O número é alarmante. 22 mil é total de pessoas que morreram desde 2000 tentando atravessar o mar Mediterrâneo. “Um número bem longe da realidade, pois são contabilizados apenas os corpos das pessoas que foram identificadas”, disse Virginie Guiraudon, socióloga da Sciences Po, instituto de ciências políticas de Paris, e pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica Francês, durante evento na Universidade de São Paulo, nesta semana. A pesquisadora compara a situação de calamidade com a conhecida Death at the Border – Morte na Fronteira, ou seja, a cruzada dos latino-americanos que tentam alcançar os Estados Unidos.
A crise política, especialmente a da Síria, acelerou os fluxos migratórios: “A guerra no país motivou a migração de mais de 4,7 milhões de sírios desde 2011”, explica Catherine Wihtol, também professora da Science Po.
Os migrantes, que, ao contrário do que supõe o senso comum, são pessoas de classe média e alta, vão à Europa em busca de um emprego, pois a Turquia, país vizinho, carece de estrutura. “Ainda assim, cerca de 3 milhões de refugiados sírios estão em território turco, alimentando o mercado negro ao não conseguir achar um emprego formal”, disse.
Turquia passou a ser o centro de controle das migrações para a União Europeia (UE), o que Catherine Wihtol descreve como “uma estratégia de reinstalação diplomática”. “Em negociações com os membros da União Europeia, o governo turco aceitou receber mais refugiados em troco de exigências como a reconsideração da entrada do país no bloco e 6 milhões de euros”, explica.
Estratégia que também foi adotada por Muamar Kadafi, ex-presidente líbio, para recolocar-se dentro das discussões europeias. De acordo com a professora, a própria queda do regime em 2011 justifica as atuais negociações com a Turquia, pois a situação de instabilidade da Líbia não permite mais que o país sirva aos interesses das políticas migratórias europeias.
Falha
“A origem da crise dos refugiados vem de uma política europeia incapaz de realizar reformas”, disse Virginie. Para a professora, a UE falhou em propor soluções à crise humanitária porque nunca questionou os acordos de Schengen, que propõem, de um lado, a livre circulação dentro do espaço europeu, e, de outro, o fortalecimento dos controles nas fronteiras. “Uma maneira de desencorajar a imigração”, explica.
Virginie destaca que muito dinheiro está sendo investido em projetos de grandes empresas no fortalecimento de segurança eletrônica nas fronteiras, em detrimento, por exemplo, de financiamento a pesquisas que poderiam encontrar soluções para o aspecto humanitário da crise. “Soluções para a crise são pensadas na bela aldeia de Schengen (em Luxemburgo), onde só se bebe bom vinho”, ironizou.
Segundo Catherine, o problema também tem origem na falta de um acordo que satisfaça os 28 países da EU, o que impede a emergência de uma política comum. A pesquisadora relata que existe uma fratura entre países do leste Europeu e o resto, devido a “um problema de identidade”.
“Existe, nesses países, um aumento significativo dos movimentos da extrema direita que instrumentalizam a crise migratória. Isso é associado a uma crise de identidade desde a origem dessas nações, herdeiras de grandes impérios”, explica, citando o exemplo da Hungria que passou a fechar as fronteiras quando, paralelamente, Alemanha anunciou, em setembro de 2015, que prometia acolher mais de 800 mil pessoas.
“O que falta aqui, é uma vontade política de resolver a crise, pois teríamos, pelo menos na França, como acolher dignamente os migrantes”, disse. O problema é que desde o inicio das reflexões da EU sobre as migrações, os membros queriam apenas dar enfoque à discussão de chegadas ao território, o que não teve a eficácia esperada.
O velho continente alega que foi surpreendido pela crise dos fluxos migratórios, mas Virginie insiste sobre o fato de que esses eventos eram previsíveis e destaca dois motivos para ilustrar o próprio argumento. Em primeiro lugar, o aumento das migrações do Oriente Próximo, desde a intensificação dos conflitos na região em 2011. Segundo, porque houve em 2014 uma queda do dinheiro fornecido pelo Programa Alimentar Mundial aos campos de refugiados.
Brasil
A situação europeia não está tão distante da crise que o Brasil vive, mesmo que não seja chamada de crise humanitária. Guilherme Otero, da Coordenação de Políticas para Migrantes da Prefeitura de São Paulo, disse que “o Brasil está lidando com fluxos migratórios novos, utilizando ferramentas completamente ultrapassadas”.
Otero usa como exemplo a imigração dos haitianos que, como na Europa, seria um fenômeno previsível. “O governo tinha consciência de que, a partir do momento que o Brasil liderasse a missão de paz da ONU no Haiti, desencadearia um fluxo migratório dos haitianos para cá”, explica.
Ele ainda afirma que o Brasil tem duas opções: “Ou fortalece as fronteiras, como está sendo feito nos Estados Unidos e na União Europeia, ou o País tenta dar respostas que contemplem direitos aos migrantes e permite que eles contribuam para a sociedade cultura, política e economicamente”.
Segundo ele, a principal diretriz de política migratória brasileira foi durante muitos anos a “não política”, ou seja, a não realização de reformas.
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