Charlie-Hebdo, Paris, Nice e projetos de atentados abortados. A França se tornou o alvo prioritário do grupo terrorista Estado Islâmico. São já sete ataques, 230 mortos ao longo de um ano e meio daquilo que é, cada vez mais, um enfrentamento direto entre uma democracia europeia e um grupo islamista loucamente radicalizado. E quais seriam os motivos dessa guerra aberta?
A ligação íntima da França ao Islã moderno começou no início do século XIX, com a conquista e colonização da Argélia, da Tunísia e do Marrocos. Continuou depois da Primeira Guerra Mundial, com o controle da Síria e do Líbano. Se naquela altura muitos franceses se instalaram no Norte da África, depois da Segunda Guerra Mundial foram os habitantes desses países que migraram para a França, para trabalhar em fábricas e campos. A comunidade muçulmana se instalou nas periferias urbanas das grandes cidades francesas, com suas famílias. As segundas e terceiras gerações nasceram na França, em busca desesperada de uma identidade, nem totalmente francesa nem totalmente muçulmana. Apesar de a lei francesa proibir a identificação religiosa nos censos, estima-se o número de muçulmanos na França em torno de 8% da população, ou seja, cinco milhões de residentes.
Essa conexão histórica da França com o mundo muçulmano e o papel de “braço armado e militar” que a França e a Grã-Bretanha desempenham dentro da União Europeia levaram os franceses a intervir militarmente no Mali, em 2013, para combater o que foi uma tentativa de grupos ligados ao Estado Islâmico e a Al-Qaeda de instalar um segundo território islamista. O objetivo da intervenção militar foi acabar com as agressões por parte dos grupos islamitas, preservar a integridade territorial do Mali e de seus vizinhos (Mauritânia, Argélia, Níger, Tchad) e preparar a projeção da força de intervenção africana autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em paralelo e desde 2014, aviões franceses, britânicos e americanos conduzem missões diárias para atacar alvos do Estado Islâmico na região norte do Iraque e da Síria. Após meses de ataques aéreos contínuos, a eficiência da campanha começou a dar frutos e o Estado Islâmico havia perdido pelo menos 50% do território que havia conquistado no Iraque e na Síria. Diante da mais que provável perda do seu próprio território, o Estado Islâmico intensificou a sua estratégia de ataques terroristas indiscriminados nos países mais implicados na guerra – com a intenção de se projetar para o exterior –, especialmente na França.
Mas a França não se tornou o alvo preferido do Estado Islâmico só como consequência do enfrentamento militar direto. O mais importante é a combinação explosiva da grande comunidade muçulmana que vive no país e do ódio do Daesh (acrônimo do Estado Islâmico em árabe) por aquilo que a França acaba por representar. Para os islamistas mais radicais, “Paris e França são o coração da filosofia ocidental. Isso é repugnante para essas pessoas. A Europa é repugnante para essas pessoas. E a França, vista como farol de liberdade, igualdade e de valores sociais, é o epicentro”, afirma Neil Fergus, executivo responsável da Intelligent Risks, uma organização australiana que se dedica a estudar o terrorismo internacional.
Os “lobos solitários”, que compõem agora a base de recrutamento dos jihadistas, são quase todos nascidos e educados na Europa, no seio das grandes comunidades muçulmanas. O que o Daesh conseguiu explorar foi o mal-estar profundo de pessoas incapazes de integrar-se na sociedade ocidental, e que representam uma pequena, mas muito radicalizada, minoria. Não são extremistas religiosos ou excluídos sociais que se transformaram em radicais violentos, mas sim radicais violentos e antissociais que encontraram no extremismo religioso um discurso de autojustificação de uma deriva mortal.
Os terroristas do Daesh não são o produto de uma cultura ancestral, foram educados no Ocidente e descobriram o Islã tardiamente e por meio de uma versão caricatural e sem conteúdo espiritual. São imigrantes e filhos de imigrantes que foram educados pela sociedade francesa com promessas e expectativas. Eles, porém, por suas próprias condições sociais e culturais, acabam não conseguindo fazer parte do processo de integração. Convertem-se em assassinos porque responsabilizam a sociedade anfitriã pelo não cumprimento dessas expectativas e o objeto de seus desejos tem que ser aniquilado.
No passado recente, a esquerda francesa e europeia, com a integração dos imigrantes nos seus movimentos sociais e sindicais, capitalizava essas ansiedades e pulsões oferecendo uma identidade e uma integração social estabilizadora. Isso já não existe.
O Daesh aproveita esse vazio identitário para tentar convencer toda uma geração perdida que é permitido utilizar a violência individual e extrema na transformação da sua própria condição. A imensa maioria dos muçulmanos residentes na França tem pouco a ver com tudo isso, sofrem tanto quanto o conjunto da sociedade francesa à qual pertencem. Das 84 vítimas de Nice, mais de 30 são de religião muçulmana.
A França brincou com fogo e continua brincando. Desenvolveu uma geopolítica agressiva e explícita, combatendo militarmente os movimentos islamistas nas regiões do mundo que considera, estrategicamente, indispensável proteger. Mas não valorizou plenamente o impacto que essa política teria ao nível doméstico, a profundidade da guetização, a pobreza urbana e a segregação em que vivem as comunidades muçulmanas na Europa. O Ocidente vai ganhar a guerra contra o Daesh, destruirá o Estado Islâmico, mas tardará anos para pacificar os seus próprios bairros urbanos.
*François Huteau é cientista político e economista, doutor pelo Institut Etudes Politiques de Paris (Sciences-Po)
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