O atentado ao Charlie Hebdo, segundo Laerte e Paulo Caruso

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Foto: Paulo Garcez/ Rafael Roncato

O atentado terrorista deflagrado contra o semanário Charlie Hebdo, na manhã de ontem (7) ceifou a vida de 12 pessoas, entre elas nove jornalistas, dois policiais e um colaborador que visitava a sede da revista parisiense.

O ataque covarde colocou um fim trágico à carreira de quatro dos mais importantes e combativos cartunistas franceses: Stéphane Charbonnier, o “Charb” que, aos 47 anos, dirigia o semanário; Bernard Verlhac, conhecido como “Tignous”, de 57 anos; Jean Cabut, o “Cabu” que, no próximo dia 13, completaria 77 anos; e Georges Wolinski, mestre da charge que, aos 80 anos, continuava a exercer grande influência a seus contemporâneos e artistas das novas gerações.       

Em entrevista à Brasileiros, por telefone, os cartunistas Laerte e Paulo Caruso repercutiram o significado e as possíveis consequências do atentado.

Brasileiros – Como efeito do atentado de ontem, é possível acreditar numa retração da faceta combativa inerente à charge?

Laerte – Acho que o atentado não vai causar retração. Principalmente na sátira política francesa, que enfrentou guilhotina, prisão, morte, degredo e, mesmo assim, a agressividade e a contundência dos trabalhos não decaíram em nada. No Brasil, enfrentamos uma ditadura, a redação d’O Pasquim foi presa, houve tortura, gente sumida e também não decaiu.

Paulo Caruso – Creio que tanto os artistas quanto os fanáticos religiosos vão recrudescer e partir para um confronto ainda maior. Uma onda que deve se espalhar. Hoje mesmo houve atentado a uma mesquita, mas, em contrapartida, os artistas do mundo inteiro estão se solidarizando, enviando mensagens à revista. Tenho a impressão que, para a imprensa conservadora e tradicional, o atentado vai implicar em maior vigilância e autocensura. Foi o que aconteceu comigo em 2011, com um desenho que tentei publicar em uma das principais revistas semanais do País e não consegui porque começavam a acontecer as primeiras reações dos radicais islâmicos ao Charlie Hebdo. O desenho mostrava o editor do Charlie usando-o como escudo e cutucando um radical islâmico com um bico de pena sendo que ambos caiam num mesmo abismo. Os editores ficaram com receio e decidiram não publicar. Imagino eu que a partir de agora isso deverá ficar ainda pior.

O atentado pode recrudescer a hostilidade ao islamismo e fortalecer a xenofobia da extrema direita europeia?

Laerte – Acho que vão procurar mostrar que o atentado depõe contra o Islã, mas não há nada que deponha contra o Islã. A extrema direita na Europa já vem recrudescendo há muito tempo, sem necessitar de ações como essa. Dá muito que pensar o que aconteceu ontem, pois há uma sintonia evidente entre esse tipo de ação e a violência, a crueldade e o irracionalismo da extrema direita. A sintonia entre essas posições faz a gente pensar até em cumplicidade. Não uma cumplicidade prática e concreta, acertada por telefone ou e-mail, mas uma espécie de alinhamento histórico.

Paulo Caruso – A xenofobia na Europa já vinha crescendo tanto pela competição do mercado de trabalho quanto por essa coisa da identificação de muçulmanos como terroristas. Uma violência contra esses povos que também é fruto da ignorância de alguns setores da sociedade europeia e das posturas extremadas dos radicais. 

É possível acreditar que estamos imunes a ações violentas? Há no Brasil ingerências e ameaças de setores conservadores?

Laerte – Podemos acreditar até em coisas piores, pois esta é a terra onde o atentado ao Riocentro aconteceu. A terra que viveu 21 anos de ditadura, com assassinatos, torturas e desaparecimentos. Uma terra violentíssima. Eu mesma fui ameaçada no Facebook e o sujeito ainda falou que lamentava terem matado o Glauco, porque mataram o cartunista errado. Isso não é pouca merda. Feministas, militantes e ativistas de direitos humanos estão sendo ameaçados, de forma cada vez mais clara. Mas acho que esses setores não exercem e não vão exercer ingerência sobre o que fazemos, pois coexistimos nesse ambiente. Claro, a busca por controle é universal e eles até gostariam de exercer ingerências, mas não exercem.

Paulo Caruso – Em geral, cada veículo de comunicação tem seus interesses defendidos pelas posturas editoriais. Cada um de nós sabe onde está trabalhando e vai procurar evitar algo que desagrade à postura editorial da publicação que trabalha. Se você quiser ter total autonomia, compre uma revista ou um jornal, caso contrário dependerá sempre da palavra final do editor. No aspecto da linguagem, somos bem mais amenos do que os franceses. Eles têm esse radicalismo e um sarcasmo amargo que vem desde a Revolução, ao contrário da Inglaterra, por exemplo, que tem certo distanciamento e um humor mais comedido. Na Espanha, teve um jornal que publicou o desenho de uma bandeira espanhola com um monte de merda em cima. No Brasil, uma charge dessas ia gerar a maior celeuma. Seria entendida como uma grave afronta ao maior símbolo nacional, pois somos bem mais conservadores.

Como vocês mensuram a perda dos cartunistas assassinados ontem?

Laerte – Um horror, uma tragédia, mas não penso em termos de perdas ou de lacunas. Não trabalho com isso. Abomino o vazio e acho que eles não deixaram vazio nenhum. Pelo contrário, deixaram mesmo foi um puta trabalho, uma herança, uma presença viva e atuante que deve ser defendida. A revista Charlie Hebdo é um patrimônio da humanidade e tem de ser defendida. Nesse momento, é o que mais importa a fazer.

Paulo Caruso – É muito triste, porque, no fundo, eles eram artistas com uma postura completamente humanitária, mas que praticavam esse humor, com sarcasmo, sem temer diferenças culturais e religiosas e sem abdicar desse direito. É duro, é chocante ver artistas sendo mortos violentamente por causa do humor. No caso do Wolinski, um ser humano amável e um cara com 80 anos de idade, a ação foi muito cruel. Soube ontem a noite que, há pouco tempo, ele havia manifestado o desejo de ser cremado quando morresse e pediu que as cinzas fossem jogadas na privada de sua casa para que ele pudesse ver, pela última vez, a bunda de sua mulher. A obra do Wolinski indiscutivelmente vai ser analisada e preservada para sempre. Ele deixou uma grande marca em seu tempo. 

Que postura deve ser tomada pelos chargistas ao redor do mundo? 

Laerte – Nesse primeiro momento, manifestar todo apoio e solidariedade ao Charlie Hebdo. Depois, nosso maior desafio será impedir que essa tragédia seja manipulada pela extrema direita.

Paulo Caruso – Continuar exercendo o direito de usar sua pena e sua principal tribuna: a liberdade de expressão.

Charge de Paulo Caruso originalmente criada em 2011 para a revista Época, que não foi publicada por receio de retaliações
Charge de Paulo Caruso, originalmente criada em 2011 para uma das principais revistas semanais do País, que não foi publicada por receio de retaliações. Na ocasião, o Charlie Hebdo havia sofrido o primeiro atentado

MAIS: 

Em junho de 2011, Laerte concedeu entrevista à Brasileiros. Confira a íntegra.
Em novembro do mesmo ano, Paulo Caruso assinou as ilustrações da capa da edição 52 e da reportagem Os Maiores Chatos do Brasil. Leia a íntegra. 


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