É difícil colocar Frei Betto, 70, em uma única categoria de atuação. Ainda que seja conhecido com um título religioso antes da abreviatura do nome (chama-se, em realidade, Carlos Alberto Libânio Christo), sua história é carregada de participações em diversos setores da vida, como a política, o meio acadêmico e o social. Foi em um deles, porém, que surgiu o que é, talvez, sua principal obra literária: Fidel e a Religião, publicado em 1985 e que reúne 23 horas de conversa com o seu amigo e líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, em Havana.
A obra é resultado de uma amizade que nasceu em Manágua, capital da Nicarágua, em 1980, durante um encontro entre autoridades latino-americanas e que se transformou em um convite de Fidel para Frei Betto aproximar a Igreja Católica cubana do Estado, uma relação que praticamente não existia. Quatro anos depois da primeira viagem dele a Cuba, o livro foi idealizado e produzido, sendo uma explosão na época pelas revelações que Castro lhe fez sobre religião. “Foi um desbloqueio geral na questão religiosa em Cuba, que estava abafada por causa da influência soviética”, explica ele à Brasileiros, duas semanas depois de ter retornado de Havana, onde encontrou mais uma vez Fidel e foi homenageado pelo aniversário de 30 anos da obra.
Brasileiros – Durante a sua visita a Cuba, a imprensa noticiou que Fidel Castro teria lhe dito que já era hora de atualizar Fidel e a Religião…
Frei Betto: Foi um equívoco da mídia. Estive na casa de Fidel e ele me disse que, ao reler o livro, estava impressionado com a atualidade da obra. Não que ele queira atualizá-lo. O livro é atual até hoje. Concordo. Tanto que, este ano, assinei um contrato para o lançamento de uma edição turca. Com isso, são 34 países e 24 idiomas em que a obra foi editada.
Muita coisa mudou em Cuba desde que Fidel e a Religião foi publicado?
Mudou muito. As duas grandes mudanças ocorreram, na verdade, depois do contato que tive com Fidel Castro na Nicarágua, em 1980. Na época, eu quis saber por que o partido e o Estado cubano são confessionais. Ele levou um susto: “Como somos confessionais? Somos ateus”. E aí eu completei: “Comandante, negar ou afirmar a existência de Deus é pura confessionalidade e a modernidade exige Estados e partidos laicos”. Enfim, ele respondeu: “Você tem razão. Nunca encarado as coisas por essa ótica”. Posteriormente, houve uma mudança na Constituição de Cuba, que tirou o caráter ateu do Estado e o transformou em laico, assim como no Partido Comunista. Isso significou a permissão de cristãos ingressarem no partido. À época, o que mais surpreendeu os cubanos foi que, ao tirar o caráter ateu do partido, vários comunistas confessaram que sempre tiveram fé, foram cristãos, mas não podiam admitir publicamente. Também perguntei a Fidel, naquela ocasião: “Qual a relação que a Revolução Cubana tem com a Igreja Católica?” Se fosse uma relação de perseguição, diria a ele que Cuba prestava um grande serviço à Casa Branca, que quer mostrar a incompatibilidade entre Igreja e Estado em Cuba. Se fosse relação de indiferença, lhe diria que prestava um grande serviço àqueles que, insatisfeitos com a Revolução, se escondiam na sacristia da Igreja. Se, enfim, fosse uma relação de diálogo com as instituições cubanas, assim como a Igreja Católica, seria uma postura adequada. Ele novamente me disse: “Você tem razão. Não tinha pensado nesse aspecto. Estamos falhando, porque não dialogo com nenhum bispo católico cubano há 16 anos”. Fidel me propôs fazer uma ponte entre Estado e Igreja em Cuba, evidentemente dependendo também da aceitação desses bispos cubanos.
E o que aconteceu?
Em 1981, fui pela primeira vez a Cuba e, em seguida, os bispos aceitaram esse meu papel. Fiquei fazendo essa ponte até 1991 e, então, veio o livro. Foi um desbloqueio geral na questão religiosa em Cuba, que estava abafada por causa da influência soviética.
Antes havia algum tipo de perseguição por parte do Estado?
Nunca houve perseguição. Havia discriminação social e ideológica. Cristãos não podiam entrar em determinadas carreiras, como Psicologia ou Filosofia.
Pelo argumento de serem ciências…
Exato. Nas escolas secundárias, chegou-se a ensinar “ateísmo científico”, o que é uma expressão contraditória. Mas nunca houve prisão por questões religiosas e nunca fecharam uma igreja em Cuba. A imagem do Sagrado Coração, na baía de Havana, nunca foi derrubada ou tapada. Fidel, por sua vez, sempre teve excelente relação com os núncios que estavam em Cuba. Eles estavam, aliás, mais abertos do que os próprios bispos cubanos.
Como um país colonizado pela Espanha, majoritariamente católico, consegue ensinar ateísmo?
Foi um dos preços que Cuba pagou durante a Guerra Fria frente à agressão dos Estados Unidos, tendo que se abrigar no espectro de um país mais forte, com condições de enfrentar aquela ameaça, que foi a União Soviética. Isso teve um custo ideológico.
Quando perguntei sobre mudanças, também me referia no que se transformou nos cenários políticos, econômicos…
Os soviéticos tinham um pré-conceito ao Che Guevara, e ele era um dos principais líderes da Revolução Cubana. Esse sentimento se deu depois de uma conferência em Argel, na Argélia, em que o Che criticou o imperialismo dos Estados Unidos e o “social imperialismo” da União Soviética. Isso foi considerado pelos soviéticos um pecado mortal, tanto que ele só passou a ser venerado em Cuba após a queda do Muro de Berlim. Quando o muro caiu, Cuba entrou no chamado período especial, uma época de vagas magras, porque havia uma dependência econômica da União Soviética e porque ninguém esperava que ela fosse desaparecer. Para ter uma ideia, era mais barato importar batatas da Alemanha Oriental do que plantá-las em Cuba, como acontece hoje no Brasil com o sal. Essa dependência, cortada subitamente, levou os cubanos a uma situação difícil de sobrevivência. Isso obrigou o processo chamado de retificação, em que o governo de Cuba reavaliou seu socialismo no sentido de mudar o rumo, não de acabar. Agora, estamos vivendo um novo momento, que é a mudança da estrutura econômica do país, com a abertura para a iniciativa privada, cooperativas, investimentos estrangeiros, sem alterar o panorama do projeto socialista.
E a pessoa do Fidel Castro?
Fidel continua tão lúcido quanto antes. Eu o conheci em Manágua, em 1980, e o entrevistei em Havana, em 1985, quando estive com ele duas vezes, em janeiro e abril, por uma hora e meia. Ele segue antenado na conjuntura internacional e está muito interessado no Brasil. Até disse para ele que estamos passando por um ajuste fiscal, e ele entendeu perfeitamente a ironia. Está mais magro por causa da aposentadoria, mas conversa sempre com Raúl Castro, com o ministro das Relações Exteriores [Bruno Rodriguez Parrilla] e todos os chefes de Estado que vão ao país também visitam a casa dele, como fez Dilma Rousseff recentemente. Ele conserva um costume herdado do seu período nas escolas jesuítas, o de anotar tudo o que conversa com as pessoas.
E os pontos de vista dele?
Não sinto nenhuma mudança. Fidel é de uma coerência assombrosa. Aliás, vou contar um episódio que aconteceu, que ainda não contei para ninguém: alguns meses antes da morte do [arquiteto Oscar] Niemeyer, fui visitá-lo. Lá pelas tantas, ele virou para mim e disse: “Betto, estou tendo aulas de cosmologia com um grupo de amigos por meio de um físico, que é professor, e vem ao meu escritório dar aulas. Estou gostando muito”. E eu publiquei um livro aqui no Brasil traduzido também em Cuba chamado A Obra do Artista – Uma Visão Holística do Universo, que trata de astrofísica, cosmologia, etc. Fidel leu e gostou dessa obra. A partir dali, ele ficou interessadíssimo em cosmologia e passou a ler sobre Big Bang, buracos negros. Enfim, em janeiro contei de uma cena sobre cosmologia que vi no filme A Teoria de Tudo e aproveitei para questioná-lo: “Comandante, várias vezes as pessoas me perguntam se o senhor é cristão ou é ateu, mas eu sempre respondo que eu acho que o senhor é agnóstico”. Ele respondeu, rindo: “Está bem, está bem”, deixando essas reticências.
É possível dizer que a Igreja compreendeu a mensagem que o senhor passa em Fidel e a Religião? À época da publicação, houve críticas quanto à associação entre o Evangelho e o socialismo.
Jesus e Marx eram judeus e, portanto, a estrutura de pensamento dos dois é tributária da Torá hebraica. Se você fizer uma analogia entre os grandes referenciais do judaico-cristianismo e os do marxismo, vai ficar perplexo. Para o judaico-cristianismo, no início da humanidade havia um paraíso. Para Marx, havia uma sociedade comunista primitiva. Para o judaico-cristianismo, o pecado original rompeu a harmonia desse paraíso. Para Marx, a alienação rompeu com aquela sociedade. O resgate disse se fará ao longo da história humana, concordam as duas formas de pensamento. Quem é o protagonista para o judaico-cristianismo? O pobre. No marxismo, esse papel é do proletariado. Por fim, a perspectiva de futuro do marxismo é a sociedade comunista. Para o cristianismo, o reino de Deus, que para Jesus Cristo é lá na frente e não lá no céu, claro, sem negar o céu. É impressionante como os dois coincidem. Como religioso, vivo em uma sociedade socialista. Esse convento onde estamos é uma microssociedade socialista. Toda a prática de Jesus foi de partilha dos bens da vida e dos frutos do trabalho humano. Então, me custa entender como um padre ou um bispo pode ser antissocialista. Se eles estão se referindo aos modelos socialistas históricos, tudo bem, mas também não vamos condenar o socialismo por esses modelos. Seria o mesmo que culpar a Igreja Católica pela Inquisição. O que inspira a proposta da igreja cristã é algo muito saudável, que é o Evangelho, onde Jesus Cristo faz, por exemplo, a partilha do pão, do vinho, a chamada multiplicação dos pães que, na verdade, não foi uma multiplicação, mas uma partilha. Assim, eu diria que o socialismo é o nome político do amor.
Fidel Castro costumava dizer, quando motivado a falar sobre religião, que os cristãos formaram uma aliança com os revolucionários durante o processo de Sierra Maestra. O senhor reafirma isso na obra de 1985. Hoje, a relação entre o Estado cubano e a igreja cristã na ilha mantém essa solidez?
Sem dúvida. As igrejas protestantes sempre tiveram excelentes relações com a revolução, embora tenham origens norte-americanas. A Católica não seguiu o mesmo caminho, porque sua origem é da corrente franquista da Espanha, da ditadura de Franco. Houve conflitos. Um padre teve a imbecil ideia de instituir a chamada “Operação Peter Pan”, que levou 14 mil crianças para os Estados Unidos debaixo do argumento de que as famílias iriam perder o poder sobre elas para o Estado. O resultado disso foi uma catástrofe, porque esse padre achou que a revolução não iria durar, que as crianças voltariam para Cuba. Mas elas jamais retornaram. São 14 mil crianças cubanas que cresceram nos Estados Unidos sem pai nem mãe. Algumas delas deram certo por lá, mas outras não. Hoje – e acho que o livro teve um papel importante – as relações entre revolução e Igreja Católica são excelentes. Tão assim que, quando se trata da liberação de presos políticos, a mediação tem sido do cardeal Jayme Ortega, de Havana. O Estado confia a ele a questão de se entender com países, como a Espanha, para soltar esses prisioneiros. O último ato foi essa reaproximação entre Estados Unidos e Cuba.
Os incentivos da Igreja cubana foram determinantes para a mobilização do papa Francisco ou foi o inverso?
As duas coisas. O papa jamais faria qualquer coisa em Cuba sem a anuência da Igreja do país. Possivelmente, Miguel Díaz-Canel, vice-presidente de Cuba, que representou o governo cubano na posse do papa Francisco e teve uma conversa privada com ele, tocou nesse assunto durante o encontro.
O mesmo se pode dizer com relação a outras religiões?
Ignácio Loyola Brandão bem definiu Cuba: “uma Bahia que deu certo”. O que predomina lá é um sincretismo entre cristianismo e candomblé que, na ilha, tem o nome de “santería”. Inteligentemente, a Revolução nunca considerou o candomblé uma religião, mas um folclore, porque seria um choque para o povo. Até alguns funcionários do partido se referiam aos pais e mães de santos e não havia preconceito em relação a isso. As igrejas protestantes – e falo das históricas, como a Luterana, a Metodista, entre outras – como eu disse, sempre tiveram excelentes relações com os revolucionários.
Alguns analistas sociais argumentam que a retomada de relações entre Cuba e Estados Unidos levará a uma imersão do capitalismo na ilha. Qual a validade desta “profecia”?
Depende de como Cuba conduzir o processo. O cubano normal está apreensivo: de um lado, é importante essa reaproximação, até porque existe um milhão de cidadãos de Cuba nos Estados Unidos, ou seja, mais de 10% da população do país. De outro, vai melhorar a vida dessas pessoas, porque a tendência é que o bloqueio econômico também acabe. Hoje Cuba recebe três milhões de turistas por ano e contabiliza essa atividade como a segunda principal do país, só atrás do envio de médicos para o exterior. A previsão é que outras três milhões de pessoas provenientes dos Estados Unidos visitem a ilha, porque, com duas horas de voo, o norte-americano sai de -20º no inverno para 20º nas praias despoluídas do Caribe. Isso vai marcar o encontro entre o consumismo dos Estados Unidos com a austeridade de Cuba. O governo cubano está tomando uma série de providências para evitar o que aconteceu na China, em que o governo é socialista, mas a economia, capitalista. Se vai conseguir, só o futuro dirá.
Quais medidas, Frei?
Já há investimentos estrangeiros em Cuba, como os canadenses, os ingleses, a rede hoteleira espanhola, mas tudo com 51% de posse cubana e 49% para o estrangeiro. Mas não haverá cadeia de McDonald’s. Vão acabar com as duas moedas também [Cuba tem o peso para os cubanos e o CUC para os turistas].
Fidel falou pouco sobre essa reaproximação…
Ele não quer tirar a autonomia do irmão, que agora é chefe de Estado de Cuba. É uma atitude respeitosa em relação ao irmão. Para mim, ele deixou claro que esse diálogo é importante, mas os Estados Unidos ainda são inimigos. “Eu espero que Barack Obama não mude apenas os seus métodos, mas mude também seus objetivos”, disse-me ele.
Há uma adesão popular à revolução em Cuba suficiente para manter a ideia de socialismo vigente por um longo tempo, mesmo com os inevitáveis ajustes econômicos?
Posso comprovar isso em dois fatos: primeiro é a resistência desse povo em quase 60 anos. Segundo: a heroica maneira como esse povo aguentou os anos do “período especial”, entre 1990 e 1995. O socialismo em Cuba está consolidado, tenho certeza. O cubano não quer voltar ao capitalismo. Recentemente, um deles me disse: “Betto, não quero que o futuro de Cuba seja o presente de Honduras”. Isso diz tudo. Lá não tem máfia de drogas, famílias nas ruas, criminalidade. Lógico que tem prostituição, um roubo aqui e outro ali, mas qualquer turista pode sair às ruas de Havana às 2 horas da manhã repleto de joias por que o risco de um roubo é mínimo. Não vou dizer que é zero, porque não existe isso.
Deixando o assunto Cuba, mas ainda na América Latina. A Igreja na Venezuela está dividida entre apoiadores e opositores do presidente Nicolas Maduro, algo que tradicionalmente não acontece. Esse racha é um sinal de que o país vive uma crise mais complicada?
Não acho que seja uma crise mais complicada, mas a Igreja está em uma divisão ideológica, não institucional. Houve isso no Brasil durante o golpe de 1964: a CNBB ficou ao lado dos militares oficialmente e depois reconheceu o erro. Isso aconteceu em outros países que passaram por regimes militares, como Argentina, Chile, Uruguai. Não me surpreende que esteja acontecendo também na Venezuela. Acho que eles estão enfrentando as tensões próprias de um país que foi governado durante décadas por uma burguesia altamente corrupta que governava em Caracas, mas passava os fins de semana em Miami e roubava as exportações de petróleo. Hoje a Venezuela está tomando um rumo próprio, autônomo, independente e se emancipando das garras dos Estados Unidos. É lógico que cria problemas, mas não vejo uma tensão acima do normal.
Fidel Castro manifestou preocupação com a Venezuela?
Pelo ao contrário: eu demonstrei preocupação, e ele disse: “Fique tranquilo por que o regime do Nicolás Maduro está consolidado”. O contato entre eles é frequente. Maduro, assim como Chávez, vai muito a Havana.
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