A despedida do campo de refugiados Chamischku, no Iraque

IMG_5970
Voluntário da associação alemã Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner (Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner), Nascimento está em Zahko, no Iraque, há quase duas semanas.

Reinaldo Nascimento escreveu este relato nesta madrugada e confessa estar cansado. Mas faz um desabafo e pergunta: “Por que a violência no Brasil é sempre comparada com países em guerra? Por que o Jardim Ângela, em São Paulo, onde moro, já foi considerado o bairro mais perigoso do mundo?”

Voluntário da associação alemã Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner (Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner), Nascimento está em Zahko, no Iraque, há quase duas semanas. Ela está em missão em campos de refugiados. Está lá para atender crianças e adolescentes vítimas de traumas da guerra. 

Zahko fica perto de Mossul, cidade capturada pelo Estado Islâmico em 2014, que é a peça mais importante no califado que o grupo terrorista tenta implantar com a ocupação e consequente eliminação de fronteiras de parte da Síria e do Iraque.

Campos de refugiados crescem aceleradamente na região. Entre as vítimas do conflito, milhares de crianças e adolescentes que sofrem opressões étnicas, vivenciam a guerra e são torturados.

Reinaldo Nascimento, 38 anos, nascido em São Paulo, é o único brasileiro dessa equipe no Iraque. A associação Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner atua em campos de refugiados em regiões de conflito e em locais que passaram por grandes desastres naturais.

Cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, ele hoje conta como foi a sua despedida do campo Chamischku. Segue mais um relato do diário Pedagogia de Emergência.

14 de novembro de 2016.

Rojar me fez uma pergunta. Queria entender melhor a diferença entre how much e how many? Expliquei umas duas vezes até ele me dizer que tinha entendido. Antes de partir, ele me encara para dizer alguma coisa e sai um OOOBRRRRIGADOOOOO. Eu tomei um susto! Mais um susto bom! Respondi  De Nada. Mais uma encarada e ele me diz: “Você se esforça tanto para aprender o nosso idioma. Você não precisa fazer isso e eu queria retribuir!” Dei-lhe um abraço e fomos para o campo juntos!

As crianças no campo já são mais exigentes em relação ao meu curdo. Maia não me dá um dia de folga. Chego ao campo e ela já corre para saber quantas palavras novas eu aprendi. Fico nervoso na frente dela, mas para hoje eu tinha me preparado bem. Perguntei a idade dela. Disse que eu estava feliz, que era brasileiro, que tinha uma mãe, um pai, uma irmã e um irmão bem mais novo do que eu. Ela me olha e diz. “Muito bem, mas amanhã quero o dobro do que me trouxe hoje!” Caramba, Maia, já sei contar até mil. Ela me olha mais uma vez e me diz. “Quem precisa saber contar tanto?” 

Maia, Maia! 

Com as crianças do campo Chamischku, hoje foi o meu ultimo dia. Nos próximos dias, estarei no Campo Berseve I. Queria ter visto o meu pequeno-grande Halkan, mas me disseram que alguém de sua família se casou e, como a festa foi a noite inteira, ele devia estar dormindo ainda.

Um garoto de mais ou menos 11 anos chegou chorando no final do nosso trabalho. Fomos ao seu encontro e o problema é que ele tinha caído numa poça com água de esgoto. Estava cheirando muito mal. Impressionante foi ver como o time todo se mobilizou. Dois educadores foram ao seu encontro, outros dois foram preparar o banheiro. O caseiro, pegou a chaleira elétrica e começou a esquentar água. Foi lindo mesmo! Num certo momento, o garoto começou a sorrir e disse que já estava limpo. É disso que precisamos. Dessa atenção. O garoto poderia ter ido para sua casa, mas foi ao nosso encontro… 

O almoço é sempre no mesmo restaurante. E há sempre um homem que serve os pratos com os nossos pedidos. Hoje pedi um arroz que ainda não tinha visto. Ele me olhou sério e me perguntou por que eu queria mudar hoje? Mudar o quê? Não entendia a pergunta. Ele disse que, desde que cheguei, sempre pedi arroz branco, feijão, legumes e salada. Eu lhe mostrei o meu prato e ele me disse que eu sempre comia arroz branco, e não aquele com macarrão.

A verdade é que eles prestam atenção em tudo! Ele me disse que eu sempre bebia o chá sem açúcar e que isso não era bom para mim, pois sem açúcar vou ficar fraco, eu deveria comer carne também… Ele sabe que sou brasileiro. Ele gosta muito do nosso trabalho!!!

À noite, Minka e eu voltamos para a campo para trabalhar com os professores. Eles estavam mais soltos. Fizemos uma dinâmica e quase todos participaram. Alguns ainda acham muito estranho começarmos o seminário com uma atividade rítmica ou artística.

“Trauma é pior do que á morte!” “Minhas pernas pararam de funcionar.” “Tive vergonha de ser quem sou por não poder ajudar quem eu mais amava!” e por aí vai… Eu, na frente daqueles professores. A maioria já cansada por causa do dia cheio, do cheiro forte do lixo que ainda continua sendo queimado… 

Apesar de tanto sofrimento, a noite foi bem produtiva. Para muitos, era a primeira vez que ouviam que tudo aquilo que sentiram ou que ainda sentem é normal. Dor de cabeça, dificuldades de se concentrar, medo de dormir, pesadelos, pressão alta, agressividade, falta de paciência, de apetite. Muitos falaram sobre suas crianças e se desesperam por saber que a volta para suas casas é uma pergunta ainda sem resposta. 

Como eu gostaria que o Brasil cuidasse melhor das nossas crianças. O Brasil precisa deixar de ser covarde. Precisa mesmo parar de tirar de quem não tem. Hoje eu gostaria de dizer ao senhor Brasil que o pior trauma é aquele causado por quem deveria nos proteger. Sempre ouço que no Brasil não há guerras, não há terremotos, tsunamis. Que somos um País abençoado por Deus. 

Pergunto-me então porque a violência no Brasil é sempre comparada com países em guerra? Por que o Jardim Ângela, em São Paulo, onde moro, já foi considerado o bairro mais perigoso do mundo? A quantidade de abusos com mulheres e crianças no Brasil é alarmante.  Quando ouço as histórias de outros educadores que trabalham diretamente com moradores de ruas, principalmente crianças, vejo muitas diferenças sim, mas não me sinto confortável, pois sei que nenhuma criança do mundo precisaria viver nas ruas.

No Brasil as coisas estão ficando crônicas e olha que temos um estatuto da criança e do adolescente. Sei que estou cansado. Aqui já passa da meia-noite e corro o risco de não me expressar corretamente. 

Mas gostaria de enviar um forte abraço a todos os educadores brasileiros. Todos que trabalham com crianças e jovens e adultos. Aos meus companheiros da Pedagogia internacional que estiveram em Gaza, ao time que está deixando o Haiti agora e aos meus colegas brasileiros que juntos acabamos de fundar a Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil. 

Estamos fazendo o que podemos para cuidar melhor dos nossos traumas brasileiros. À minha família, que nunca deixa de me dizer o quanto sou doido e sempre entra em desespero, mas que nunca deixou de me apoiar. À minha companheira que sabe da importância deste trabalho na minha vida, mas que sempre me lembra dos cuidados que tenho que ter comigo mesmo (ela me diria agora que eu já deveria estar dormindo!!!!).

Que esta lua enorme com toda a sua luz ilumine todos os campos de refugiados do mundo, inclusive aqueles campos que não são oficialmente reconhecidos. No Brasil, há um monte deles. Em São Paulo, nas ruas da minha cidade também há um monte desses campos. 

 

Um abraço cheio de fumaça, 

Reinaldo Nascimento


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.