Geraram uma ditadura, travestida de democracia, que se mantém até hoje com o grupo vitorioso (MPLA) no poder, cujo presidente José Eduardo Santos está há 36 anos no governo. O resultado é que Angola vem sendo governada por um único partido, hoje majoritário no Parlamento: o MPLA, desde 1979. Em 2012, em pleito suspeito e gerador de tensões internas, o presidente José Eduardo Santos é, mais uma vez, reconduzido ao poder. Sobre as eleições, o Relatório Global de 2013 do Human Rights Watch observa: “A Comissão Nacional Eleitoral, apesar de uma composição mais equilibrada do que em 2008, não foi capaz ou disposta a cumprir o seu papel como um órgão de supervisão imparcial. A CNE não conseguiu resolver violações graves das leis eleitorais, incluindo o acesso desigual dos partidos aos meios de comunicação públicos e abusos de dirigentes do partido no poder dos recursos e instalações do Estado. Além disso, a CNE dificultou observação independente através do credenciamento atrasado, restritivo e seletivo de observadores nacionais e internacionais. A CNE também obstruiu o credenciamento dos membros da oposição nas assembleias de voto, deixando até a metade de representantes da oposição, sem credenciais no dia da votação”.
E mais adiante: “Os meios de comunicação enfrentam ampla gama de restrições que impedem o direito à livre expressão e incentivam a auto-censura. Os meios de comunicação do Estado e uma série de meios de comunicação privados pertencentes a altos funcionários do governo, são porta-vozes do partido da situação e neles censura e auto-censura são comuns”.
A preservação de um único governante no poder há quase quatro décadas, acompanhado de suspeitas de fraude eleitoral nas eleições parlamentares e presidencial de 2012, indica perspectivas nada promissoras para a democratização do país, a despeito dos valorosos grupos, organizações e ativistas que lutam há décadas pela consolidação da democracia e o respeito aos direitos humanos em Angola.
Qualquer passeio rápido pela região metropolitana da capital, Luanda, longe das áreas turísticas, evidencia extrema desigualdade, falta de segurança e triste carência de empregos formais, coisas que não são incomuns em outros países. Porém, além disso, há na paisagem urbana de Luanda desavergonhada assimetria social e econômica que impacta. Para fora dos prédios sofisticados, em geral abrigando hóspedes estrangeiros ou a elite de Angola, e imediatamente na linha que separa as áreas privadas e as públicas, logo após as portas de vidro, um sem número de trabalhadores informais pobres se esparramam pelas ruas e calçadas, disputando o precário espaço público, onde se prioriza, clara e evidentemente, os automóveis importados que se amontoam em um trânsito caótico, cujas regras de tráfego são impossíveis de compreender rapidamente. Um sem-número de esqueletos de edifícios em construção despreza o bem-estar dos transeuntes a seu redor, degradando ruas, calçadas e espaços comuns de convivência. Nenhum lugar para ficar e sentar, salvo onde se paga e se consome.
Em Luanda, fora das áreas recém-construídas e habitadas pelas camadas ricas, a rua é desagradável, mal iluminada e perigosa. Muitos locais mal se prestam para caminhar, dada a precariedade dos calçamentos e o esgoto que brota a céu aberto. Porém, mesmo aí, nessa terra de ninguém, os homens e mulheres de Angola trabalhando informalmente em busca de sobrevivência são expulsos violenta e recorrentemente pela polícia.
O relatório de segurança pública de 2010, publicado pela Open Society – Angola, indicava que 23% dos entrevistados no país já haviam sofrido algum tipo de violência policial, quase um em cada quatro angolanos, chegando a 52% na província de Cabinda, mais de um em cada dois angolanos. No espaço público, segundo informações de ativistas angolanos, as zungueiras, mulheres que carregam sobre suas cabeças enormes pesos em mercadorias para serem vendidas em qualquer ponto da cidade, são frequentemente achacadas, agredidas com violência e, por vezes, mortas quando em fuga, perseguidas pelas forças policiais de Luanda, que reprimem o comércio não legalizado que praticam nas ruas. Essas mulheres que, muitas vezes, carregam também filhos pequenos amarrados às costas, correm o risco de perder a vida e a de seus filhos, em quedas ou atropelamentos durante a fuga e confrontos com a polícia.
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O Relatório do Human Rights Watch, publicado em 2013, aponta: “Vários vendedores ambulantes contaram à Human Rights Watch que as autoridades raramente poupam grávidas, raparigas e mulheres com bebês às costas, das agressões. O fato de as grávidas e as mulheres que transportam bebês serem geralmente mais lentas ao fugir das repressões, torna-as mais vulneráveis às agressões. Há testemunhos não confirmados de vendedoras ambulantes grávidas que sofreram abortos provocados pelas agressões. Uma ambulante de 33 anos, que vende cadernos de escola em torno do antigo mercado da Estalagem, disse: ‘Os fiscais batem em mulheres grávidas. Não querem saber de nada. Não respeitam ninguém, não interessa se estás grávida ou com um bebê às costas’’’.
Em muitas comunidades não há água encanada e os apagões são comuns, podendo durar semanas. Em locais pobres de Angola, a água é fornecida nos chamados chafarizes, dos quais parte da população retira a água em galões, bacias e vasilhas. Quando decidem pagar pelo transporte da água em carrinhos de mão, o preço do transporte pode ser superior ao da água. Em muitas comunidades e regiões, o esgoto ocupa a quase totalidade das ruas e se transforma em lama, produzindo uma mistura contaminada de fedor, água e lixo, onde subsistem a resignação dos moradores e a perplexidade dos estrangeiros.
A população tem pavor da guerra, mas ainda se respira o conflito nos ares de Angola. Seja porque as práticas da polícia atuam contra a população, como se estivesse em guerra contra ela, seja porque, em Angola, as manifestações públicas de crítica e reivindicação pacíficas contra o governo são proibidas e reprimidas.
A concepção dicotômica do amigo e do inimigo parece perpassar as práticas do governo, dificultando a expressão livre de opinião, o direito de se manifestar e, assim, a superação das dores produzidas pelas sucessivas guerras torna-se cada vez mais distante para o povo angolano. Alguns ativistas chegam a acumular detenções, acompanhadas de maus-tratos, violência física e encarceramento em solitária, por participarem e liderarem manifestações pacíficas contrárias ao governo. ONGs alegam ter computadores hackeados e telefones grampeados pelo governo. Pesquisadores e professores afirmam ser impossível publicar livros no país com críticas ao governo. Tais publicações procuram ser viabilizadas em Portugal e no Brasil.
Nos dias em que passamos em Luanda, ativistas demonstravam preocupação com as detenções dos angolanos Marcos Mavungo e Arão Tempo, militantes pelos direitos humanos na província de Cabinda, enclave que concentra riquezas minerais, vegetais e 70% da produção de petróleo do país, conhecida pela aguerrida luta da população pela sua Independência de Angola e pelo respeito aos direitos humanos, frequentemente violados. Mavungo e Tempo são acusados de praticar crimes contra o Estado. Eles participaram da organização de uma manifestação pelos direitos humanos e contra o governo de Cabinda que, ao final, não aconteceu.
A prisão e intimidação de ativistas que se manifestam contra o governo tem sido prática comum em toda Angola. Segundo membros de ONGs, moradores e ativistas de Cabinda, tais prisões podem ser caracterizadas como crimes de opinião, já que não há qualquer ato ou comportamento que possa ser criminalizado a não ser a intenção de se manifestar pacífica e democraticamente.
Aos partidos de oposição, que lutaram ao lado do MPLA pela Independência de Angola e, depois, protagonizaram guerras sangrentas pelo poder, hoje não resta outra alternativa senão unirem-se aos ativistas e organizações democráticas do país, para que a maioria do povo possa usufruir das riquezas e do curto período sem guerras, e não apenas os membros do partido no poder, as elites e os estrangeiros em busca de vantagens econômicas.
O mundo deve observar com atenção um país cujo povo resiste como pode às consequências dramáticas das sucessivas guerras, à distribuição injusta das riquezas e à privação da liberdade de falar, opinar e lembrar em um país que ainda vive sob a sombra e a suspeita dos traumas das guerras passadas e precisa evitar guerras futuras.
Não há como negar o direito humano fundamental de construir a verdade e a memória coletiva da corajosa resistência de um povo que hoje ainda almeja e luta pela preservação da paz. Contudo, para a maioria do povo angolano, a plena liberdade e a justiça social prometidas e devidas após a independência do país, ainda é uma realidade distante.
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