As faces da revolução cubana por um burguês curioso

Trecho de Memórias do Subdesenvolvimento - Foto: Reprodução
Trecho de Memórias do Subdesenvolvimento – Foto: Reprodução

Havana não é uma cidade comum. A capital de Cuba, a alguns quilômetros de Miami, também faz parte do imaginário. O escritor norte-americano Ernest Hemingway a escolheu para viver a maior parte de sua vida e, até a década de 1950, muitos de seus compatriotas se divertiram em hotéis e prostíbulos luxuosos da cidade. Para os cubanos, a melhor recordação, porém, é a entrada triunfal do exército revolucionário, liderado por Fidel Castro, em 1º de janeiro de 1959, que sem disparar nenhum tiro depôs o então presidente Fulgencio Batista.

Delimitar a coexistência dessas cidades distintas em Havana é o maior trunfo do diretor cubano Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) no filme Memórias do Subdesenvolvimento (Memorias del Subdesarollo), clássico do cinema político latino-americano, de 1968, que agora é relançado em DVD no Brasil pelo Instituto Moreira Salles. Em torno dessa áurea, Alea conseguiu estabelecer uma visão crítica da revolução cubana e, a partir dela, do regime que se estabeleceu em seu país. 

Havana era chamada de ‘Paris do Caribe’, pelo menos pelos turistas e putas. Agora, mais parece uma ‘Tegucigalpa do Caribe’. Não só pelo fim do El Encanto e de outras boas lojas, mas as pessoas também”

No filme, essa história é contada por meio de um personagem chamado Sergio Mendoyo (vivido pelo ator Sergio Corrieri), um burguês cubano que decide ficar na ilha depois da chegada de Fidel apenas para ver o que iria acontecer, ao contrário de sua mulher e seus pais, que fogem para Miami dois anos depois da chegada do “comandante”.

Sergio Mendoyo, além de um homem dividido, é portador de todas as impressões que o filme tem sobre Havana, seja usando uma lente instalada na sacada do seu apartamento para ver mulheres nas piscinas, os navios entrando no porto, as crianças correndo no pátio de uma escola e os carros sendo banhados pelas ondas do Malecón, seja enquanto caminha sem destino aparente pelas ruas da cidade. “Aqui tudo continua igual. Parece um cenário, uma cidade feita de desenho.” Ou ainda: “E a pomba que ia enviar Picasso? Muito cômodo ser comunista e milionário em Paris”, depois de ver uma coluna sem nenhum tipo de monumento.

Em outro momento, o protagonista lembra do incêndio do armazém El Encanto, em 1961, supostamente ordenado pela CIA, interessada em atacar o regime castrista, que havia tomado o local do poder privado. “Havana era chamada de ‘Paris do Caribe’, pelo menos pelos turistas e putas. Agora, mais parece uma ‘Tegucigalpa do Caribe’. Não só pelo fim do El Encanto e de outras boas lojas, mas as pessoas também”, diz ele em uma das cenas, comparando a cidade com a desordenada capital de Honduras, também na América Central.

Memórias do Subdesenvolvimento, baseado na obra homônima do escritor cubano Edmundo Desnoes, é uma das últimas críticas cinematográficas ao regime castrista, quando a censura do governo de Fidel era pouco intimidadora. Ainda que tenha relação direta com os temas que envolvem o período em que foi filmado, Gutiérrez Alea não os mostra de forma evidente. Fidel Castro, por exemplo, aparece três vezes na fita, mas, só em uma delas o líder da revolução surge com vigor. A cena mostra um discurso do “comandante” motivando os cubanos a lutar em Playa Girón, em 1961. Nas outras cenas, apenas fotografias de Fidel preso, depois do ataque ao quartel Moncada, em Santiago, em 1953; e outra dele já triunfante, em uma loja de aviamentos, como peça principal na vitrine do estabelecimento. O filme também passa rapidamente pela Crise dos Mísseis, em 1962 e pelo conflito frio estabelecido com a manutenção da prisão de Guantánamo, na região leste do país.

Paralelamente às impressões que faz, Sergio convive com as críticas ao regime feitas por um amigo, Pablo (interpretado por Omar Valdés), também de classe média, que decide fugir para Miami; com as estranhas recordações de sua ex-mulher, que tinha uma vida de luxo antes da revolução; de sua atração secreta pela arrumadeira do apartamento onde mora; e de sua paixão por uma atriz de 16 anos, que se mostra distante das transformações políticas e sociais que estavam acontecendo no país.

“A força do filme vem dessa relação constante entre ficção e realidade, entre o documentário e o que foi criado pelo Alea”, afirma o cineasta brasileiro Walter Salles, que comenta a obra com Eduardo Coutinho e Nelson Pereira dos Santos em um dos extras do DVD. As imagens do conflito em Playa Girón são reais, tomadas de documentários da época, enquanto as cenas que mostram um aeroporto repleto de cubanos ricos carimbando passaportes para deixar o país são feitas por atores, ainda que pareçam documentais. “O interessante é que Sergio vive entre dois mundos: ele não pertence mais a classe social que foi, mas também é incapaz de aderir a uma revolução em curso”, comenta Salles.

Interessante também é a distância ideológica entre o ator principal, Sergio Corrieri, um entusiasta da revolução (ele foi membro do Partido Comunista de Cuba na década de 1980), e do diretor, Gutiérrez Alea, um anticastrista convicto que também se exilou em Miami anos mais tarde. Alea, inclusive, teve seu visto negado para os Estados Unidos em 1973, ano em que Memórias do Subdesenvolvimento ganhou um prêmio especial da Associação Nacional de Críticos Cinematográficos dos Estados Unidos, e, assim, não pode receber o troféu em mãos.

Memórias do Subdesenvolvimento apareceu na lista dos 1000 melhores filmes de todos os tempos do jornal norte-americano New York Times publicada em 2011, dois anos depois de ter sido eleito o melhor trabalho cinematográfico latino-americano da história pelo jornal espanhol especializado Noticine. “Depois de quase dez anos de revolução, aprendemos que a nossa condição de país em desenvolvimento (explorado por quatrocentos anos pela Espanha e depois pelos Estados Unidos) não se supera a custo de muito trabalho e muitos sacrifícios. Não foi fácil chegar a esta conclusão, porque durante os primeiros anos da revolução nós realmente acreditamos que o paraíso estava ao alcance de nossas mãos”, disse Gutiérrez Alea em 1968, quando o filme foi lançado na antiga Tchecoslováquia. 

Assistir ao filme nos dias atuais – de profundas transformações no cenário político nacional e internacional de Cuba, é um exercício interessante. Desde dezembro do ano passado, relações diplomáticas foram retomadas, embaixadas foram reabertas e já há uma espécie de campanha na política norte-americana pelo fim do embargo econômico. “Temos que analisar a situação em dois tempos: em um primeiro momento, as mudanças serão apenas protocolares, principalmente porque os EUA sequer iniciaram o processo de análise do embargo econômico. Mas é um ponto de inflexão que, talvez, não tenha volta. Os especialistas chamam esse fenômeno de spill-over, que é quando uma mudança começa em um ponto e vai, digamos, transbordando para outros, como neste caso, em que a transformação se iniciou na política e pode invadir a economia, a cultura, entre outros setores da sociedade”, explica Leandro Consentino, professor de Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP). “Estamos no começo de um processo grande, em que nem os irmãos Castro nem Obama verão os resultados. No entanto, quando esse processo começa, ele ganha força própria”, finaliza ele.

 


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