A Europa no labirinto

A possível existência de um déficit democrático nas instituições comuns europeias, nos processos de decisão e gestão, está sobre a mesa de debates desde muito antes de se instaurar a crise de endividamento que afetou fortemente alguns dos países do bloco. O projeto europeu de integração é único em todos os aspectos que o compõem, desde as condições históricas que o tornaram possível até os níveis de união entre Estados a que chegou. Coerente com essa trajetória, a crise do euro, mesmo se reproduzindo elementos de outras crises financeiras, de endividamento já conhecidas, tem características inéditas. Sem considerar suas causas inicialmente, sua negociação e seu equacionamento envolvem um grupo de países desiguais, estruturas supranacionais e uma instituição multilateral.

Jean Monnet, um dos pais fundadores da integração europeia, escreveu em suas Memórias, publicadas em 1976: “Eu sempre pensei que a Europa se faria nas crises, ela seria a soma das soluções encontradas para estas crises”. Em 2010, os euro-otimistas de plantão podiam dizer que havia chegado o momento da grande prova do euro e que, passada a crise, as instituições europeias teriam o benefício do aprendizado de ter gerido e vencido a turbulência e a moeda única retomaria seu espaço no sistema internacional revigorada. No entanto, se Irlanda, Portugal e Espanha lograram sair dos estágios mais críticos de endividamento – com os custos econômicos e sociais envolvidos em ajustamentos semelhantes –, o mesmo não aconteceu com a Grécia, depois de cinco anos de uma política extremamente dura, que levou o desemprego a 25% e o PIB a encolher 50%.

Desde o início da crise, pareceu que se havia chegado ao limite da deterioração das condições de crédito e de dificuldade de negociação entre o país e seus credores – representados pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional (FMI), a famosa ‘troika’. Mas o processo político é mais dinâmico do que está previsto nos calendários de reembolso de parcelas de dívida.

A população grega deu uma evidente sinalização de esgotamento frente à situação quando elegeu o Syriza, um partido de esquerda, em janeiro de 2015, com maioria para governar o país, com base em uma plataforma claramente contrária às políticas de ajuste em vigor até o momento.

Em 5 de julho de 2015, diante da incapacidade de honrar compromissos vencendo junto ao FMI e a vencer em breve junto ao BCE e de sucessivos impasses na negociação com o grupo de Ministros de Finanças da zona do euro (Eurogrupo) de um plano de ajuste para reescalonamento da dívida, a população grega, em referendo, disse em voz alta não à continuidade das políticas dos últimos anos.

Qualquer tentativa de previsão dos acontecimentos a partir de agora pode ser temerária. Se eu fosse grega, teria sofrido muito para decidir entre o sim e o não. O trágico quadro econômico grego e as fissuras que expõe no projeto europeu precisam ser pensados com cuidado e nenhuma resposta direta me parece dar conta da amplitude do problema. Por isso, vão aqui coletadas algumas peças que pertencem ao tabuleiro, correndo o risco de ainda deixar o jogo incompleto.

Limites sobre a dívida pública e possíveis irresponsabilidades. A mais conhecida regra para a integração monetária europeia é a chamada Pacto de Estabilidade e Crescimento, que dispõe sobre os limites que os países membros devem observar com relação ao déficit público (teto de 3% em relação ao PIB) e à dívida pública (limite de 60% do PIB da dívida bruta do governo central). Vários países do bloco estiveram fora destes limites por longos períodos e houve, tradicionalmente, certa dificuldade política para punir e disciplinar os frequentes casos, que envolveram também economias mais ‘fortes’, do ‘norte’ da Europa.

Mesmo antes da crise de 2008, discutia-se possíveis reformas no Pacto, os critérios para definição dos limites, alguma flexibilização. O fato é que o equilíbrio fiscal é um requisito indispensável para a sobrevivência do bloco monetário. Se os sócios, ao adotarem a moeda única, transferem a autonomia sobre sua política monetária para uma entidade supranacional, não têm como financiar-se emitindo esta moeda. Se o Estado precisa de dinheiro, deve tomá-lo no mercado, ou seja, endividar-se. Um Estado muito endividado, para continuar funcionando bem, depende que o mundo aceite continuar a financiá-lo. Quando sua capacidade de pagar diminuiu, a credibilidade na sua moeda desmorona. Porém, se essa é a moeda de outros 18 países, a coisa fica muito mais complicada.

Por que e como a dívida da Grécia cresceu tanto? Em poucas palavras, porque viveram anos além de suas possibilidades, porque adotaram políticas econômicas ‘frouxas’ e permitiram artifícios contábeis, como se o passaporte europeu pudesse garantir a segurança para todo o sempre, e ainda porque, com a crise financeira global, todos os governos gastaram mais para combater a recessão, o dinheiro ficou mais escasso, os investidores mais avessos ao risco e o resto que se segue.

Ficam as perguntas, que vêm de parte dos 32% dos gregos que votaram ‘sim’, de parcela dos contribuintes alemães, de onde saíram recursos para financiar a Grécia, de partidos europeus de centro-direita, de Mme. Lagarde, diretora-gerente do FMI e ex-Ministra da Economia no governo Sarkozy, no posto em 2010 quando tudo se complicou: É certo salvar quem agiu com irresponsabilidade? O apoio à Grécia não seria um sinal para que outros países se sintam confortáveis para adotar políticas semelhantes? Aí estaríamos diante de um problema de risco moral (moral hazard): os devedores se engajam em posições arriscadas porque sabem que alguém vai salvá-los em caso de quebra.

Salvar quem? Com frequência tem sido lembrado que o salvamento à Grécia é, em última análise, um salvamento às instituições financeiras europeias credoras da Grécia. Vendo sob outro prisma, a resistência à renegociação da dívida grega por parte do BCE – perdão de parcela dela, por exemplo – pode ser interpretada como uma ação para proteger os bancos dos demais países da zona do euro, especialmente alemães e franceses. Sim, mas não é tão simples. De fato, os novos empréstimos vão para cobrir as dívidas e assim impedem uma crise sistêmica que teria efeitos profundos sobre a UE e contagiaria a economia mundial.

Como salvar? O referendo perguntou especificamente se os gregos apoiavam o programa de ajustamento em negociação com o Eurogrupo, no qual se previa redução de aposentadorias e elevação de impostos. Medidas semelhantes já foram implementadas e levaram aos resultados que conhecemos. O governo grego propôs o referendo com o intuito de receber o apoio da população para negociar um programa menos duro. É possível?

Usando um raciocínio linear, se alguém tem uma dívida, o único jeito de pagá-la é gastando menos e recebendo mais. Mas o resultado direto dessa política nem sempre é o esperado, por diversas razões, entre as quais porque o governo recolhe menos impostos quando a economia não cresce. O que fazer, então? Continuar no ajuste enquanto for preciso e pagar a conta ou achar outro caminho. A dívida grega de 323 bilhões de euros é impagável, a ‘troika’ sabe disso. Outro caminho seria perdoar a dívida, ou parte dela, e dar condições para que o país se recompusesse, o que significa dar liquidez aos bancos gregos e algum espaço para as finanças públicas. Voltamos ao problema do risco moral.

Uma vez unidos… Ao longo dos últimos cinco anos, quando se discute os prováveis desfechos dessa crise, é inevitável considerar a alternativa da saída da Grécia da zona monetária. Alguns defendem um euro no futuro próximo formado por grandes economias, ficando todas as demais na União Europeia com suas moedas. Mas a saída de um país do bloco monetário parece ser mais complexa do que as considerações operacionais levariam a crer. Esta talvez seja uma das mensagens mais eloquentes do referendo de 5 de julho.

A dificuldade está não apenas em apoiar a reorganização da economia grega com a volta de uma moeda nacional, mas sim em estabelecer critérios dentro da UE a partir dos quais casos semelhantes seriam tratados a partir de agora, além dos profundos entraves políticos. Para a Grécia, a reconstrução seria hercúlea, com o perdão do ‘trocadilho pronto’. No entanto, uma moeda nacional poderia ser desvalorizada para estimular as exportações e evitar a deflação (lembremos-nos da Argentina em 2001-02).

Quebra cabeças político. Não são apenas questões econômicas que dificultam uma eventual decisão da UE de sugerir à Grécia que deixe a união monetária ou mesmo o bloco regional. Há muito mais! No equilíbrio entre Alemanha e França, as ‘locomotivas’ políticas da Europa, uma saída da Grécia poderia fazer a balança pender muito mais para o lado germânico, pois atenderia aos anseios da coalizão doméstica da qual faz parte Frau Merkel. François Hollande anunciou ainda no domingo à noite que preferia que a Grécia ficasse.

Para os outros países membros do bloco, também fortemente atingidos pela crise e nos quais o descontentamento social é crescente, como Espanha e Portugal, o acontecido na Grécia tem extrema importância. O novo partido de esquerda espanhol Podemos, nascido a partir do movimento 15M – batizado marcando a manifestação de 15 de maio de 2011 que deu origem a amplas mobilizações populares no país –  pronunciou-se efusivamente antes dos resultados finais do referendo grego, o que também fez a extrema direita francesa (Front National, por sua presidente Marine Le Pen). Em suma, quanto mais se radicalizarem as posições em países europeus, maior o perigo de instabilidade política no bloco.

Para completar, uma Grécia excluída do bloco europeu, no meio do continente e de quem a Rússia busca se aproximar seria uma situação indesejada para a UE, especialmente em tempos de conflitos na Ucrânia e outros mais.

No dia seguinte. Como disse acima, seria fantasioso imaginar o quadro todo daqui a um mês. Ânimos um pouco mais acalmados, voltam as negociações e surgem sinais de concessões. Ou não? Encontro entre França e Alemanha, cúpula europeia marcada, demissão do Ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis. 

Se um membro da zona do euro sair, o precedente está aberto. O recado de que os efeitos explosivos de políticas inconsistentes não deverão ser sempre resolvidos com o apoio do bloco estará dado.

Com ou sem euro, possivelmente as próximas três gerações gregas ainda vão pagar muito caro por esta crise, que certamente não perceberam se preparar.

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Economista, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo


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