Um massacre arquitetado pelo Império Turco-Otomano no começo da 1ª Guerra Mundial vitimou cerca de 1,5 milhão de armênios. Em um cenário de enfraquecimento dos turcos somado à rivalidade com a União Soviética, 80% da população armênia da época foi exterminada. O acontecido, no entanto, ainda hoje não é reconhecido como “genocídio” por muitos países. Dentre eles, o Brasil. Para Pedro Demercian, professor de Direito Processual Penal da PUC-SP e presidente da Comissão de Preservação da Memória do Genocídio, interesses políticos e econômicos com a Turquia impedem que muitos países reconheçam o termo. Demercian diz também que o pedido de reconhecimento não é uma questão de vingança, mas de prevenção para que outros genocídios não aconteçam.“Cada vez que não é reconhecido é como se tivesse ocorrido de novo. Eu não tenho dúvidas de que há muita covardia por parte desses governos que não reconhecem o genocídio. Interesses econômicos com a Turquia estão por trás de tudo.”
Confira a entrevista com Demercian na íntegra:
Revista Brasileiros – Como será o trabalho da Comissão?
Pedro Demercian – Hoje é o dia que marca os cem anos do genocídio do povo armênio pelos turcos. No mundo inteiro, há uma série de eventos pelo reconhecimento do genocídio. Só vinte países do mundo reconheceram. O Brasil não está entre eles. A Fundação São Paulo formou uma comissão, a qual eu presido, para realizar uma série de eventos para rememorar o genocídio e marcar a data do reconhecimento.
O genocídio em si é uma história longa, que está sendo muito contada pelos jornais. Ocorreu numa época em que não existia a expressão “genocídio” ainda, na 1ª Guerra Mundial. Morreram 1,5 milhão de armênios, cerca de 80% da população armênia na época. Então foi um autêntico genocídio. Os turcos se recusam a admitir, alegando que aquilo não foi uma seleção étnica, religiosa, que foi um evento causado pela fome e pela guerra – o que não é verdade.
Por que tamanha resistência em reconhecer o genocídio?
Os turcos não admitem e aí envolve uma serie de questões políticas e econômicas. As relações políticas da Turquia com outros países têm dificultado a admissão pelos turcos desse evento que foi trágico. Mas alguns países já admitiram. No nosso país ainda não se reconheceu, embora tivemos várias manifestações rememorando a data do genocídio, na Assembléia Legislativa de São Paulo, por exemplo. Recentemente o Papa Francisco usou a expressão “genocídio armênio” pela primeira vez. Segundo os cálculos dos turcos, não houve genocídio, até porque estimam a morte de 500 mil pessoas ao invés de 1,5 milhão. O genocídio não é caracterizado pelo número de mortos, não é gado, mas sim pelas características da ação, que é eliminar uma etnia, uma raça, uma religião do mundo. Foi o que aconteceu. Houve proibição da língua armênia na Turquia, os primeiros a morrer faziam parte da intelectualidade armênia, depois foram presos aqueles que tinham força de trabalho, que podiam pegar em armas. Houve um projeto bem elaborado para que isso fosse levado a cabo.
Na época, as informações sobre essa mortandade não foram passadas para o mundo. As embaixadas tinham notícia a respeito, mas logo foram fechadas. Então o fato só veio à tona quando os imigrantes armênios fugiram daquela região, começaram a se encontrar fora da Turquia e constatar que os parentes tinham morrido.
A expectativa é de que no centenário haja um movimento mundial de reconhecimento do genocídio?
A ideia é que as várias comunidades pelo mundo se movimentem e pressionem os governos para o reconhecimento. No Brasil, é grande a possibilidade de um pressão da sociedade sobre o governo, mas não é uma questão fácil, porque não é só um ato formal de reconhecimento. Há indicações políticas, as relações bilaterais com a Turquia, que são muito mais importantes economicamente do que as com a Armênia, que é um país pobre. Esse reconhecimento pode levar a um estremecimento nas relações bilaterais com um país que o Brasil mantém relações comerciais. Então tem todo um interesse econômico subjacente.
Qual a importância do reconhecimento?
Você acha importante que o mundo saiba que existe genocídio, que existe a extinção de grupos étnicos? Só para você ter uma ideia, o Hitler, quando começou o projeto de genocídio do povo judeu, foi indagado se não teria medo da repercussão. Ele teria dito o seguinte: “Eu não, alguém se lembra do genocídio dos armênios?”. Então é uma questão de direitos humanos, de dignidade da questão humana. A gente conhece bem o holocausto judeu, mas não conhece outros que têm acontecido pelo mundo.
Houve alguma punição aos envolvidos no genocídio?
Não houve nenhuma punição, não foi levado nem a tribunais internacionais. O direito penal internacional só começou a evoluir no mundo com a Declaração Universal de Direitos do Homem, em 1948, com a carta da ONU. Só para você ter uma ideia, não havia a expressão “genocídio”, que foi cunhada depois da 2ª Guerra Mundial. Os genocídios e outros crimes contra a humanidade só começaram a ser apurados a partir da década de 50, 60 e 70, quando proliferaram os tratados contra tortura, escravidão, genocídio, etc.
Com a fala recente do Papa, o reconhecimento do parlamento austríaco, o movimento ganha força?
Sim, a tendência é que cada vez mais, essa se torne uma pauta nos encontros das Nações Unidas. E isso vem acontecendo não só no âmbito político ou religioso. No cultural também. Tem aquele grupo de rock, o System of a Down, que fala sobre o genocídio armênio. Eles têm percorrido o mundo levando essa bandeira. O nosso objetivo na PUC é levar essa questão para fora da comunidade armênia. O que precisa é abrir isso para a sociedade como um todo.
Existe uma falta de informação sobre o assunto?
Existe pouquíssima informação a respeito mesmo. Mas hoje eu começo a ver a mídia, as redes sociais, já debatendo com muita fluência o assunto. Esse projeto de todos os países do mundo terem realizado manifestações pelo reconhecimento vai tornar o genocídio uma pauta dos debates de direitos humanos. A tendência é que o mundo evolua para esse reconhecimento. É um reconhecimento que não tem caráter de vingança, mas de prevenção, para que outros genocídios não venham a acontecer também.
O não-reconhecimento por parte dos governos indica uma conivência ou uma tolerância com genocídios?
Sem dúvida nenhuma. Ninguém quer que se reconheça o genocídio para pendurar o feito em uma placa na parede. Esse reconhecimento tem um objetivo claro de prevenir incidências semelhantes e evitar que essa memória do genocídio fique viva de maneira dolorida. Cada vez que não é reconhecido é como se tivesse ocorrido de novo. Eu não tenho dúvidas de que há muita covardia por parte desses governos. Aí são questões que invariavelmente envolvem interesses econômicos, que estão por trás de tudo.
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