Depoimento: brasileira dá seu relato sobre Paris

Mulher deixa flores em frente local atacado por terroristas, em Paris. Foto: Reprodução/lemonde.fr
Mulher deixa flores em frente local atacado por terroristas, em Paris. Foto: Reprodução/lemonde.fr

Dia 0

A noite estava tranquila, a vida seguia seu curso, uma sexta-feira qualquer, sábado os adolescentes têm aula no colégio, é dia de compras, de faxina. As 22h minha filha me diz que estão ocorrendo atentados em Paris. Postaram no Facebook dela. Atentados? Onde? Num restaurante do 11e arrondissement, na casa de shows Bataclan, no estádio de futebol. Começam a chover mensagens, de texto, messenger, whatsapp, o Brasil me ligando antes mesmo da França. Mas o que está acontecendo? É hora de ir dormir, amanhã temos aula. Meu filho me diz que seu amigo está com a família no Stade de France. E os outros?

Nossos parentes, vizinhos, colegas de trabalho? Quem pode ter ido a um concerto de Metal Music hoje? Ligamos o rádio, é cedo demais para querer colocar imagens nisso. Fala-se em 18 mortos. Testemunhas contam o que veem de suas janelas de frente para o Bataclan. Os terroristas ainda estão lá dentro.

Ouvem-se explosões. Policia, bombeiros, ambulâncias. O presidente Hollande vai falar com a nação. Ouve-se lágrimas contidas na sua voz. A hora é grave. Decreta-se estado de urgência e fechamento das fronteiras. Os mortos agora não são mais 18, mas 40, logo 45. Alguém que escapou do Bataclan conta chorando que todos estavam deitados no chão, mas os terroristas continuaram atirando. Sangue e cadáveres. Terror. Nas mesas dos cafés, nos restaurantes, onde a juventude se diverte. Ali mesmo, onde eu e você poderíamos estar nessa sexta-feira.

Dia 1
O dia amanhece, apesar de tudo. As ruas estão vazias. Precisamos saber o que aconteceu. As escolas e todos os estabelecimentos públicos estão fechados. A ordem é não sair de casa, apenas em caso de urgência. Aos poucos, homens e mulheres aparecem nas calçadas. No rádio, as informações continuam. Os mortos não são mais 45, mas 120. E há muitos feridos, 300. A população está proibida de se juntar nas ruas. Mas tenho que sair. Comprar comida. Tenho adolescentes em casa, e adolescentes comem muito. Saio tal um herói para o campo de batalha. Na rua, estamos todos iguais, meio mal vestidos, meio descabelados, mas de pé. Sinto-me vulnerável e percebo como a tentação da suspeição pode nos ganhar facilmente. Olhamos para o outro desconfiados. O inimigo pode estar entre nós. No supermercado me dizem que hoje não posso deixar meu carrinho, que tenho que levá-lo comigo. Meu carrinho é suspeito. Na loja de queijos paro e penso: nada tira dos franceses o seu gosto pela boa mesa. A resistência está na escolha entre um chèvre ou um camembert. Entro no café para estar com meus pares. Um homem lê o jornal atentamente para escapar da torrente contínua e superficial do que se diz na TV. Outro conta ao garçom que em Montparnasse, às 23 horas, seu patrão fechou a brasserie e pagou para todos os empregados um táxi para voltarem para suas casas. “Foi gentil da parte dele, pois entre Montparnasse e Drancy pode dar 50€.” As boates, os bares, as casas noturnas ficaram vazias. Tudo ontem à noite ainda podia acontecer.

E hoje? O garçom se inquieta, o que é esse saquinho no balcão? São meus queijos, não se preocupe, digo, e saindo, desejo a todos coragem. Ouço um intelectual no rádio precisar que não é uma guerra comum, entre exércitos, mas uma guerra contra criminosos. Talvez seja este o cúmulo do horror: uma guerra sem código, sem honra, sem limites. Sinto saudades da cavalaria e de sua correlata valentia, cortesia, nobreza. Mil anos se passaram. Em janeiro, três símbolos foram atacados, eles tinham nome: a liberdade de expressão, a polícia, a comunidade judaica. Hoje, a vitima é anônima e aleatória. Eu e você. O sentimento de dor do início do ano foi substituído por um efeito da loucura : a sideração. Busco no dicionário os sinônimos. Siderar: aniquilar, atordoar, aturdir, estarrecer, fulminar, paralisar. Estamos assim: siderados. Mas temos que acordar, mesmo que isso não seja um pesadelo. Não vamos suspender as eleições regionais nem a COP 21. Não vamos ceder a um surto psicótico que assola a humanidade. Não cairemos na tentação de suspeitar de cada barbudo, pois aquele que vem vindo ali está de braço dado com uma senhora velhinha e branca que se apóia em seu braço para poder caminhar. Vamos tomar um bom vinho, comer um bom queijo e continuar.

*Adriana Komives, brasileira de origem húngara, 51 anos, 31 em Paris onde estudou cinema e exerce desde então as profissões de montadora e roteirista. Consultora em montagem de documentários nos Ateliers Varan, la Femis, DocNomads, ensina o ofício de montagem no Institut National de l’Audiovisuel e roda o mundo trabalhando em oficinas de realização documentária.


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