Para falar do que ocorre em Gaza nestes dias não se pode começar de outro modo que não seja chamar a atenção para a enormidade da tragédia. Trata-se, sem exagero, de um banho de sangue – e é preciso pausar e dar a estas palavras o seu verdadeiro sentido. Sobram as imagens, para ficar apenas com algumas, das crianças literalmente despedaçadas, e da vida que parece ter perdido qualquer significado à sua volta, as pessoas sendo engolidas por um buraco negro de desespero.
Esse tipo de festival da morte é periodicamente celebrado pela aviação israelense e servido aos palestinos. Em Gaza esses são momentos de explosão do sofrimento que vem se somar à situação dramática, cotidiana e velha de vários anos, vivida naquele lugar pelos palestinos, prisioneiros a céu aberto, cercados de todos os modos e por todos os lados.
Para cada uma dessas campanhas de bombardeio, acompanhado ou não de invasão terrestre, costuma-se escolher uma explicação, uma causa e muitas vezes uma justificativa, que, no melhor dos casos, é apenas parcialmente verdadeira e, no mais das vezes, é mero pretexto. Neste último caso, o ponto de partida escolhido é o seqüestro e morte de três colonos israelenses. A mensagem que se passa, ainda que possa ser apenas subliminar, é que a culpa da explosão é dos palestinos, sempre.
A esse pretexto circunstancial e inicial que, neste caso, serviu a justificar primeiramente uma investida violenta contra a Cisjordânia e, em seguida, este ataque de grandes proporções contra Gaza, vem invariavelmente se somar o argumento de que Israel não faz outra coisa senão responder aos ataques de foguetes palestinos. Sempre, portanto, a carnificina é mera ação de legítima defesa.
Essa estratégia de justificação e esse discurso que visa determinar a representação que fazemos dos fatos encontram incrível sucesso. É tão poderosa a pressão para que as coisas sejam apresentadas e discutidas, pela imprensa e por todos os demais, de um modo pretensamente equilibrado, que dê conta dos argumentos com pretensões equivalentes de legitimidade, que, apesar da enorme disparidade das situações – da diferença entre o lugar e as pessoas tocados pelo banho de sangue e aqueles que estão em relativa segurança – as pessoas tendem a contar a história como aquela de violência recíproca e equiparável, normalmente começando com a perspectiva israelense e muitas vezes restringindo-se a ela.
A ideia de legítima defesa vem acompanhada de um slogan propagandístico, o de que todos os esforços são feitos para poupar a população civil e para usar os meios meramente necessários à própria proteção. As bombas inteligentes e os avisos prévios aos bombardeios são partes dessa propaganda. Ainda que se admita algo de verdade nisso, os resultados concretos mostram que nem uma nem outra coisa poupam de fato as vítimas civis e que ambas coisas são operações de lavagem da própria imagem.
E ao auto-elogio acopla-se a demonização do adversário, que se esconderia entre os civis e seria, por isso, o único responsável pela morte de mulheres, crianças e velhos atingidos pelas bombas inteligentes lançadas por pessoas de boa consciência. O argumento é de uma indecência indescritível e carrega muito de uma percepção racista do povo palestino como um todo e não apenas dos grupos armados.
É preciso buscar, então, por trás do pretexto circunstancial e por trás do argumento usual da legítima defesa, acompanhados pela propaganda de sempre, as razões verdadeiras para esse tipo de campanha militar e para esta última série de ataques especificamente.
As razões demandam um percepção do contexto que inclui fatos mais recentes e dinâmicas mais permanentes. Entre os primeiros está o acordo firmado recentemente entre Fatah e Hamas para a formação de um governo de união nacional, depois de anos de divórcio imposto pelas pressões israelenses e americanas.
O Hamas é o real adversário de Israel – junto a outros grupos da chamada resistência armada -, é um partido político com enorme representatividade na população palestina e, desde 2007, governa de fato a faixa de Gaza. Enfraquecer o Hamas, incentivando divisões dentro de seu corpo, separando-o do Fatah e da Autoridade Palestina, atacando sua base de apoio popular e tentando minar as suas capacidades militares, é um objetivo permanente para Israel. Esta última campanha visa cada um desses alvos.
E isso fica mais evidente considerando o que se chamou de dinâmicas permanentes. O fato é que, independentemente do que diga seu discurso oficial ou do que honestamente possam perseguir setores do establishment e da sociedade israelenses, o objetivo de longo prazo de Israel é o de privar os palestinos de um Estado próprio e o de manter o controle sobre toda a extensão territorial da Palestina histórica e sobre a população palestina remanescente. A expansão dos assentamentos é a prova inequívoca disso.
As campanhas periódicas são vistas como inevitáveis e tentam garantir que os palestinos não desenvolvam qualquer capacidade de resistência a esse projeto.
O problema, do ponto de vista israelense, é que, apesar de sua capacidade de impor o banho de sangue e de multiplicar os mortos e, apesar de seu razoável sucesso em operar as divisões e incentivar o dissenso entre as forças políticas palestinas, tudo indica que, militarmente, os grupos da resistência armada se mostram a cada ocasião mais aptas a infligir perdas e sofrimento relativamente maiores a Israel. Gradualmente parece se produzir uma capacidade razoável de dissuasão.
Isso aconteceu sistematicamente nas últimas confrontações com a resistência palestina em Gaza, assim como aconteceu no embate com o Hezbollah no Líbano.
Essa evolução tem conseqüências imediatas e outras de mais longo prazo. As primeiras explicam, por exemplo, ao menos em parte, a postura de Israel e aquela da resistência palestina em relação à proposta de cessar fogo. Israel parecia ansioso para dar efeito à trégua e os palestinos pensaram que esta não cabia se não fossem atendidas suas demandas: o fim do cerco a Gaza e a libertação de prisioneiros que tinham sido liberados como parte de uma troca negociada e logo presos novamente, entre outras.
Os egípcios, que fizeram a proposta e que tinham apadrinhado a última trégua, que se seguiu aos ataques de 2012, cometeram o erro de não consultar a resistência palestina antes – tendo consultado, no entanto, os israelenses – e deram a impressão de estarem mais preocupados com os interesses de Israel.
Já as implicações de longo prazo do equilíbrio embrionário de forças de dissuasão impõem um impasse aos projetos israelenses. Ao mesmo tempo em que se deteriora sua capacidade de se impor militarmente sem pagar um preço acima de suas capacidades, vai se desenhando o seu sistema social como um sistema de permanente ocupação e segregação. Um tal esquema não sobrevive. Ele será permanentemente ameaçado por movimentos de revolta que ali são conhecidos por intifadas e, inevitavelmente terminam por se desfazerem sob o peso de sua injustiça inerente.
Até agora, esse sistema de opressão e de ocupação sobrevive por força de sua capacidade de determinar em grande medida o discurso e as representações, e por conta de seus bons amigos entre os poderosos deste mundo.
Mas o absurdo vai mostrando rachaduras crescentes. Aumentam as resistências internas à própria sociedade israelense e fica cada vez mais difícil aos amigos de fora justificar o apoio incondicional. Crescem em força e em extensão as campanhas de boicote a Israel em vários segmentos, do comércio ao acadêmico.
Talvez seja o caso de países como o Brasil, que entretêm relações privilegiadas com Israel, apesar de uma posição de princípio muito positiva em relação ao drama palestino, começarem a considerar mais seriamente uma posição mais firme.
Enquanto o projeto israelense não apodrece sob o peso da ocupação e da injustiça ou, alternativamente, enquanto não é coroado de sucesso com a submissão total dos palestinos e sua anulação como povo autônomo, seguirão as campanhas militares que, além dos objetivos lembrados acima, servem a testar armas, inclusive as proibidas, e renovar arsenais.
E não há exagero, do ponto de vista técnico, jurídico, em dizer que os israelenses cometem crimes de guerra e crimes contra a humanidade no curso dessas campanhas. Nós só não pensamos muito nisso porque as fontes onde estamos acostumados a buscar nossas verdades não apontaram o dedo nessa direção.
*Salem H. Nasser é Professor de Direito Internacional da Direito FGV
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