Foi uma visita de surpresa, sem agendamento prévio. Mas José Pepe Mujica, o homem que presidiu o Uruguai de 2010 a 2015 e continua amado por muitos devido à sua racionalidade simples, me recebeu em sua própria casa. Mas, antes de travarmos esse encontro, pedalei um tanto. Saí de Montevidéu em um sábado com Cinthya Vecchio, que me guiou até a horta comunitária Interior Profundo, instalada no bairro de Pajas Blancas, a uns 15 km do centro, que também funciona como estação de descanso para turistas. Lá, conheci Gabriela Campos, idealizadora desse projeto, e comentei que tinha planos de ir à casa de Mujica no dia seguinte. Foi ela quem me deu orientações sobre o caminho.
Na manhã seguinte, às 6h30, eu já pedalava pela estrada de terra que me levaria até o ex-presidente do Uruguai. Não foi tão fácil chegar, tivemos de pedir informação e, mesmo assim, Cinthya e eu nos perdemos um pouco. Mas conseguimos.
Na porta da casa de Mujica tem uma guarita ocupada por um segurança aparentemente desarmado. Sua função é controlar a entrada e saída de pessoas, carros e bicicletas. Assim que nos viu, ele veio em nossa direção. Disse que sou um admirador de Mujica e logo ele me deu sinal verde para avançar, adiantando que teríamos de esperar um pouco. Mujica estava trabalhando, colhendo tomates, e havia outras pessoas querendo conhecê-lo. Era um grupo de russos.
Esperamos uma hora mais ou menos. De onde estávamos, conseguíamos ver o movimento tranquilo de outros moradores da região. Poucos carros circulavam, mas um me chamou a atenção. Era um Fusca azul petróleo. Poderia ser Mujica quem estava no volante. Não era. O piloto, um homem de meia-idade, usando óculos e camiseta regata, nos cumprimentou com um sorriso. Percebemos que ele era o outro segurança, ia render o colega. Fui até a guarita e puxei conversa. Queria saber se o Fusca era de Mujica. Tinha sido, agora era do segurança, um presente do ex-presidente.
Fomos chamados para entrar, nós e os russos. Mujica nos cumprimentou com um aperto de mão. Lucía Topolansky Saavedra, sua mulher e senadora, cortava legumes na cozinha. Um dos russos entregou um presente para eles. Era um alimento, que Mujca experimentou usando as mãos sujas de terra. Depois falou: “Me sirvo con las manos sucias porque acá están las vitaminas necesarias”.
Mujica queria retribuir a gentileza com doce de leite, mas não havia. Então, Lucia entregou um pacote para o russo e Mujica explicou que era um queijo uruguaio, de fabricação nacional. A marca é Conaprole. O russo disse que o Uruguai é um país tranquilo, com pessoas amáveis. “Uruguay es un país tranquilo porque hay nueve millones de vacas y tres millones y medio de personas, por eso es calmo, hay mas vacas que personas”, disse Mujica.
Os russos foram embora e ficamos nós. Falei sobre o documentário e pedi permissão para gravar um depoimento dele, sobre a percepção de Mujica com relação às bicicletas e a importância desse meio para a sociedade. Ele pensou um pouco e começou a responder sem grandes pausas. A seguir, reproduzo o que ele disse.
“Quando jovem, eu fui ciclista desportivo. A bicicleta, de acordo com as leis da física, é uma máquina muito completa no sentido de que transforma os movimentos maiores do que a força que recebe. E creio que ela cumpriu um grande papel histórico de comunicação, particularmente nas cidades menores e para os seus povoados. E hoje com uma tendência que o trabalho seja cada vez mais intelectual e mais mental, a bicicleta pode ser um complemento quanto à saúde das pessoas em seu uso.
O grande inconveniente que tem é que vivemos em um mundo invadido pelos carros. Estamos construindo cidades que são verdadeiros disparates, megalópoles, que por suas dimensões se transformam em uma selva perigosa, multiplicam a violência. Onde as pessoas demoram três, quatro horas por dia para chegar ao trabalho. É o cúmulo dos disparates, havendo território, não fazer cidades de dimensões humanas, com mais convivência, onde a bicicleta deveria ser o transporte número um.
O que está complicando para a massificação da bicicleta são as dimensões das cidades e os disparates de carros. Dizendo isso unimos o urbanismo, que dediquemos um urbanismo que ajude as pessoas a viverem mais felizes. Mas a pressão dos interesses imobiliários em todas as partes é a que está pautando pelo crescimento desmesurado de uma grande cidade. E assim vemos o desaparecimento da população dos campos, que também é um fenômeno penoso.
Como vemos, a bicicleta poderia ocupar o espaço de primeiro veículo de comunicação dos homens perfeitamente, se nos amparássemos por dimensões humanas. O homem sempre tratou de ter um transporte. O cavalo foi um velho amigo e foi muito explorado como também outros animais. Mas a bicicleta cumpre uma racionalidade na vida de hoje e até incomparável, porque ainda ajuda dentro de certos limites um melhor estado de saúde, não contamina, não multiplica os problemas do ar, é simples, de fácil manutenção e pode se acoplar a qualquer outra forma de transporte como forma secundária. É difícil sonhar com um trem que leve um carro, mas é totalmente possível um trem levar uma bicicleta, para que as pessoas possam se locomover depois, em trajetos mais curtos.
E começar a prescindir dos carros é um salto civilizatório fenomenal. Que as novas gerações possam entender isso. Que os futuros arquitetos, engenheiros lutem por uma urbanização distinta e, sobretudo, que não deixe se dominar pelo mercado. Se o mercado estabelecer nossas pautas civilizatórias, estaremos condenados a ser infelizes. A única liberdade que podemos ter é a que não se toma (ele aponta para dentro da cabeça), mas isso requer muita vontade em uma época em que as pessoas estão rodeadas por uma invasão cultural determinante que tenta transformá-lo em um consumidor e um comprador compulsivo que gaste toda a sua vida trabalhando e comprando coisas novas e pagando parcelas até morrerem. Esse tipo de civilização não pode ser mantido.”
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