Obama e Putin brincam com vidas sírias como em um tabuleiro de War

Foto: Reprodução/progressivestoday.com
Foto: Reprodução/progressivestoday.com
Os bombardeios aéreos do Exército russo contra o autoproclamado Estado Islâmico (EI) na Síria mostraram, mais uma vez, como a imprensa ocidental pouco se atém aos fatos e aos conceitos que envolvem os grupos que lutam na região. A pobre apuração da realidade síria reflete em uma série de estereótipos e estigmas, em sua maioria prenunciados pela imprensa estrangeira e repetidos a esmo pelos jornalistas brasileiros, recapitulando de forma leviana o dualismo Rússia x Estados Unidos.

Com o início dos ataques na última semana, diversos meios de comunicação relataram, ao estilo “furo de reportagem”, que os aviões russos não visavam necessariamente posições do Estado Islâmico e teriam atingido “forças rebeldes anti-Assad”, em uma tentativa de Putin de enfraquecer os grupos que lutam contra o ditador sírio, seu grande aliado no Oriente Médio. Mesmo que as constatações sejam verdadeiras, o jogo semântico da mídia confunde os leitores e os leva a pensar que existem mocinhos e bandidos no conflito sírio, o que já se mostrou inverossímil.

Primeiramente, não existe diferença alguma entre “forças rebeldes anti-Assad” e o Estado Islâmico. O Daesh, nome em árabe do EI, nada mais é do que uma força rebelde anti-Assad de origem sunita e com uma posição ultraconservadora em relação aos princípios islâmicos. O grande erro da imprensa em geral é classificar os rebeldes como uma massa homogênea, onde todos teriam a mesma ideologia, os mesmos princípios religiosos e os mesmos conceitos de nação. O que acontece é que, dentro da gama que luta contra Bashar al-Assad, existem diversas posições político-religiosas, de sunitas radicais à cristãos seculares, o que mostra como esta luta é sectária e não possui lados concretos.

Jornais, dos mais respeitados no mundo, como New York Times e Washington Post, repetiram exaustivamente que os ataques russos não foram direcionados às bases do Estado Islâmico, e sim a rebeldes, como os do Exército da Conquista (Jaish al-Fatah), que congrega grupos tais quais a Frente al-Nusrah e o Ahrar al-Sham. A questão é que estes dois grupos, apesar de estarem no front contra Bashar, são tão violentos e fundamentalistas quanto o próprio Estado Islâmico. A Frente al-Nusrah, inclusive, possui fortes ligações com o Daesh na Síria, já que os dois grupos foram criados a partir da Al-Qaeda, organização de Osama bin-Laden.

Combatentes da Frente al-Nusrahna cidade de Aleppo, no Norte da Sìria; até esteticamente o grupo se assemelha ao Estado Islâmico - Foto: Reprodução/ independent.co.uk
Combatentes da Frente al-Nusrah na cidade de Aleppo, no Norte da Sìria; até esteticamente o grupo se assemelha ao Estado Islâmico – Foto: Reprodução/ independent.co.uk

Os Estados Unidos, portanto, não estão preocupados com o desenvolvimento dos jihadistas, já que respaldam e fortalecem grupos como o al-Sham com o pretexto de derrubar Bashar al-Assad a qualquer preço. A verdadeira preocupação de Washington é a parceria com os países na região, já que Turquia, Catar e Arábia Saudita, grandes aliados dos norte-americanos, apoiam indiscriminadamente rebeldes anti-Assad, mesmo que estes sejam iguais ou até piores que o ditador.

Falando em Turquia, o cinismo do país euro-asiático é digno de uma peça de teatro. Os turcos esbravejam que seu território aéreo foi invadido “de forma proposital” por aviões russos, mas esquecem que fazem parte da comunidade internacional que cada vez mais negligencia os conflitos no Oriente Médio em detrimento de interesses econômicos. Como bem lembrou o jornalista irlandês Patrick Cockburn, em seu livro-reportagem A Origem do Estado Islâmico, a Turquia vem sendo conivente com a entrada de jihadistas na Síria desde o início da guerra civil em 2011, já que possui uma vasta fronteira com o país e nenhum interesse em torná-la mais rígida.

Outra nação blindada pelos veículos internacionais, principalmente em função de sua estreita relação com os Estados Unidos, é a Arábia Saudita. O país é um dos principais interessados no êxito dos rebeldes sírios, já que a família Saudi, que comanda o território há mais de um século, é de origem wahabista, uma vertente do sunismo, este que é a base do fundamentalismo propagado pelo Estado Islâmico.

O cinismo turco vale também para os norte-americanos. Ao mesmo tempo que Washington critica veementemente a ditadura de Bashar al-Assad, com certa dose de razão, todas as operações militares realizadas na Síria pelos Estados Unidos têm o conhecimento e aval de Assad.  Os norte-americanos podem até apoiar os grupos que lutam contra o ditador, mas isso não significa que ambos não se comuniquem e negociem os termos do conflito, que já matou mais de 200 mil pessoas em quatro anos.

"Primeiro Batalhão" do Exército Livre da Síria; grupo está cada vez mais enfraquecido e centenas de combatentes já migraram para facções jihadistas
“Primeiro Batalhão” do Exército Livre da Síria; grupo está cada vez mais enfraquecido e centenas de combatentes já migraram para facções jihadistas

A desfaçatez norte-americana pode ser notada de forma explícita nas últimas declarações oficiais da Otan (Organização dos Tratados do Atlântico Norte), “parque de diversões” dos norte-americanos, publicadas pelo Middle East Monitor. “Os aliados requisitam que a Federação Russa pare imediatamente os ataques na oposição síria e nos civis, e  foque no Estado Islâmico para promover a solução para o conflito por meio de uma transição política”, disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg. Ora, que oposição? A mesma que mata, tortura, fundamenta seus princípios em grupos tipo Al-Qaeda e pretende criar mais uma teocracia na Síria?

O questionamento que boa parte dos analistas dos conflitos na Síria vêm fazendo é se existe realmente um grupo rebelde moderado, pautado pela democracia e pelo pensamento secular. O Exército Livre da Síria (ELS), que em certo momento foi o grande aliado dos norte-americanos, está completamente enfraquecido e perdendo posições para o Estado Islâmico e o Exército da Conquista, muito em função de sua forte ligação com as potências ocidentais. A Turquia e os Estados Unidos, inclusive, anunciaram no começo deste ano o treinamento de combatentes do ELS, mas isso não surtiu efeito nenhum e os grupos jihadistas cresceram de forma exponencial neste meio tempo.

Já passou da hora das grandes potências, principalmente Estados Unidos e Rússia, pararem de ensaiar um retorno à Guerra Fria. Este embate político vem sacrificando vidas em função da vaidade de Barack Obama e Vladimir Putin, que brincam com as vidas sírias como num tabuleiro de War. “ Sem a Rússia pressionando, junto aos Estados Unidos, seus aliados dentro e fora da Síria para um acordo, a guerra vai continuar e os únicos ganhadores serão o Estado Islâmico e os clones da Al-Qaeda”, disse Patrick Cockburn em recente artigo para o jornal The Independent, do qual é correspondente para o Oriente Médio. Para nada existe solução fácil e rápida, mas os recursos para se amenizar a situação na Síria passam fundamentalmente por uma secessão por parte dos dois lados da moeda.


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