“Pepe” Mujica ainda não conseguiu descansar. Desde a sexta-feira passada (27), quando começaram as cerimônias oficiais de transmissão do cargo de presidente para o seu colega de partido, Tabaré Vázquez, que ele está envolvido em alguma atividade. No domingo (1), depois de entregar a faixa presidencial a Vázquez, demorou 20 minutos para chegar ao seu Fusca, em uma das ruas adjacentes da Plaza Independência, no centro de Montevidéu, cercado por jornalistas e pela multidão que lhe pedia para ficar no cargo. Dois dias depois, na terça-feira (3), assumiu o cargo de senador, em um dia em que se irritou com a imprensa e abandonou uma entrevista coletiva na metade. De lá para cá, mergulhou na produção de um documentário sobre sua vida, rodado em sua chácara, nos arredores da capital uruguaia. Segundo sua mulher, a senadora Lucía Topolansky, ele “não tempo para nenhuma outra coisa”.
Ainda assim, “Pepe” está presente em todos os lados de Montevidéu: há retratos seus em muros, bandeiras do seu partido nas casas, bonecos artesanais são vendidos no comércio informal e faixas nos bairros o agradecem pelo governo dos últimos cinco anos. Essa veneração, no entanto, não é tão ampla quanto parece, segundo atesta o jornalista uruguaio Maurício Rabufetti, autor do livro “José Mujica, La Revolución Tranquila”, que vai ser lançado no Brasil em abril pela editora LeYa. “Alguns não perdoam o fato de ele ter sido guerrilheiro e outras não estão de acordo com as coisas que ele fez enquanto foi presidente”, diz, em entrevista à Brasileiros que você lê a seguir:
Brasileiros – “Pepe” Mujica é mais amado por sua fama internacional de homem honesto ou porque realmente produziu mudanças no Uruguai em seu governo?
Mauricio Rabufetti: Quando o Mujica chegou à presidência, já havia uma coisa muito contraditória neste país: ele era o político mais popular do Uruguai, mas também o mais rejeitado, segundo institutos de opinião. Ele saiu do governo agora com 65% de aprovação, o que significa que existe gente de fora do partido dele, a Frente Ampla, que se simpatiza e que acredita que a sua gestão e a sua imagem foram boas para o Uruguai. Há, no entanto, uma parte da população que ainda tem muita resistência ao Mujica. Alguns não perdoam o fato de ele ter sido guerrilheiro e outras não estão de acordo com as coisas que ele fez enquanto foi presidente, que foi uma gestão com muita fama internacional e muito reconhecimento em certos aspectos que são realmente válidos, mas que deixou a desejar em outras em que o povo tem necessidade mais tangíveis. Entre essas mudanças concretas estão a educação, a saúde, a segurança, a infraestrutura, que são coisas em que ele deixou muito ainda por fazer. Então, essas pessoas têm uma imagem de um governo que não correspondeu ao que elas queriam. Minha análise pessoal e que eu faço no livro é que, apesar de o Mujica ter contribuído para que o Uruguai fosse conhecido como um país aberto, tolerante e avançado juridicamente, é normal que alguns uruguaios tenham esse sentimento de que faltou muita coisa dentro do país, enquanto fora dele, o presidente era reconhecido. Isso é parte do fenômeno Mujica. Ele agora é conhecido a nível planetário. Recentemente eu vi um livro do governo para crianças no Japão que foi feito a partir do discurso do Mujica no encontro do Rio+20. Uma coisa muito incrível de se acontecer com um presidente da América Latina e que vão continuar acontecendo, ainda que não tenha o mesmo valor aqui no Uruguai.
Essa fama internacional de Mujica, que também fez o mundo conhecer melhor o Uruguai, é completamente benéfica?
Eu acho que, em uma primeira abordagem, é muito melhor ter um presidente que é reconhecido positivamente no mundo do que um que não é valorizado e ainda tem um aspecto negativo. Para o Uruguai, o Mujica seria um ótimo embaixador, assim como para a América Latina. Ele seria um grande articulador nesse contexto de crises institucionais na região, como a que vive a Venezuela, que é profundíssima, como na Argentina, no México, no Brasil com o escândalo da Petrobras, que está gerando descrença nos brasileiros. Para esse trabalho, a legitimidade do Mujica poderia lhe dar um papel bem importante na região, além da política uruguaia. Seria interessante ver a liderança política da América Latina nas mãos desse cara que tem um capital político tão grande.
Mas você acredita que as lideranças latino-americanas levam o Mujica a sério enquanto um político e não um personagem?
Bom, a América Latina é o continente do discurso e da falta de ação, não? É assim. Isso é a América Latina. A influência do discurso do Mujica nas pessoas é uma coisa e a capacidade política dele é outra, então quando você vê o Mujica falando nas Nações Unidas ou em Washington ou no Rio+20, quem está escutando essas palavras são as pessoas comuns. Quando você vê o Mujica tentando aproximar interesses da América Latina, quem está escutando são os políticos. Ele tentou muita coisa e não conseguiu: tentou mediar o conflito entre o Estado e as FARC da Colômbia e não foi aceito e depois tentou mediar a situação na Venezuela, que também não teve sucesso. O que eu quero dizer que ele poderia ser um líder, como por exemplo, da Unasul, onde ele teria capacidade para articular interesses, ainda que não integrar o continente, mas pelo menos aproximar mais os nossos países.
O semanário Brecha desta semana publicou um texto em que afirma que Mujica sabe, como poucos, lidar com a imprensa, e chega a dizer que ele é um bom “marqueteiro pessoal”. Você acredita que há marketing em seu comportamento?
Eu coloquei isso de uma forma diferente no livro: o Mujica é uma pessoa simples, desapegado dos bens materiais e eu não conheço nenhum político de sucesso que não seja bom em se apresentar, porque se você não é bom para mostrar suas ideias e conseguir sustenta-las ideologicamente, não vai conseguir convencer ninguém. O que ele faz quando se apresenta abrindo as portas da sua casa para a imprensa do mundo inteiro é dizer para o planeta: “esta é a casa que eu vivo, este é o sustento da legitimidade da minha mensagem”. É a mesma coisa que o Barack Obama faz quando fala que é um self-made man ou quando vários presidentes se recordam da juventude deles para dizer algo. Marketing é uma palavra pesada, eu diria que ele é um bom promotor das suas ideias. Muitas vezes essa promoção é feita por meio das ideias, mas é algo diferente do que disse o Brecha, porque falar de marketing implica dizer que ele está querendo ser famoso e o que eu acho que ele quer é usar a fama para passar uma mensagem. O que sobra disso é o ego e eu não conheço – em 20 anos de carreira no jornalismo político – uma pessoa que tenha sido presidente da República de um país e que não tenha ego.
O Mujica tem?
Claro. Você acha que não? Você conhece algum presidente sem ego? Eu não. Eu não conheço nenhum presidente que não tenha ego, até porque se você não tiver, não fica lá dois dias. Precisa ter aquela coisa do “eu consigo, eu posso”.
E ele gosta de ser famoso?
Não sei. Nunca perguntei para ele. Não vemos ele incomodado com isso, então…
Como os outros políticos se comportam frente ao exemplo de Mujica, supondo que nenhum outro viva em uma chácara, tenha um Fusca azul e doe metade do salário?
Tem muitos políticos uruguaios que têm diferenças ideológicas com ele e muitas vezes, mesmo quando o Mujica fala algo que tenha sentido, eles não estão de acordo. São maneiras diferentes de ver a vida, o governo, o país. Outros, do partido dele, olham para ele com fascinação. Então, é dúbio. Ele gera sentimentos fortes. Há também quem acredita que ele está fazendo um personagem, que está interpretando…
A oposição.
A oposição, mas ele tem muitas diferenças com gente da Frente Ampla. Aliás, ele tem muitas diferenças com o Tabaré Vázquez, não apenas políticas. Ele vai ser um contrapeso importante em algumas decisões do novo presidente.
Há algum traço da personalidade de Mujica que você notou e que, quem não o conhece pessoalmente, desconhece?
Meu livro não está baseado em entrevistas com ele, então eu conheço o Mujica mais pelas reportagens que fiz do que enquanto escrevia esse trabalho. Eu pessoalmente não saberia dizer, mas tem uma coisa que algumas pessoas que eu conheço e que são próximas dele dizem: que ele é muito apaixonado. Isso quer dizer que ele fica chateado muitas vezes com algumas coisas e se torna perceptível. O humor dele muda rápido. Ele também é muito trabalhador e, em certo momento, isso pode ser ruim. Ainda mais quando você é presidente e quer delegar as funções que outros estão ali para fazer. Eu pessoalmente não acho isso bom, porque você é um chefe de equipe e precisa saber delegar.
A classe média uruguaia é repleta de críticas a “Pepe” Mujica. Uma delas é que ele e seu partido, a Frente Ampla, mudaram apenas a vida dos pobres, enquanto os trabalhadores médios, que não são ricos, não tiveram suas vidas melhoradas. É uma crítica pertinente?
Os ricos são muito mais ricos mesmo. Os pobres estão vivendo melhor por causa das políticas sociais, mas também por causa do crescimento natural da economia. O Uruguai está com níveis de desemprego quase estruturais, resultado principal do crescimento econômico do país. A classe média tem um grande problema com o Mujica: a pressão fiscal. Ela modificou muito mais a vida dos trabalhadores, dos empregados, e mexeu com a vida também da classe média-média, como os médios empresários. É muito mais complicado para o empregado conseguir se desenvolver com a pressão fiscal que existe hoje no Uruguai do que este tipo de empresário. Muitas das melhoras que ele fez na distribuição de renda foram criticadas aqui pela forma que elas foram estruturadas, porque elas estão sendo sustentadas pela classe média, e não por quem tem uma grande empresa.
A classe média também diz que Mujica fortaleceu ainda mais a inimizade entre as classes, de modo que um empregado olha para o patrão como um inimigo. É uma realidade?
É uma pergunta filosófica. Eu não acredito na luta de classes. É muito difícil para mim falar sobre esse conceito, porque é muito complicado de se ver na prática. Se aconteceu algo, foi que os sindicatos – que no Uruguai são completamente de esquerda – ganharam muito mais força quando um partido de esquerda, a Frente Ampla, chegou ao poder. Desta forma, os empregados têm mais força para protestar. Isso está acontecendo sim e está complicando, em certo ponto, as relações trabalhistas uruguaias, porque muitas empresas têm dificuldades de crescimento e, mesmo assim, pensam duas vezes antes de contratar um funcionário. Porém, as exportações estão crescendo tanto que o Uruguai, ainda assim, é um mercado muito atrativo, então não é um cenário muito alterado. Os salários estão altos, não falta trabalho para ninguém. Está equilibrado. Mas eu acho que falar de luta de classes é uma questão filosófica que perderíamos uma hora discutindo se existe ou se não existe, mas claramente o Mujica e a Lucía [Topolansky] acreditam nisso. É a história deles.
Há outra crítica ainda, mais feroz: a de que ele matou pessoas enquanto guerrilheiro. Como esse tema é tratado?
Ninguém comprovou a informação de que o Mujica matou alguém, mas eu sempre respondo esse questionamento da seguinte maneira: qual é a importância disso? Ele foi parte de um movimento guerrilheiro e quando você integra um grupo de guerrilha está consciente de que vão acontecer mortes. Ele era um comandante militar que participava de operações em que morriam pessoas e ele sabia disso. O problema é justamente esse: essa sociedade não deixa o passado para trás porque tem muitas feridas abertas. Ainda não conseguimos sequer descobrir aonde estão as pessoas que desapareceram durante a nossa ditadura militar. Não sabemos muita coisa sobre aquele período. Hoje o Uruguai caminha em duas velocidades, por causa de gerações diferentes que estão olhando para coisas diferentes: uns não se esquecem do que aconteceu, mas já superaram, estão vendo o futuro, o desenvolvimento do país, enquanto outros estão voltados para trás, lembrando das coisas que aconteceram no passado. Tem muita gente que não perdoa o que aconteceu. Eu acredito que o desenvolvimento que o Uruguai alcançou nos últimos anos não tem somente a ver com o crescimento econômico, político, social, mas também tem muito a ver com a iniciativa das pessoas. Há 20 anos atrás parecia que estávamos no país mais conservador do planeta e hoje eu vejo gente produzindo coisas novas o tempo todo: produtos de informática, obras de arte, projetos de esportes, de cultura, etc. Não tem só a ver com políticas decididas pelo governo, mas sim com uma geração que está olhando para a frente. Ainda assim, tem gente que nunca vai perdoar o Mujica e nunca vai perdoar os militares.
Uma comissão de investigação, tal qual aconteceu no Brasil, ajudaria?
A única maneira de um país fechar essas feridas é conhecendo algumas verdades. O destino dos desaparecidos, por exemplo, que até hoje não sabemos. Mas eu sou contra a chamada Lei de Caducidad de Pretensión Punitiva del Estado, porque acho que foi um bloqueio que se estabeleceu na busca de algumas verdades, assim como disseram os organismos internacionais de direitos humanos.
Mas o Mujica no poder não fortaleceu esse sentimento para um dos lados, no caso o dos militares?
Pode ser, mais o importante é que tem muita gente no Uruguai que está decepcionada com o Mujica por causa disso: ele não avançou nada nessa área. Nada, nada, nada. Muita gente esperava que, por ele ser um ex-guerrilheiro, iria avançar nesse quesito, ele não fez absolutamente nada.
Ainda no semanário Brecha, ele conta que o pior dos momentos que viveu nessa época foi ter que colocar uma arma na cabeça de um trabalhador. Que papel tinha Mujica na guerrilha?
Ele foi o chefe militar da chamada Coluna 10, que era um dos grupos do movimento guerrilheiro Tupamaros. Eles dividiam a guerrilha em colunas, designavam chefes militares para cada uma e depois formavam uma cúpula central que lidava com todos os grupos espalhados pelo país. A coluna 10, do Mujica, era considerada uma das mais eficientes e organizadas de toda a guerrilha uruguaia.
A mulher de Mujica, Lucía Topolansky, era conhecida como “La Tronca” [algo como “a dura”] na guerrilha, segundo relatos. Ela era mais radical que Pepe?
Sim. As pessoas que conheceram ela nessa época dizem que ela era mais radical que o Mujica, até porque ele sempre foi mais filosófico. Ele sempre diz isso, que começou sendo militante político nas ruas, nos movimentos sociais, e assim acabou entrando nos Tupamaros por questões filosóficas.
O comportamento temperamental de Pepe, dizendo palavrões em entrevistas e falando coisas filosóficas…
Tudo premeditado. Ele faz isso para se comunicar com a parte do público que ele pretende. Não é uma coisa espontânea ele falar, por exemplo, durante a Copa do Mundo que a Fifa é formada por “filhos da p…” [Mujica deu esta declaração depois que a Fifa suspendeu o atacante Luiz Suárez da competição]. Ele jogou aquilo para o povo uruguaio. Estava canalizando o sentimento que as pessoas daqui estavam sentindo naquele momento.
Esse comportamento incomoda a diplomacia uruguaia de alguma maneira?
Muitas vezes sim. Incomoda até o entorno dele. No entanto, ainda que ele não queira, esse comportamento gera consequências positivas. Duas semanas depois de ele dizer que o México era um Estado falido, criar uma crise diplomática e gerar desconfortos, ele foi recebido no México como um herói, sendo o presidente do Uruguai. Ele falou apenas uma coisa que muitos mexicanos queriam falar.
Você, pessoalmente, faz que avaliação do governo Mujica no Uruguai?
Foi um governo que conseguiu colocar o Uruguai no mundo como um país tolerante, aberto e de direito. O Mujica conseguiu mostrar que, mesmo com seu passado guerrilheiro, foi capaz de respeitar as instituições, mas também deixou muita coisa para fazer. A educação principalmente. O grande fracasso dele foi não ter conseguido reformar o sistema público de ensino em uma sociedade que valoriza muito a educação dada pelo governo. É o fracasso mais importante não apenas politicamente, mas da vida dele.
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